24/01/2016

O poeta e o romancista

O Poeta e o Romancista

Jorge Amado

   Apenas desembarco na Bahia, reencontro o poeta e o romancista, a poesia e a ficção são parte da realidade mágica da cidade, estão na praça pública o poeta Cid Seixas‚ a poesia despojada, reduzida à essência, por isso mesmo engrandecida. O romancista (e contista) Guido Guerra, no domínio completo da  arte do romance, terminou suas universidades, fez mestrado e doutorado.
        A poesia e o romance me acompanham na aventura rara do lazer, completam a praia, o mar, o rio, o coqueiral, dão sentido e conseqüência à beleza da paisagem. Dão-me a alegria da aposta ganha, do acerto no julgamento quando os dados eram ainda incompletos e a resposta duvidosa Apostei no poeta e no romancista em tempos passados, quando Cid e Guido eram jovens no início da batalha para afirmar a vocação e transforma-la em ofício: o difícil ofício do romancista, por vezes cruel, o mágico ofício do poeta, por vezes diabólico. Acertei com o poeta e com o romancista, leio os livros recentes, felicito-me, cumulado estou, na dupla qualidade de leitor e de amigo.
        Acompanho a caminhada do poeta, ensaísta e professor Cid Seixas desde os seus começos, vai tempo. O jovem intelectual trabalhava a literatura portuguesa sob a égide de Hélio Simões, um dos grandes do modernismo baiano, remanescente do "Arco & Flexa", conhecedor profundo das letras de além-mar, doce criatura. Cid iniciava igualmente a aventura fundamental da poesia que eu, naqueles antanhos, saudei na medida da emoção contida e de beleza grave. Hoje, reencontro o poeta no volume dos Fragmentos do Diário de Naufrágio, quando alcança a altura da simplicidade complexa e densa, quando o despojamento é a medida do poema. Eu o reencontro e o situo entre os primeiros, os definitivos  – o pequeno livro enche-me as medidas.
        "Arquitetura de luz tão cintilante / que a si mesma incendeia", eis a poesia de Cid Seixas. Os poetas são poetas porque sabem: Cid aprendeu a verdade e a mentira, “tecelão da matéria abstrata". Poderia citar cada verso dos poemas, nesses fragmentos o criador e o homem se definem e se revelam: "O poeta é aquele que ressurge”. Obrigado, Cid, pela beleza do pequeno livro, cujo único defeito é sair numa edição fora de comércio, de apenas cinqüenta exemplares, quando exige edição normal ao alcance de todos os leitores que desejam viver a graça da poesia.
        Obrigado, Guido Guerra, pela leitura emocionada de O Último Salão Grená, romance de um autor maduro, dono do seu ofício, experiente da vida, pleno de ternura pelos homens e pelas mulheres, um senhor ficcionista. Guido andou seu caminho com coragem e obstinação. O cronista urbano que um dia surgiu no jornal de Odorico Tavares rompendo tabus de linguagem, o tímido contista dos pequenos livros, o autor de Lili Passeata no sucesso da literatura corajosa de contestação aos milicos e à ditadura; eu o vejo hoje escritor cuja presença em nossas letras já  ninguém pode desconhecer ou discutir. Guido fez-se um verdadeiro criador de ambientes e de personagens, um criador de vida.
        Jerônimo Malaquias, jornalista e personagem, escreve, com liberdade e ao mesmo tempo com a contenção do acontecido, a história de Janete-Filomena de Jesus,  "como preferem os mais exatos” – por encomenda daquela que foi a matriarca maior e mais completa. Penso que o termo matriarca diz mais e melhor da profissão da heroína do que qualquer outra palavra, douta, feia, erudita, preconceituosa, do que qualquer palavrão. E a escreve por encomenda da própria senhora, tão digna senhora por mais indigna que a considerem.
        Dono de seu ofício, Guido Guerra, no romance maior entre quantos publicou até agora, dá uma demonstração de técnica, de domínio da arte narrativa; trata-se realmente de um jovem mestre.
        Não sei se O Último Salão Grená superará o sucesso de público de Lili Passeata, que valia, inclusive, como um comício em praça pública, empolgava. O novo romance‚ bem menos ruidoso e bem mais rico, mais difícil, mais conquistado ­­– eu diria conquistado cena a cena, frase a frase, palavra a palavra. Guido deve ter penado para construí-lo, também decerto se divertiu: construiu com humor e sangue a farsa de um pequeno mundo, recriou a vida, chorou e riu.

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(Apresentação dos livros Fragmentos do Diário de Naufrágio, de Cid Seixas, e de O Último Salão Grená, de Guido Guerra, constante dos Anais da Academia Brasileira de Letras, de 1992.)