Uma fôrma de fabricar sucesso
A característica básica dos livros
destinados ao grande público, os chamados best
sellers, é partir de um esquema ou de uma fôrma de garantida eficiência. A
renovação e o trabalho de descoberta de novos meios de expressão se constituem
em moeda de pouquíssimo valor nesta indústria cultural.
Assim, quando o leitor se encontra
com mais de um livro do mesmo autor termina envolvido num mundo de recorrências
e redundâncias. Repetem-se as mestras estratégias destinadas à fabricação do
sucesso. Um autor de best seller
descobre um fôrma que deu certo e continua moldando novas histórias nesta mesma
fábrica de divertimentos.
Mas, mesmo assim – ou talvez por
isto mesmo –, alguns dos produtos saídos da indústria cultural de massa são
capazes de alcançar surpreendentes resultados. Principalmente, quando o leitor
não conhece muito as manhas do autor. Quando está diante de um contato inicial
e descobre os pontos fortes do seu artesanato.
É verdade que depois de ler dois ou
mais livros do mesmo autor o interesse se anula, porque falta alguma coisa além
do artesanato bem dosado. Falta arte, isto é: renovação de soluções e caminhos.
Mas estas fábricas de sonhos
constituem o forte da indústria editorial porque há leitores – e muitos,
milhares – que só se encontram na redundância, na repetição, do modelo
pré-fabricado. Sua inteligência está treinada para perceber dentro dos limites
do já conhecido, onde a dose de novidade deve ser mínima. Assim, ao criar uma
obra com bons momentos, o autor usa a fôrma para extrair cinco ou dez
“originais” mais ou menos parecidos, encantando o grande público e vencendo na
vida sem fazer força; ao contrário dos artistas agustiados pela busca de algo
indefinido, talvez a perfeição, talvez o compromisso de dar sempre o melhor de
si.
Não esqueçamos, no entanto, que não
só os industriais da escrita constroem suas fôrmas de estimação. Grandes autores, de reconhecido poder
criativo, também se deixam seduzir pelo sucesso já alcançado. O maneirismo de
alguns escritores nada mais é do que uma repetição de si mesmos, um apelo à
valorização da fôrma em lugar da forma criativa.
O grande García Márquez já foi
acusado de desenformar novos livros de uma mesma fôrma. Da mesma fórmula de
sucesso garantido.
Se um prêmio Nobel de Literatura
pode fazer concessões à burrice de estimação de cada um de nós, comodamente
satisfeitos com o déjà vue, porque
não um escrevente que vive da sua pena?
* * *
É evidente que o nosso gosto pela
redundância, pela repetição, ou pelo já conhecido, é uma concessão à preguiça
mental, à boa burrice de estimação. Mas é verdade também que a redundância é
uma marca do homem. Mesmo no falar cotidiano demonstramos o nosso gosto pela
redundância. Repetimos as idéias, muitas vezes, de muitas formas diferentes. Às
vezes desnecessariamente.
A poesia moderna, ao despir-se da
redundância – ao aceitar a idéia segundo a qual “para o bom entendedor, meia
palavra” – deixou de ser entendida por largas fatias de público acostumado a
ler poesia alambicada e verbosa. O texto enxuto, econômico, às vezes não basta.
Por falta de entendedor. Daí a prosa para a massa caminhar em sentido inverso.
* * *
Neste espaço do kitshen, Dean R. Koontz soube fabricar uma fôrma eficiente.
Especializado em narrativas fantásticas de horror, ele consegue, em Esconderijo, realizar um livro bem
dosado. Contar uma história em que os motivos se entrecruzam formando uma trama
bem urdida. O foco ora se volta para as peripécias do protagonista, ora ilumina
outros personagens igualmente importantes.
Suspense, ação e horror são os
ingredientes do livro. A ideia é antiga: o eterno duelo entre o bem o mal. O
maniqueismo é uma forma de tornar os personagens planos e sem maior dimensão
humana. Mas o resultado não deixa de ser eletrizante.
Por isso temos que admitir que Dean
R. Koontz não é um escrevente qualquer. É um escritor, um escritor de massa,
com o qual, às vezes, o escritor erudito precisa aprender.
Embora envolva no seu livro
sugestões de magia negra e outras coisas, a crença judaico-cristã preside o
grande duelo do livro: de um lado, Vassago, um dos nove príncipes do Inferno,
do outro lado, Uriel, um dos arcanjos do Deus ocidental. Os homens ou os
personagens da sua narrativa são meros instrumentos de ação destas forças polares.
Mas há um ponto muito curioso no
livro. Em meio a uma narrativa onde a inteligência dorme ou se espreguiça,
Koontz dá uma espetada no acomodado leitor. A tradição cristã identifica a
sexualidade com a degradação moral. Dito assim, a coisa sôa muito forte, mas
não esqueçamos que tudo que diz respeito ao sexo e ao prazer é tido como
pecado, como impureza.
A nossa tradição moral e religiosa
entra em choque com a velha idéia grega de duas forças antagônicas. De um lado,
Eros, a força da criação, do prazer e da vida. Do outro lado, Thanatos, a força
da destruição, da paralisação e da morte.
Pois bem, curiosamente, o personagem
que se identifica com Vassago, com a força do mal, tem horror ao sexo. Nas
narrativas de inspiração cristã, as figuras diabólicas são altamente eróticas,
enquanto as figuras identificadas com as forças divinas são inocentemente
frias. Segundo o verso de Capinam, “todos os santos têm o sexo amputado”. Neste
livro, Dean Koontz vira a mesa do jogo: as forças do mal detestam o sexo, por
tudo aquilo que ele representa de vitalidade, de criação, de epifania do prazer
e do amor. Voltado para a destruição, a morbidez e a morte, Vassago trava sua
luta com a vida.
Este é, sem dúvida, o ponto alto do
livro, em termos de convite à participação do leitor. De solicitação ao
confronto de idéias. Ou em outros termos: aí o autor consegue ser artista.
O artista não é aquele que
transgride os limites do estabelecido? Que extrai o imprevisto sumo da pedra?
Não é aquele que procura ver o outro lado dos objetos, o lado que o olhar se
recusa a alcançar?
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Uma fôrma de fabricar sucesso; artigo crítico sobre Esconderijo,
de Dean R. Koontz. Romance. Rio de Janeiro,
Record, 1994. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 23 jan. 95, p. 5.
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Leitura Crítica é publicada todas as segundas-feiras,
na página 5 do segundo caderno de A TARDE.
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