Linguagem, Cultura
e Ideologia
em O Espelho de
Narciso
Antonio Houaiss
1. Em atendimento dos artigos 70 e 71 do Regimento do
Universidade Federal da Bahia, aqui dou meu parecer sobre O espelho de Narciso (a linguagem como ideologia cultural no idealismo e
no marxismo), dissertação de mestrado de Cid Seixas Fraga Filho (Salvador –
BA, abril de 1979).
1. 1 A dissertação me merece a menção de Distinção e mais
não faço, porque o Regimento referido não me faculta fazê-lo.
1.2 Com
isso, quero desde o início deixar patente minha admiração por várias altas
qualidades manifestas na dissertação, dentre as quais realço a seqüência nas
idéias, a madureza do pensamento, o espectro rico da informação e erudição, o
inteligente aproveitamento das fontes a bibliografia, e a elegância da
exposição.
1.3 É, entretanto, de extrema conveniência que, em cuidando
o Autor de publicar em letra de forma a dissertação, proceda a uma cuidadosa
revisão, pois há uns quantos deslizes materiais menores, de vária natureza, que
poderão ser corrigidos, mas que, não o sendo, enfearão o texto.
2. Ao crer
firmemente que a distinção conferida é merecida e remerecida, quero também
deixar claro que isso não significa minha identidade de vistas, sob todos os
aspectos, com as da dissertação. Nutro a esperança de que Cid Seixas não
abandone a direção de estudos que tomou e a prossiga, aprofundando pontos que
parecem merecer indagação mais acurada de sua parte. Afloro, a seguir, alguns
com o só fim de espicaçá-lo, mas sem intuitos polêmicos ou, muito menos,
professorais ou magistrais: será, antes, um diálogo entre pares de angústias e
buscas (malgrado – ah! a diferença de nossas idades).
3. Cinco conceitos foram – pelo menos – basilares para a
dissertação: o de linguagem (e língua e lingüística), o de ideologia (e
cognição), o de cultura, o de idealismo e o de marxismo. Buscou o Autor cercar
cada um por todas as quinas e esquinas e facetas possíveis, cuidando
zelosamente por que seu tratamento fosse dialético e não fosse lasso.
3. É óbvio que nesta altura haja questões nesse terreno
sobre as quais lavrem dúvidas e diferenças, algumas até provindas de posições
metodológicas diferentes. Que o Autor veja que sentido fazem as obtemperações
seguintes.
4. A análise do conceito de ideologia parece na dissertação
ser usada com certa anistoricidade. É o que pode ocorrer se se admite que a
“condição” do homem cognoscente (e dos homens cognoscentes e da humanidade
cognoscente) seja ideológica. Nesse caso, dever-se-ia, acaso, distinguir duas
ordens de ideologias: a “intrínseca” à citada condição humana e a outra – mais
relevante na História stricto sensu –, a que deriva da estrutura das classes
sociais (e das segmentações culturais). Há três momentos da historicidade que
presumem condições basicamente diferentes: o momento em que não há classes
sociais, o momento em que as há (e contraditórias, e antagonísticas) e o
momento em que não as haverá. A “ideologia” ou as “ideologias” que pervadem
esses três momentos são da mesma qualidade que as específicas do segundo momento?
4.1 De fato, quer invocando o “conhecimento ingênuo”, o,
“conhecimento científico”, o “conhecimento do bom-senso”, o “conhecimento do
senso comum”, quer o “conhecimento pré-científico”, em face do “conhecimento
cientifico” – invocando tudo isso pode-se, procedentemente, ressaltar a
insuficiência histórica intrínseca do conhecimento, post factum. Essa impotência objetiva do conhecimento absoluto será
ideologia? Metodologicamente, cobrir a eterna caminhada do fazer-conhecer com o
“conhecimento relativo” na História via da verdade possível a certo nível de
desenvolvimento cognitivo e com o mesmo nome para o conhecimento conflitivo
provindo dos interesses e posições de classe social, isso é eventualmente
equiparar com conseqüências arriscadas antes que deveriam ser estremados. Não
quero negar que, em certa altura da evolução do conhecimento e em certa altura
da evolução das ideologias,. aquele (o conhecimento) se pigmente mais ou menos
de ideologia, a ponto de ser só ideologia em certas situações. Confundi-los,
porém, pode significar que se fecha a porta de saída da História, enclausurando eternamente os homens ou
nos conflitos das classes sociais ou na sua impotência de um absoluto
metafísico.
