07/11/2015

Dr. Hélio

Hélio Simões
e as Relações Luso-Brasileiras

Cid Seixas
  
Para começar esta intervenção, devo, como ato de justiça e de reconhecimento, agradecer aos organizadores do II Congresso Internacional de Estudos Nemesianos por terem incluído nesta primeira sessão plenária a discussão do tema a que me propus. De fato, começar os trabalhos de um colóquio sobre Vitorino Nemésio, na Bahia, deve nos remeter também às relações do ora celebrado autor açoriano com esta cidade e com a sua vida intelectual. Propus-me lembrar aos presentes a este Congresso o papel desempenhado por Hélio Simões nas relações culturais luso-brasileiras.

Não fosse a intervenção de Hélio Simões, que usando o seu prestígio consolidou uma ponte de idéias entre Portugal e a Bahia, este segundo Congresso não estaria se realizando aqui. Se o primeiro foi nos Açores, terra de Vitorino Nemésio, o segundo é na Bahia, terra de Hélio Simões, o responsável pelo estabelecimento de elos intelectuais e afetivos entre Nemésio e a nossa terra.

Se hoje, os jovens estudantes que ingressam na Universidade desconhecem a obra nemesiana, devo dizer aos senhores, principalmente aos que chegam do outro lado do Atlântico, que, quando Hélio Simões exercia a influência da sua presença sobre a nossa vida intelectual, Vitorino Nemésio tornou-se um autor lido e discutido pelos estudantes. A recomendação de leitura do seu romance Mau tempo no canal para os exames de ingresso à Universidade criou uma familiaridade inicial entre o jovem leitor e a obra deste romancista açoriano.

Ainda nos anos setenta, quando estudei Letras, a metáfora da serpente cega (que, aliás, deu título à tradução francesa de Mau tempo no canal); ou melhor, o apelo simbólico da serpente cega ainda projetava forte sombra nos desvãos da nossa imaginação.

Mas a escrita de Vitorino Nemésio chegou à Bahia em 1958, quando aqui foi publicado o seu livro Conhecimento de Poesia. Nesta época, a Livraria e Editora Progresso, idealizada por Pinto de Aguiar, companheiro da juventude de Hélio Simões, fazia da nossa cidade um importante pólo editorial. Ao contrário da condição de hoje, quando representamos apenas uma modesta faixa do mercado consumidor de livros, e as edições feitas na Bahia não passam de publicações domésticas; nos meados do século, importantes obras locais, nacionais e estrangeiras saíam de Salvador para o mercado nacional. É verdade que não tivemos uma experiência editorial tão rica quanto a da Editora Globo, em Porto Alegre, mas no tocante à qualidade servíamos de referência para os leitores cultos de todo o país. Foi neste contexto que aqui se publicou Conhecimento de Poesia de Vitorino Nemésio.

Mas, alguns dos senhores, vindos de além mar, para participar deste colóquio, devem estar se perguntando: quem foi Hélio Simões? — este centro constelar das relações luso-brasileiras na Bahia.

Para o mundo literário, Hélio Simões desponta nos últimos anos da década de vinte, quando nesta cidade se travava o embate entre, de um lado, a iconoclastia modernista da Semana de 22 e, do outro lado, a articulação das propostas de modernidade com as tradições histórico-antropológicas de uma cidade economicamente empobrecida mas ainda depositária de rica memória cultural. Ao lado de Pinto de Aguiar, Carvalho Filho e Eurico Alves, Hélio Simões foi um dos fundadores da revista que serviu de marco ao modernismo na Bahia, Arco & Flexa (flecha escrita com x, o que a tornava mais pitoresca e próxima dos primores de Pindorama).

Sobre a sua atuação nesta revista fundadora do Modernismo na Bahia, em entrevista de jornal concedida há quase trinta anos ao poeta e pintor Juraci Dórea (posteriormente publicada no livro Eurico Alues: poeta baiano), o escritor Hélio Simões traduz com modéstia e limitação o papel destes jovens pioneiros. São suas palavras:

"O grupo Arco & Flexa não era estruturalmente homogêneo. Ligava-o a juventude e um certo afã renovador que a liderança de Chiacchio procurou dar unidade na tendência explícita de um "tradicionismo dinâmico” que constituiu o nosso manifesto. Creio que o nosso grande papel, na esteira do que vinha fazendo Eugênio Gomes e sobretudo Godofredo Filho, foi procurar integrar a Bahia na agitação cultural, particularmente literária, que já se manifestara em outros quadrantes do país."

