Florisvaldo Mattos,
uma poesia que transcende o tempo
Cid Seixas
Meu primeiro alumbramento com a poesia de Florisvaldo Mattos se deu cerca de dez anos depois da publicação do surpreendente Reverdor. Surpreendente porque, ao ter contato com o livro de poesia de Florisvaldo Mattos, tomei conhecimento de outros livros publicados na Bahia dos anos sessenta.
Descobri também a geração de Godofredo e Carvalho Filho, pioneiros da modernidade na Bahia, ao tempo em que fui tomado pelo espanto diante das obras de dois novos poetas revelados em livro nos meados dos anos sessenta; os excelentes Florisvaldo Mattos e José Carlos Capinan. Secundarista do Colégio da Bahia, chegado do interior, passei a estagiar em jornais e emissoras de rádio para ter meu próprio dinheirinho de estudante.
Foi através das obrigações da redação dos Diários Associados, como repórter de setor, encarregado de cobrir a área cultural, que conheci, mais de perto, o nome de Florisvaldo Mattos, então diretor da sucursal do Jornal do Brasil, e o nome de Capinan, poeta do tropicalismo. Mas em seguida veio o entusiasmo ao reconhecer que estes dois intelectuais, já então respeitados, eram autores de dois livros que seriam marcantes para a minha geração, Reverdor, de Florisvaldo, e Inquisitorial, de Capinan.
Vivendo os anos de engajamento da juventude estudantil, tomei o livro de Capinan como cartilha, soletrada como forma de oposição ao regime direitista vigente; e, confuso aprendiz dos segredos da palavra, fiquei ser saber como incluir a poesia de Florisvaldo Mattos no espaço do modernismo. Ainda identificando a modernidade com o poema sem eira nem beira, sem sela e sem cabresto, sem rima e sem medida, não sabia como compreender a rigorosa “escritura em pedra” deste poeta moderno e de feição clássica.
Pensava então que a poética instaurada pela geração de 45 era um retrocesso. Pensava também que o parnasianismo já era, que Olavo Bilac era uma besta e que nós estávamos com a verdade, única, porque nossa. Como então compreender o fascínio, ambíguo, incômodo, porque me espantava, diante do “galope amarelo” ou da “maquina de alvura sonora”, que aquela poesia que não me parecia, caracteristicamente, modernista provocava em mim?
Arrastado pela força e pelo mistério da palavra poética, passei a contemplar, com um respeito, quase religioso, que as coisas desconhecidas ou não compreendidas nos provocam, aquela “sonora arquitetura”. E graças ao espanto inaugural que a poesia impõe, pude principiar a compreender coisas que não compreendia.
Assim, em lugar de falar da obra de Florisvaldo Mattos como alguém que se dedica à crítica literária, abdico ao trono analítico – no qual muitos se sentam, ostentando o higiênico papel de críticos, – para falar de surpresas e de incertezas que são a pedra de toque da mais contrita leitura do texto literário.
Assim, que me seja permitido falar de lembranças; lembranças da descoberta sempre renovada dessa poesia que hoje nos traz a esta sala.
Foi mais ou menos naqueles passados dias dos anos setenta que conheci o movimento Armorial de Pernambuco, liderado por Ariano Suassuna, resultante da fusão de uma escrita, de uma pintura e de uma música embebidas em raízes da terra, mas ao mesmo tempo universalizadas pelo rigor clássico e erudito.
Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos
Aqui, agora, ouso arriscar uma outra comparação da poesia de Florisvaldo Mattos com a obra esplendorosa de Sosígenes Costa. Não seria por acaso a admiração manifesta do poeta grapiúna de hoje pelo poeta grapiúna de ontem um indício de identidade?
Curiosamente, apesar do poema Iararana ser, em muitos aspectos, comparável ao Cobra Norato, que colocou Raul Bopp como figura importante do modernismo, Sosígenes entra na História da Literatura Brasileira apenas como um poeta simbolista. Sua importância como modernista é triunfalmente desconhecida pelos olhos eruditos do centro-sul. Aqueles olhos cujas mãos que escreveram a história.
A aproximação dos torneios verbais da escrita de Florisvaldo Mattos com a de Sosígenes ou de outros poetas simbolistas e parnasianos é uma tentação ao leitor. Anos atrás, relacionava-se sua domação de pedras com a arquitetura poemática de João Cabral de Melo Neto e de outras vozes pós 45. Mas se evitava uma aproximação com o parnasianismo, movimento que foi injustamente massacrado pelos pontas-de-lança de 22, como forma de afirmação do novo através da desqualificação do velho.
