Hélio Simões
e as Relações Luso-Brasileiras
Cid Seixas
Para
começar esta intervenção, devo, como ato de justiça e de reconhecimento, agradecer
aos organizadores do II Congresso Internacional de Estudos Nemesianos por terem
incluído nesta primeira sessão plenária a discussão do tema a que me propus. De
fato, começar os trabalhos de um colóquio sobre Vitorino Nemésio, na Bahia,
deve nos remeter também às relações do ora celebrado autor açoriano com esta cidade
e com a sua vida intelectual. Propus-me lembrar aos presentes a este Congresso
o papel desempenhado por Hélio Simões nas relações culturais luso-brasileiras.
Não
fosse a intervenção de Hélio Simões, que usando o seu prestígio consolidou uma
ponte de idéias entre Portugal e a Bahia, este segundo Congresso não estaria se
realizando aqui. Se o primeiro foi nos Açores, terra de Vitorino Nemésio, o
segundo é na Bahia, terra de Hélio Simões, o responsável pelo estabelecimento
de elos intelectuais e afetivos entre Nemésio e a nossa terra.
Se
hoje, os jovens estudantes que ingressam na Universidade desconhecem a obra nemesiana,
devo dizer aos senhores, principalmente aos que chegam do outro lado do Atlântico,
que, quando Hélio Simões exercia a influência da sua presença sobre a nossa
vida intelectual, Vitorino Nemésio tornou-se um autor lido e discutido pelos
estudantes. A recomendação de leitura do seu romance Mau tempo no canal para os exames de ingresso à Universidade criou
uma familiaridade inicial entre o jovem leitor e a obra deste romancista
açoriano.
Ainda
nos anos setenta, quando estudei Letras, a metáfora da serpente cega (que,
aliás, deu título à tradução francesa de Mau
tempo no canal); ou melhor, o apelo simbólico da serpente cega ainda
projetava forte sombra nos desvãos da nossa imaginação.
Mas a
escrita de Vitorino Nemésio chegou à Bahia em 1958, quando aqui foi publicado o
seu livro Conhecimento de Poesia.
Nesta época, a Livraria e Editora Progresso, idealizada por Pinto de Aguiar,
companheiro da juventude de Hélio Simões, fazia da nossa cidade um importante
pólo editorial. Ao contrário da condição de hoje, quando representamos apenas
uma modesta faixa do mercado consumidor de livros, e as edições feitas na Bahia
não passam de publicações domésticas; nos meados do século, importantes obras
locais, nacionais e estrangeiras saíam de Salvador para o mercado nacional. É
verdade que não tivemos uma experiência editorial tão rica quanto a da Editora
Globo, em Porto Alegre, mas no tocante à qualidade servíamos de referência para
os leitores cultos de todo o país. Foi neste contexto que aqui se publicou Conhecimento de Poesia de Vitorino
Nemésio.
Mas,
alguns dos senhores, vindos de além mar, para participar deste colóquio, devem
estar se perguntando: quem foi Hélio Simões? — este centro constelar das relações
luso-brasileiras na Bahia.
Para
o mundo literário, Hélio Simões desponta nos últimos anos da década de vinte,
quando nesta cidade se travava o embate entre, de um lado, a iconoclastia modernista
da Semana de 22 e, do outro lado, a articulação das propostas de modernidade
com as tradições histórico-antropológicas de uma cidade economicamente empobrecida
mas ainda depositária de rica memória cultural. Ao lado de Pinto de Aguiar,
Carvalho Filho e Eurico Alves, Hélio Simões foi um dos fundadores da revista
que serviu de marco ao modernismo na Bahia, Arco
& Flexa (flecha escrita com x, o que a tornava mais pitoresca e próxima
dos primores de Pindorama).
Sobre a sua atuação nesta revista fundadora
do Modernismo na Bahia, em entrevista de jornal concedida há quase trinta anos
ao poeta e pintor Juraci Dórea (posteriormente publicada no livro Eurico Alues: poeta baiano), o escritor
Hélio Simões traduz com modéstia e limitação o papel destes jovens pioneiros.
São suas palavras:
"O grupo Arco & Flexa não era estruturalmente homogêneo. Ligava-o a
juventude e um certo afã renovador que a liderança de Chiacchio procurou dar
unidade na tendência explícita de um "tradicionismo dinâmico” que
constituiu o nosso manifesto. Creio que o nosso grande papel, na esteira do que
vinha fazendo Eugênio Gomes e sobretudo Godofredo Filho, foi procurar integrar
a Bahia na agitação cultural, particularmente literária, que já se manifestara
em outros quadrantes do país."
Ora,
o papel principal deste grupo integrado por Hélio Simões não foi apenas este.