Ora, o papel principal deste grupo integrado por Hélio Simões não foi apenas este. Foi também o de inaugurar uma modernidade literária menos comprometida com a vanguarda demolidora e mais comprometida enquanto resultado de um processo cultural longamente destilado. A nova e vertiginosamente rica cidade de São Paulo buscava, no afã industrial e na velocidade das máquinas, o mecanismo de corte com um passado depauperado. Estados Brasileiros detentores de antigo e rico acervo intelectual, como a Bahia e Pernambuco, por exemplo, não podiam abrir mão de bens preciosos e acumulados a custa de grandezas e misérias em troca de quinquilharias importadas. É por isso que Gilberto Freire e o grupo do Recife também tiveram um lugar diferenciado no quadro do Modernismo Brasileiro.

Convém registrar, embora de passagem, que tanto o grupo de Arco & Flexa quanto outros grupos baianos surgidos nos anos vinte não tiveram uma postura modernista similar à do grupo paulista. O modernismo não conheceu, entre nós, uma fase demolidora; ao contrário, chegou a se opor radicalmente a algumas ações histriônicas desencadeadas pela Semana de Arte Moderna de 22. O grupo denominado Academia dos Rebeldes, do qual participaram o etnólogo Edison Carneiro e o romancista Jorge Amado, para citar apenas dois nomes nucleares na moderna construção de uma identidade mestiça, (este grupo) não perseguia os mesmos traços de modernidade que caracterizaram o modernismo da semana de 22. Tais questões, que perpassam o trabalho atual de uma vertente de pesquisa sobre Crítica Literária e Diversidade Cultural, não cabem ser desenvolvidas aqui para que não nos afastemos do retrato, já incompleto, de Hélio Simões.

Mas este escritor modernista, autor do livro O Mar e Outros Poemas, não reduziu sua atuação pública à revista Arco & Flexa e ao Jornal da Ala. Considerem-se também o seu trabalho como diretor da revista A Renascença, ao lado de Afonso Rui; a sua seção "Crônica de arte'', no Diário da Bahia, em 1929; a coluna "Idéias e Fatos” na Era Nova; mais tarde, a seção "Poetas e Sonetos” no jornal Imparcial; além da coluna livros escrita entre os anos sessenta e setenta, no jornal A Tarde.

Além de poeta, Hélio Simões era médico e louco era o seu objeto de estudo, enquanto neurologista. Sabemos que nos anos vinte ainda não existiam cursos de Letras no Brasil; os jovens tidos como mais promissores se dirigiam para os cursos de Medicina, Direito ou Engenharia. Na Bahia, nasceu a primeira Faculdade de Medicina do Brasil, em 1808, ainda com o título de Colégio dos Cirurgiões, funcionando no local do antigo Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus, onde Vieira encontrou condições plenas para desenvolver a sua formação intelectual. Foi neste velho sítio de tradições que, aos 22 anos de idade, o poeta Hélio Simões concluiu o curso, em 1932. Médico formado, dedicou-se à clínica e, paralelamente, submeteu-se a concurso de Livre Docência, passando depois a Assistente Efetivo e Chefe de Clínica da Faculdade de Medicina da Bahia.

Em 1942, quando foi criada a Faculdade de Filosofia e abertos os diversos cursos de bacharelado e licenciatura, surge também o curso de Letras. Os professores das novas áreas foram arregimentados entre os docentes e diplomados nas faculdades tradicionais (Medicina, Direito e Belas Artes, incluindo-se aí Engenharia e Arquitetura). Por esta época, o poeta Hélio Simões, ocupando interinamente a cátedra de Neurologia da Faculdade de Medicina, abandona o exercício da clínica na área da saúde mental, e transfere-se para a recem-fundada Faculdade de Filosofia. A esta altura, como homem de sensibilidade artística e estudioso das ciências da cultura, era também professor da Escola de Belas Artes.

Assumindo a Cátedra de Literatura Portuguesa, Hélio Simões procurou completar sua formação acadêmica em viagens de estudos à França e a Portugal. Entre os portugueses, privou da amizade de intelectuais como Teixeira de Pascoaes, Hernani Cidade, Aquilino Ribeiro e quase uma centena de outros intelectuais. Desta forma, Vitorino Nemésio foi recomendado a Hélio Simões por amigos comuns, nascendo assim uma nova amizade, registrada na correspondência ora estudada pela professora Fátima Ribeiro.

Hélio Simões figura, portanto, entre os primeiros estudiosos da Literatura Portuguesa no Brasil, os chamados “cardeais”: Fidelino de Figueiredo, Thiers Martins Moreira, Soares Amora e talvez alguns outros como Jordão Emerenciano, por exemplo.

Os poetas modernistas Eurico Alves e Hélio Simões, idealizadores da revista Arco & Flexa.


Foi, portanto, nosso primeiro Catedrático de Literatura Portuguesa. Anos depois, com a reforma do ensino superior brasileiro, o Catedrático passa a se chamar Professor Titular, função exercida por Hélio Simões até a sua aposentadoria, aos setenta anos. Em 9 de junho de 1981, a Universidade lhe concede o título de Professor Emérito.

