O Poeta e o
Romancista
Jorge
Amado
Apenas desembarco na Bahia, reencontro o
poeta e o romancista, a poesia e a ficção são parte da realidade mágica da
cidade, estão na praça pública o poeta Cid Seixas‚ a poesia despojada, reduzida
à essência, por isso mesmo engrandecida. O romancista (e contista) Guido
Guerra, no domínio completo da arte do romance, terminou suas
universidades, fez mestrado e doutorado.
A poesia e o romance me acompanham na
aventura rara do lazer, completam a praia, o mar, o rio, o coqueiral, dão
sentido e conseqüência à beleza da paisagem. Dão-me a alegria da aposta ganha,
do acerto no julgamento quando os dados eram ainda incompletos e a resposta
duvidosa Apostei no poeta e no romancista em tempos passados, quando Cid e
Guido eram jovens no início da batalha para afirmar a vocação e transforma-la
em ofício: o difícil ofício do romancista, por vezes cruel, o mágico ofício do
poeta, por vezes diabólico. Acertei com o poeta e com o romancista, leio os
livros recentes, felicito-me, cumulado estou, na dupla qualidade de leitor e de
amigo.
Acompanho a caminhada do poeta, ensaísta
e professor Cid Seixas desde os seus começos, vai tempo. O jovem intelectual
trabalhava a literatura portuguesa sob a égide de Hélio Simões, um dos grandes
do modernismo baiano, remanescente do "Arco & Flexa", conhecedor
profundo das letras de além-mar, doce criatura. Cid iniciava igualmente a
aventura fundamental da poesia que eu, naqueles antanhos, saudei na medida da
emoção contida e de beleza grave. Hoje, reencontro o poeta no volume dos Fragmentos do Diário de Naufrágio,
quando alcança a altura da simplicidade complexa e densa, quando o despojamento
é a medida do poema. Eu o reencontro e o situo entre os primeiros, os
definitivos – o pequeno livro enche-me
as medidas.
"Arquitetura de luz tão cintilante
/ que a si mesma incendeia", eis a poesia de Cid Seixas. Os poetas são
poetas porque sabem: Cid aprendeu a verdade e a mentira, “tecelão da matéria
abstrata". Poderia citar cada verso dos poemas, nesses fragmentos o
criador e o homem se definem e se revelam: "O poeta é aquele que
ressurge”. Obrigado, Cid, pela beleza do pequeno livro, cujo único defeito é
sair numa edição fora de comércio, de apenas cinqüenta exemplares, quando exige
edição normal ao alcance de todos os leitores que desejam viver a graça da
poesia.
Obrigado, Guido Guerra, pela leitura
emocionada de O Último Salão Grená,
romance de um autor maduro, dono do seu ofício, experiente da vida, pleno de
ternura pelos homens e pelas mulheres, um senhor ficcionista. Guido andou seu
caminho com coragem e obstinação. O cronista urbano que um dia surgiu no jornal
de Odorico Tavares rompendo tabus de linguagem, o tímido contista dos pequenos
livros, o autor de Lili Passeata no
sucesso da literatura corajosa de contestação aos milicos e à ditadura; eu o
vejo hoje escritor cuja presença em nossas letras já ninguém pode
desconhecer ou discutir. Guido fez-se um verdadeiro criador de ambientes e de
personagens, um criador de vida.
Jerônimo Malaquias, jornalista e
personagem, escreve, com liberdade e ao mesmo tempo com a contenção do
acontecido, a história de Janete-Filomena de Jesus, "como preferem os mais exatos” – por
encomenda daquela que foi a matriarca maior e mais completa. Penso que o termo
matriarca diz mais e melhor da profissão da heroína do que qualquer outra
palavra, douta, feia, erudita, preconceituosa, do que qualquer palavrão. E a
escreve por encomenda da própria senhora, tão digna senhora por mais indigna
que a considerem.
Dono de seu ofício, Guido Guerra, no
romance maior entre quantos publicou até agora, dá uma demonstração de técnica,
de domínio da arte narrativa; trata-se realmente de um jovem mestre.
Não sei se O Último Salão Grená superará o sucesso de público de Lili Passeata, que valia, inclusive,
como um comício em praça pública, empolgava. O novo romance‚ bem menos ruidoso
e bem mais rico, mais difícil, mais conquistado – eu diria conquistado cena a
cena, frase a frase, palavra a palavra. Guido deve ter penado para construí-lo,
também decerto se divertiu: construiu com humor e sangue a farsa de um pequeno
mundo, recriou a vida, chorou e riu.
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(Apresentação
dos livros Fragmentos do Diário de
Naufrágio, de Cid Seixas, e de O
Último Salão Grená, de Guido Guerra, constante dos Anais da Academia
Brasileira de Letras, de 1992.)