Foi também o de inaugurar uma modernidade literária menos comprometida com a vanguarda
demolidora e mais comprometida enquanto resultado de um processo cultural
longamente destilado. A nova e vertiginosamente rica cidade de São Paulo buscava,
no afã industrial e na velocidade das máquinas, o mecanismo de corte com um
passado depauperado. Estados Brasileiros detentores de antigo e rico acervo
intelectual, como a Bahia e Pernambuco, por exemplo, não podiam abrir mão de
bens preciosos e acumulados a custa de grandezas e misérias em troca de
quinquilharias importadas. É por isso que Gilberto Freire e o grupo do Recife
também tiveram um lugar diferenciado no quadro do Modernismo Brasileiro.
Convém
registrar, embora de passagem, que tanto o grupo de Arco & Flexa quanto outros grupos baianos surgidos nos anos
vinte não tiveram uma postura modernista similar à do grupo paulista. O
modernismo não conheceu, entre nós, uma fase demolidora; ao contrário, chegou a
se opor radicalmente a algumas ações histriônicas desencadeadas pela Semana de
Arte Moderna de 22. O grupo denominado Academia dos Rebeldes, do qual
participaram o etnólogo Edison Carneiro e o romancista Jorge Amado, para citar
apenas dois nomes nucleares na moderna construção de uma identidade mestiça,
(este grupo) não perseguia os mesmos traços de modernidade que caracterizaram o
modernismo da semana de 22. Tais questões, que perpassam o trabalho atual de
uma vertente de pesquisa sobre Crítica Literária e Diversidade Cultural, não cabem
ser desenvolvidas aqui para que não nos afastemos do retrato, já incompleto, de
Hélio Simões.
Mas
este escritor modernista, autor do livro O
Mar e Outros Poemas, não reduziu sua atuação pública à revista Arco & Flexa e ao Jornal da Ala. Considerem-se também o
seu trabalho como diretor da revista A
Renascença, ao lado de Afonso Rui; a sua seção "Crônica de arte'', no Diário da Bahia, em 1929; a coluna
"Idéias e Fatos” na Era Nova;
mais tarde, a seção "Poetas e Sonetos” no jornal Imparcial; além da coluna livros escrita entre os anos sessenta e
setenta, no jornal A Tarde.
Além
de poeta, Hélio Simões era médico e louco era o seu objeto de estudo, enquanto
neurologista. Sabemos que nos anos vinte ainda não existiam cursos de Letras no
Brasil; os jovens tidos como mais promissores se dirigiam para os cursos de
Medicina, Direito ou Engenharia. Na Bahia, nasceu a primeira Faculdade de
Medicina do Brasil, em 1808, ainda com o título de Colégio dos Cirurgiões,
funcionando no local do antigo Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus, onde
Vieira encontrou condições plenas para desenvolver a sua formação intelectual.
Foi neste velho sítio de tradições que, aos 22 anos de idade, o poeta Hélio
Simões concluiu o curso, em 1932. Médico formado, dedicou-se à clínica e,
paralelamente, submeteu-se a concurso de Livre Docência, passando depois a
Assistente Efetivo e Chefe de Clínica da Faculdade de Medicina da Bahia.
Em
1942, quando foi criada a Faculdade de Filosofia e abertos os diversos cursos
de bacharelado e licenciatura, surge também o curso de Letras. Os professores
das novas áreas foram arregimentados entre os docentes e diplomados nas faculdades
tradicionais (Medicina, Direito e Belas Artes, incluindo-se aí Engenharia e
Arquitetura). Por esta época, o poeta Hélio Simões, ocupando interinamente a
cátedra de Neurologia da Faculdade de Medicina, abandona o exercício da clínica
na área da saúde mental, e transfere-se para a recem-fundada Faculdade de
Filosofia. A esta altura, como homem de sensibilidade artística e estudioso das
ciências da cultura, era também professor da Escola de Belas Artes.
Assumindo
a Cátedra de Literatura Portuguesa, Hélio Simões procurou completar sua
formação acadêmica em viagens de estudos à França e a Portugal. Entre os
portugueses, privou da amizade de intelectuais como Teixeira de Pascoaes,
Hernani Cidade, Aquilino Ribeiro e quase uma centena de outros intelectuais.
Desta forma, Vitorino Nemésio foi recomendado a Hélio Simões por amigos comuns,
nascendo assim uma nova amizade, registrada na correspondência ora estudada
pela professora Fátima Ribeiro.
Hélio
Simões figura, portanto, entre os primeiros estudiosos da Literatura Portuguesa
no Brasil, os chamados “cardeais”: Fidelino de Figueiredo, Thiers Martins
Moreira, Soares Amora e talvez alguns outros como Jordão Emerenciano, por
exemplo.
