21/11/2015

lirismo expressão pessoal

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

O lirismo como expressão pessoal

Memória da chuva, de Ruy Espinheira Filho, constitui, ao lado da sua Antologia poética, (publicada no ano passado pela Fundação Casa de Jorge Amado), um dos momentos mais expressivos da poesia brasileira dos nossos dias.
A crescente audiência deste poeta, produto legítimo do seu momento e da atual circunstância do país e do mundo, pode ser entendida como uma resposta eloqüente da arte poética às encruzilhadas do lirismo, cujos descaminhos, muitos de nós não soubemos resolver.
A partir da primeira metade do século, o lirismo deixou de representar a expressão de uma individualidade privilegiada para esquadrinhar o território do outro. Se, desde a velha Grécia, a lírica era aceita como manifestação da subjetividade e rito de ascensão do sujeito ao centro constelar do mundo social, o conceito de despersonalização destruiu a clareza das fronteiras entre o lírico, o épico e o dramático.
Drummond sentenciou, inapelavelmente: “Não faças versos sobre acontecimentos.” Isto porque “as afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.”
Fernando Pessoa levou esta explosão ao paroxismo com a dramatização do lirismo. Os heterônimos são outros eus postos na cena do teatro do ser. Através deste caminho radical, o eu do poeta dá lugar a uma multiplicidade de sujeitos verossímeis que atuam como porta-vozes de todos nós. Tal lírica não é mais a expressão do sujeito, mas um lugar de encontro com todos os homens – e espaço da alteridade.
Depois de estabelecida a ruptura com os modelos da lírica até então praticados e consolidada a novidade é que vieram as vanguardas formalistas, cujo alcance da revolução operada no âmbito da linguagem não ultrapassou o significante, ou a camada material da palavra. Demasiadamente concreto, o tartamudear das vanguardas surgidas nos meados do século – como a poesia concreta, a praxis etc. – não chegou ao plano do conteúdo do dito, sempre abstrato e fugidio como o pensamento.
A crise do lirismo se instaurou com a “impossibilidade” de expressar a subjetividade do poeta. A efusão do eu lírico se dissolveu ao tropeçar naquela pedra que havia no meio do caminho.
Ora, o que caracteriza a poesia de Ruy Espinheira Filho é precisamente o choque com esta noção de modernidade na lírica. Quando os caminhos considerados mais atuais passam, de um lado, pelos monumentos da intertextualidade ou, do outro, pela hipertrofia da valorização das camadas fônicas do verso, Ruy mergulha nos desvãos da memória para retirar o lirismo pessoal e transferível.
Sua matéria é o sentimento de um instante fugidio. É a observação de um pedaço de mundo, visto pelas lentes dos seus óculos. É o tempo morto que não se perdeu, guardado vivo na memória.
O impulso memorialístico surge no escritor quando os novos fatos não mais surpreendem, quando não têm a mesma intensidade e o mesmo brilho das coisas passadas, quando a velhice se aproxima. Como alguns poetas não precisam esperar este tempo crepuscular, em Ruy Espinheira Filho, a observação do mundo presente e a recuperação do mundo passado são caudais que confluem para um mesmo estuário.
Leitor voraz e atento dos livros e do mundo, este lírico deslocado num tempo de lirismo raquítico, abre lugar para recuperar a força da subjetividade num mundo onde o sujeito às vezes não conta. Onde a máquina realiza com eficiência e neutralidade o que o homem constrói com envolvimento.
Com o poder da palavra, esta velha arma branca que, às vezes, se transforma em míssil de efeito remoto, o poeta abre clarões por entre os desvãos de um tempo para plantar sementes de um outro tempo. O poeta transita para além da temporalidade, munido de um passaporte irrecusável: o poder da palavra.
É assim que Ruy Espinheira Filho reinstaura o lirismo e nos obriga a fazer silêncio para escutar a sua voz. Tal convicção daquilo que tem para dizer começa por cercar o seu dito de respeito. É assim que ele arranca do leitor palavras de admiração:
“Ruy é poeta que escreve no peito dos homens”, conforme Mário da Silva Brito. Ou ainda: “Sua poesia é hoje uma referência importante na renovação que se processa no lirismo brasileiro”, como Antonio Carlos Brito escreveu no Leia Livros.
Se os movimentos e consubstanciações da arte e do pensamento obedecem a um processo dialético, no qual uma nova síntese de vertentes e valores é a recuperação de uma velha tese enriquecida pela sua antítese, podemos dizer que o autor de Memória da chuva vai buscar nos escaninhos da atemporalidade os materiais perenes da construção. Neste diálogo de tempos superpostos ou nesta dialética de escrituras, Ruy Espinheira Filho se permite atualizar a proposição de Manuel Bandeira no livro Libertinagem, que reúne poemas dos anos vinte, como “Poética”, onde o modernista converso resiste ao sufocamento dos clamores do sujeito.
“Estou fato do lirismo comedido / Do lirismo bem comportando”, reclama Bandeira. “Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbados / O lirismo difícil e pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare”.
Não estaria o poeta Ruy Espinheira Filho restaurando o lirismo liberto de Bandeira? Nos primórdios do modernismo brasileiro, quando os padrões já desenvolvidos pela lírica moderna desde o final do século passado atrofiam o lugar do sujeito, poetas marcados pela exaltação lírica começam a protestar contra a “orfandade de poesia” que a todos ameaçava. É a mesma opção pelo lirismo enquanto voz do sujeito que alimenta a insurreição do autor de Memória da chuva e da exemplar Antologia poética.
Seu ímpeto de nadar contra a corrente permite realizar uma poesia pessoal e transferível. Transferível porque, ao alcançar a terceira margem do rio, aquela que a correnteza guarnece, Ruy Espinheira aproxima as suas verdades das verdades do outro. Liberta as palavras do seu peito para escrevê-las nas grandes muralhas da razão e da sensibilidade dos homens.

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O lirismo como expressão pessoal. Artigo crítico sobre o livro Memória da chuva, de Ruy Espinheira Filho. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 14 abr. 97, p. 7.