5. O Autor não vacila em colocar o conceito de “cultura” e a
“cultura” mesma. como superestrutural, ainda que com força, da tradição que
provém de textos fundadores do marxismo, embora textos incidentes. Pergunto-me
se não se está tendo, uma visão parcial de cultura e sua problemática. A
antropologia (com tinturas, maiores ou menores, “ideológicas”) dos povos ditos
primitivos tende a dar a “cultura” uma abrangência holística, totalizante,
tomando o conceito como equivalente à totalidade das práticas, praxes e
pragmáticas humanas geradoras (real ou imaginariamente) de produtos materiais e
espirituais com que a comunidade, sociedade ou “nação” considerada busca
reproduzir-se e mesmo aumentar-se.
5.1 Nesse caso, herda-se uma palavra prestigiosa e
necessária para o conceito holístico, excluindo-lhe a semia ambígua ou elástica
com que é tratada. Afinal, no geral difuso, ou cultura é tudo aquilo, da
superestrutura, que não seja religião, direito, ciências, artes, artesanias,
crenças, opiniões, conhecimentos populares etc. – restando não se sabe bem o
que, mas restando “cultura” como um significante sem significado, ou “cultura”
é tudo, menos a base.
5.2 Tomada holisticamente, cultura, é desde Aristóteles,
tudo que não é natura em estado de natura. Seus estados dinâmicos ou
estacionários supõem, postulam uma base ou infraestrutura e uma superestrutura,
diferenciando-se esta por “de pender” (dialeticamente) daquela e evolver com
ela, cuja condição de existência é sine qua nem há cultura, nem há
sociedade, nem há homem: há, por isso, culturas sem músicos, ou sem dança (mas
com música-dança, por exemplo), sem artes figurativas etc.; não as há, porém,
sem trabalho (base) e sem... língua – e esta última hipótese, não parece viger
do Homo sapiens sapiens para cá, nem
de Homo sapiens para cá, mas daquilo
que possa ser dito Homo – algo como dois milhões de anos para cá.
5.3 Talvez certos pontos de maior afunilamento da
dissertação tivessem sido mais bem resolvidos com a presença mais conspícua de
“trabalho”, que aparece, explicitamente, nas páginas 144, 185 (e notas 20 e 21)
e em função de Cassirer. Se se alegar que o conceito de “práxis” compensa a
ausência de “trabalho”, seria possível aceitá-lo, mas acompanhado de uma forte
fundamentação.
6. Ao proceder – com apoio na conceituação de “idealismo” e
“marxismo” (que deve cobrir o “materialismo dialético” e o “materialismo
histórico”, o que enseja a não discussão desse tópico, por não pertinente
especificamente à dissertação) – ao proceder à crítica do(s) estruturalismo(s)
lingüístico(s) idealista(s), acredito que Cid Seixas tenha atingido certeiro o
seu alvo. Recuperando, assim, o “conteúdo” e, mais, os usos sociais no espaço e
no tempo de uma língua e das línguas, recupera também os fundamentos
ontológicos graças aos quais pode, por fim, restabelecer o nexo entre língua e
cultura, pois que na língua há uma segmentação ou descrição do amorfo “real” (e
quiçá semântico em “estado puro”) segundo a atividade cultural, isto é, segundo
a cultura dada. Ora, como as relações sociais (condicionadas pelas relações de
produção) se exprimem por recursos simbólicos e semióticos, o mais importante
dos quais é a língua, segue-se que há um enlace (necessário) entre língua e
cultura, e entre estas duas a aquela “ideologia” transumana (potência cognitiva
limitada, cognição histórico-culturalmente limitada).
6.1 É quando o aprofundamento da problemática, fascinante,
deve ser feito. Em síntese, não temos como fugir ao “primeiro” momento da
história humana (ver 4): nele há trabalho (base), nele há linguagem, nele há
cultura (em qualquer sentido); mas nele há ideologia?