Os poetas modernistas Eurico Alves e Hélio Simões, idealizadores da revista Arco & Flexa.
Por
indicação do Professor Cláudio Veiga, então Diretor do Instituto de Letras e
Presidente da sua Congregação, coube a mim, então jovem professor e talvez um
dos menos indicados, a honra de saudar o mestre em nome do seu corpo docente. E
quando digo que isto foi para mim uma honra, não uso de uma forma de polidez,
mas cedo a uma manifestação de alegria ou de contentamento intelectual. A mesma
honra com que hoje, na condição de seu sucessor como Professor Titular de
Literatura Portuguesa desta Universidade, lembro o nome de Hélio Simões.
Mas
voltemos à História da antiga Cátedra de Literatura Portuguesa.
Com a
criação da Universidade da Bahia, em 2 de julho de 1946, Hélio Simões tem oportunidade
de intensificar as relações com Portugal, convidando escritores e estudiosos
portugueses para, na qualidade de professores visitantes, atuarem na Bahia.
Aqui estiveram, viveram e trabalharam, graças a convite de Hélio Simões:
Eduardo Lourenço, Adolfo Casaes Monteiro, Vitorino Nemésio, Hernani Cidade e
alguns outros nomes ilustres. Casaes Monteiro foi figura importantíssima na
difusão e na popularização da obra de Fernando Pessoa no Brasil. Hernani Cidade
aqui organizou a edição da Defesa do padre Antonio Vieira, perante a Santa
Inquisição. Nemésio publicou o já citado livro Conhecimento de Poesia. Eduardo Lourenço, então professor de
filosofia, iniciou a monumental ponte ligando sua investigação à literatura.
No
Brasil, a Academia Brasileira concedeu-lhe a Medalha Machado de Assis e o escritor
Jorge Amado, no livro Bahia de Todos os
Santos, registra o papel de Hélio Simões com ternura e com admiração:
“Hélio
Simões é o poeta ilustre, o médico, o professor, o fomentador de estudos literários,
o homem da universidade, do intercâmbio cultural luso-brasileiro, com tantos e
tamanhos serviços prestados à Bahia, ao Brasil, à cultura.”
E prossegue Jorge Amado, na
caracterização desde homem que, sem deixar de ser um atento intérprete da
cultura local, foi também um admirador e um difusor da civilização portuguesa.
Retomemos as palavras do romancista Jorge Amado:
“Mas eu sei quanto lhe agradará esse título
no rápido e certamente incompleto perfil que aqui tento traçar de um homem
feito de delicadeza, de interesse humano, de amizade, um poeta não só nos
versos com que assinalou original presença na poesia brasileira, mas também na
maneira de ser, de viver; na maneira de dar-se aos interesses vitais da comunidade
e da cultura; um trabalhador intelectual aparentemente limitado aos gabinetes
de estudo, mas, de fato, ligado à vida popular, à rua. Eu o vi no enterro da
Mãe Senhora — ao lado de outro baiano tão autêntico, Thales de Azevedo — e
percebi que a mão mística da ialorixá estava posta sobre a cabeça do poeta.”
Estas
palavras de Jorge Amado traduzem com justiça o lugar de Hélio Simões, o intelectual
baiano e brasileiro, o poeta, o professor, o singular estimulador das relações
entre o Brasil e Portugal. Relações com as quais também se ocupou Vitorino
Nemésio, em inúmeras páginas da sua bibliografia.
A
respeito desta convergência de interesse entre os dois intelectuais, gostaria
de terminar esta intervenção lembrando um poema de Hélio Simões que ele um dia
me mostrou, quando falava do prazer que encontrou na convivência intelectual
com Nemésio e ao constatar que ambos buscavam pontos de contato entre o Brasil
e Portugal.
Permitam-me os senhores ler aqui
este pequeno poema, intitulado “Duas Cidades” — um confronto desigual e
harmônico entre a vossa Guimarães e a nossa Brasília — e com tais palavras de
Hélio Simões encerrar as minhas palavras sobre Hélio Simões.
Eis o
poema:
“Séculos
caminharam sobre a pedra.
O
muro enegreceu.
Branca
a cidade medra
entre
o cerrado e o céu.
Guimarães
é a pia batismal
e
o castelo roqueiro.
Aqui
nasceu Afonso, o príncipe, Primeiro
e
ao desígnio de Deus que tudo impele
nasceu
com ele
Portugal.
Séculos
caminharam sobre a pedra.
O
muro enegreceu...
Brasília é o crisma. Novo
anseio
de fé ardendo no planalto,
confirmação
de um povo
do
seu destino alto.
Séculos
caminharam sobre a pedra.
O
muro enegreceu.
Branca
a cidade medra
entre
o cerrado e o céu.”