Por indicação do Professor Cláudio Veiga, então Diretor do Instituto de Letras e Presidente da sua Congregação, coube a mim, então jovem professor e talvez um dos menos indicados, a honra de saudar o mestre em nome do seu corpo docente. E quando digo que isto foi para mim uma honra, não uso de uma forma de polidez, mas cedo a uma manifestação de alegria ou de contentamento intelectual. A mesma honra com que hoje, na condição de seu sucessor como Professor Titular de Literatura Portuguesa desta Universidade, lembro o nome de Hélio Simões.

Mas voltemos à História da antiga Cátedra de Literatura Portuguesa.

Com a criação da Universidade da Bahia, em 2 de julho de 1946, Hélio Simões tem oportunidade de intensificar as relações com Portugal, convidando escritores e estudiosos portugueses para, na qualidade de professores visitantes, atuarem na Bahia. Aqui estiveram, viveram e trabalharam, graças a convite de Hélio Simões: Eduardo Lourenço, Adolfo Casaes Monteiro, Vitorino Nemésio, Hernani Cidade e alguns outros nomes ilustres. Casaes Monteiro foi figura importantíssima na difusão e na popularização da obra de Fernando Pessoa no Brasil. Hernani Cidade aqui organizou a edição da Defesa do padre Antonio Vieira, perante a Santa Inquisição. Nemésio publicou o já citado livro Conhecimento de Poesia. Eduardo Lourenço, então professor de filosofia, iniciou a monumental ponte ligando sua investigação à literatura.

Este papel singular de luso-brasileiro desempenhado por Hélio Simões tanto foi reconhecido pelos portugueses, na forma da amizade e da admiração, quanto nas distinções concedidas. Ele foi Oficial da Ordem Militar de Cristo e, posteriormente, Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Ainda em terras lusitanas, o Professor Doutor Hélio Simões se tornou membro da Academia de Ciências de Lisboa, do Instituto de Coimbra, do Instituto de Geografia de Lisboa e da Academia Internacional de Cultura Portuguesa.

No Brasil, a Academia Brasileira concedeu-lhe a Medalha Machado de Assis e o escritor Jorge Amado, no livro Bahia de Todos os Santos, registra o papel de Hélio Simões com ternura e com admiração:

“Hélio Simões é o poeta ilustre, o médico, o professor, o fomentador de estudos literários, o homem da universidade, do intercâmbio cultural luso-brasileiro, com tantos e tamanhos serviços prestados à Bahia, ao Brasil, à cultura.”

E prossegue Jorge Amado, na caracterização desde homem que, sem deixar de ser um atento intérprete da cultura local, foi também um admirador e um difusor da civilização portuguesa. Retomemos as palavras do romancista Jorge Amado:

“Mas eu sei quanto lhe agradará esse título no rápido e certamente incompleto perfil que aqui tento traçar de um homem feito de delicadeza, de interesse humano, de amizade, um poeta não só nos versos com que assinalou original presença na poesia brasileira, mas também na maneira de ser, de viver; na maneira de dar-se aos interesses vitais da comunidade e da cultura; um trabalhador intelectual aparentemente limitado aos gabinetes de estudo, mas, de fato, ligado à vida popular, à rua. Eu o vi no enterro da Mãe Senhora — ao lado de outro baiano tão autêntico, Thales de Azevedo — e percebi que a mão mística da ialorixá estava posta sobre a cabeça do poeta.”

Estas palavras de Jorge Amado traduzem com justiça o lugar de Hélio Simões, o intelectual baiano e brasileiro, o poeta, o professor, o singular estimulador das relações entre o Brasil e Portugal. Relações com as quais também se ocupou Vitorino Nemésio, em inúmeras páginas da sua bibliografia.

A respeito desta convergência de interesse entre os dois intelectuais, gostaria de terminar esta intervenção lembrando um poema de Hélio Simões que ele um dia me mostrou, quando falava do prazer que encontrou na convivência intelectual com Nemésio e ao constatar que ambos buscavam pontos de contato entre o Brasil e Portugal.

Permitam-me os senhores ler aqui este pequeno poema, intitulado “Duas Cidades” — um confronto desigual e harmônico entre a vossa Guimarães e a nossa Brasília — e com tais palavras de Hélio Simões encerrar as minhas palavras sobre Hélio Simões.

Eis o poema:

“Séculos caminharam sobre a pedra.
O muro enegreceu.
Branca a cidade medra
entre o cerrado e o céu.

Guimarães é a pia batismal
e o castelo roqueiro.
Aqui nasceu Afonso, o príncipe, Primeiro
e ao desígnio de Deus que tudo impele
nasceu com ele
Portugal.

Séculos caminharam sobre a pedra.
O muro enegreceu...

Brasília é o crisma. Novo
anseio de fé ardendo no planalto,
confirmação de um povo
do seu destino alto.

Séculos caminharam sobre a pedra.
O muro enegreceu.
Branca a cidade medra
entre o cerrado e o céu.”