Assim, aproximar um poeta brasileiro moderno dos poetas parnasianos pareceria pura provocação. O mesmo não ocorreu, por exemplo, em Portugal. Fernando Pessoa, considerado por Roman Jakobson como síntese da modernidade presente nos grandes artistas europeus do século XX, sustenta o seu salto em direção ao futuro no declarado diálogo com o passado e com os fantasmas que assombram os velhos sobrados da memória.
Foi esta capacidade de Pessoa de transitar entre tradição e ruptura que levou o crítico lusitano Arnaldo Saraiva, nos dois volumes do livro O modernismo português e o modernismo brasileiro, a buscar em Olavo Bilac raízes do elaborado engenho formal de Fernando Pessoa. Convém lembrar que, na sua época, Bilac foi o poeta brasileiro de maior audiência em Portugal, o que justifica a possível influência.
E nada disso desqualificou a poesia de Pessoa; mesmo perante os inseguros vanguardistas brasileiros. O seu valor é intrínseco. Assim também ocorre com todo poeta.
Por que, então, não considerarmos o entrelugar do verso de Florisvaldo Mattos? Porque situá-lo descarnado das leituras e influências que se entremostram, que se velam e revelam na sintaxe do verso?
Florisvaldo Mattos não temeu escandir sua arte nos limites do soneto, mesmo quando os poetas que se queriam modernos, a qualquer custo, estigmatizavam as jóias de quatorze pedras preciosas.
Desse modo, o metro fixo de dez pés emprestou seu ritmo inconfundível aos versos brancos do cantor das tropas “conduzindo cacau para Água Preta”.
Se no citado já artigo de 1975 procurávamos compreender a féerica arquitetura da “fábula civil sonhada”, vinte anos mais tarde, no artigo intitulado “Domação da palavra”, publicado na coluna Leitura Crítica, do jornal A Tarde (de 15 de abril de 1996), voltamos à poética de Florisvaldo Mattos, quando do lançamento de A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior.
Nesse novo texto, lembramos que o primeiro livro individual do poeta trazia uma seleção rigorosa e circunscrita a um mesmo tema, o que podia ser entendido como evidência do completo domínio da poesia pelo autor que ali fazia seu primeiro concerto solo. Nesse bem cuidado volume, com ilustrações de Calasans Neto, o autor dizia: “Os poemas deste livro – escritos de 1955 a 1963 – foram escolhidos pelo autor, para publicação, tendo em vista uma unidade temática de base agrária.”
Tal escolha fez com que Florisvaldo passasse a ser visto como um poeta do campo, não faltando as comparações com o Virgílio das Georgicas e com outros poetas universais. Mas a sua obra obedece a duas grandes vertentes; essa primeira, onde o elemento telúrico define a natureza do canto, e uma outra, citadina ou cosmopolita, que amplia e desenvolve o alcance de uma voz do interior.
A natureza do canto deste poeta tem de fato a marca da grei: Água Preta, Uruçuca, Itabuna, enfim, as terras do sem fim da Nação Grapiúna.
Foi esse vínculo primeiro do poeta com a região, suas roças adubadas com o sangue dos homens de aluguel e os sonhos desfeitos, que deu à sua voz o selo de compromisso com o Homem. Num momento em que o engajamento partidário era o sedutor caminho encontrado por muitos escritores e artistas, o compromisso humanístico e – digamos – telúrico de Florisvaldo Mattos traçou a arquitetura fulgurante da sua escrita, em torno da qual aqui estamos reunidos.
MATTOS, Florisvaldo. Reverdor; poesia. Xilogravuras de Calasans Neto. Salvador, Macunaíma, 1965.
MATTOS, Florisvaldo. A caligrafia do soluço & poesia anterior. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado / Copene, 1996, 180 p.
SARAIVA, Arnaldo. O modernismo brasileiro e o modernismo português; subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações. Volume I. Porto, s. ed., 1986, 336 p.
SARAIVA, Arnaldo. O modernismo brasileiro e o modernismo português; subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações. Volume II: Documentos dispersos. Porto, s. ed., 1986, 336 p.
(Texto lido durante o evento “Encontros Literários”, realizado na Academia de Letras da Bahia, no dia 16 de abril de 2010. Inédito em forma impressa.)