6.2 No “segundo” momento, as diferentes classes fazem dos
“seus” usos da língua a vão além: a classe dominante busca fazer dos “seus”
usos da língua os usos de todas as classes; estas, entretanto, não o conseguem
na plenitude da vontade dominante, porque as condições de sua existência social
e cultural não lhes permitem exprimir-se além das condições dessa sua
existência social, por mais que suas consciências estejam dominadas ou
alienadas. Que uma sociedade ou cultura do “primeiro” momento tenha uma língua (e várias linguagens) não
diferenciada senão nas suas realizações contingentes em variantes
indiferenciais a uma só cultura de
todos os seus integrantes e uma (em
instância probatória ou por conceituar) ideologia, eis aí uma tese. Que uma
sociedade ou cultura do “segundo” momento tenha uma ou mais línguas e esta(s)
se multiplique(m) em estratos e segmentos correspondentes às diferentes
ideologias classais (com uma dominância) que “dividem” o “bolo” da cultura
“nacional” ou “imperial”, eis aí outra tese. E, parece-me, são teses de difícil
equiparação e mais difícil equação, a menos que se reconceituem os elementos
basilares das duas teses. O que me parece não apenas sedutor, mas extremamente
útil.
7. Em boa
consciência, deveria eu ficar aqui, pois são as obtemperações que supunha dever
propor a Cid Seixas. Há, porém, uma passagem relacionada com Stálin e a questão
do estatuto da língua dentro das formações sociais dos diferentes modos de
produção que me pede um reparo.
7.1 Vivi,
ao tempo, a questão. E vejo-a resumida pelo Autor (apud Carlos Vogt, ao que parece) de uma forma que pode ser a versão
mais conveniente da atualidade, mas não recobre a problemática de então. Então,
partindo do pressuposto de que a língua de uma formação social, corrijamos, de
uma formação social sob uma forma cultural dada era uma superestrutura,
seguia-se – com Marr (referido pelo Autor) – que, mudando a formação social,
deveria mudar a língua. E toda uma teoria desenvolvera o lingüista russo da
equiparação ou adequação de línguas às diferentes formações sociais. Entrada no
socialismo (pelo menos politicamente), a língua russa continuava em estado
estacionário (isto é, sendo usada por todos e para todos os fins de forma que
nenhuma diferença essencial relevante se consignava entre os interpsiquismos
dos usos imperiais e dos usos soviéticos). O Autor aceita a interpretação das
motivações políticas: Stálin, ao colocar a língua fora da base e da
superestrutura, ipso facto advogava a
possibilidade de sua manutenção essencial (o que não poderia ad vogar para o
direito, para a literatura, para a música, para a dança, para... ). Fazia –
como Celso Cunha – uma política do idioma...
7.2 Ora, aí está um problema “político” (do idioma, da
língua, das línguas e dos homens, em suma) que a sociolingüística não pôde, não
pode e não poderá evitar ou subestimar, pois, com ser político, não é menos
humano e menos lingüístico.
7.3 Trata-se de uma problemática histórica (e lingüística e
política e cultural) típica do “segundo” momento e presumivelmente – do “terceiro”
momento.
7.4 Se a
natureza essencial das diferenciações lingüísticas continua a constituir um
enigma científico malgrado todos,os progressos científicos que no respeito têm
sido feitos, as unificações lingüísticas “imperiais” e “nacionais” de dois
milênios (e mais) a esta parte, têm sido quase evidentes: etnocídios e
lingüicídios ou glotocídios, raramente conquistas persuasivas.
7.5 0 problema das koinés
ágrafas do passado (e do presente) e o problema das línguas comuns e/ou de
cultura escritas (e faladas) do presente são apaixonantes problemas de
linguagem, de línguas, de ideologias e de culturas, no idealismo e no marxismo.
Cid Seixas não deve descartá-los ditatorialmente...
8. Pergunto-me, por fim, se não há uma supervalorização da
pessoa (e do indivíduo) do artista, nas considerações finais de Cid Seixas.
Suspeito que há uma retrojeção – o que caracteriza o auge hoje desde “segundo”
momento é extrapolado para a “condição” humana... É apenas uma suspeita, mas
vale a pena levá-la em conta.
9. Renovo minhas felicitações a Cid Seixas. E a Rosa
Virgínia Mattos e Silva vão meus parabéns sinceros pela orientação, que honra a
pós-graduação da Universidade Federal da Bahia.
Antonio Houaiss
Rio de Janeiro, 15 de março de
1980