18/11/2015

Mia Couto

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

A boa literatura da África

            Os escritores dos países africanos conquistaram uma audiência seleta nas duas últimas décadas. Como contrapartida das guerras e investidas coloniais, editoras inglesas e francesas criaram coleções destinadas a reunir as obras mais significativas dos autores do continente. Deste modo, o interesse pela produção literária de pequenos países da África tornou-se uma das modas do mundo universitário, um dos kitschs que empolgam pesquisadores à cata de originalidade. O fenômeno alçou também o Brasil e Portugal, este último país, responsável pela exploração colonial de algumas nações africanas, onde hoje se fala o português: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe.
            Umas das vantagens deste modismo acadêmico é que, quando muita gente começa a estudar as chamadas “literaturas exóticas” (termo abolido em decorrência da valorização da diferença), elas ganham o interesse da indústria editorial. Em meio a textos sem maior expressão, além do seu universo exótico, aparecem obras que merecem ser lidas e conhecidas.
            Mia Couto é um destes escritores. Suas obras conquistaram o mercado português e aportaram no Brasil, onde ele ganhou, o ano passado, o Prêmio de Melhor Romance Estrangeiro da Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo livro Terra sonâmbula.
            Tanto aqui quanto lá, em Portugal, a crítica vem cobrindo a obra deste escritor moçambicano de elogios. Para José Saramago, estrela maior das passarelas literárias portuguesas, “Mia Couto trouxe à língua a frescura da invenção e o contacto com o fantástico caldeirão que ela é quando falada e escrita por muitas e variadas gentes.” De fato, a invenção lingüística, a luta com as palavras, constitui o centro nervoso da oficina verbal de Mia Couto. Fortemente comprometido com o trabalho de extrair novos sentidos das velhas expressões e, principalmente, de encontrar novas expressões para velhos sentidos, ele parece querer dialogar com alguns feiticeiros do idioma, como João Guimarães Rosa, por exemplo.
            A forja das novas palavras e a constituição insólita dos nomes próprios dá curso aos riachinhos de água imprevista que correm da escrita de Rosa. Mia Couto batiza suas criaturas com nomes como Tristereza, Felizbento ou Virigílio, todos marcados por um parentesco distante, ou próximo, com personagens de Guimarães Rosa. O moçambicano estabelece seu diálogo, através das redes da língua comum, com a tradição literária de uma outra ex-colônia portuguesa, o Brasil. Se há muito tempo os nossos autores dialogam com a África, agora o velho continente responde ao diálogo, propondo novas falas, na voz deste jovem escritor.
            Estórias abensonhadas reúne dezesseis contos de qualidade diversa. Alguns unem uma boa história à oficina de palavras de Mia Couto. Outros se perdem na simples sedução do discurso pelo discurso. Num neo-barroquismo conceptista que marca parte da literatura deste fim de século. É curioso observar como alguns autores que são capazes de produzir um bom texto, consciente ou inconscientemente, se desobrigam de ter uma boa história para contar. Cada vez mais a modernidade — ou, conforme os teóricos mais apressados: a pós-modernidade — faz a viagem circular de retorno, através de um neo-barroco. O conceptismo ou o engenho da forma mantém a sua primazia.
            Mas outros contos de Mia Couto trazem até nós o mundo renascido no pós-guerra de Moçambique. As esperanças e aflições de um povo associadas ao saber ancestral e mantido a salvo do invasor europeu. Mitos fundadores de um cultura e acontecimentos do admirável mundo novo engravidam-se mutuamente para formar o realismo mágico ou o universo fantástico da narrativa de ficção de Mia Couto. Quando esta realidade fantástica está enraizada simultaneamente no chão moçambicano e no gosto literário do nosso tempo, surgem histórias bem sonhadas e contos bem construídos.
            Aos textos de ritmo lento e monótono, onde as peripécias verbais não são suficientes para encobrir a falta que fazem outras peripécias, vividas pelos personagens, opõem-se contos que ficam na lembrança do leitor e convidam à releitura. “Nas águas do tempo”, o primeiro texto do livro, é uma boa recepção que o autor proporciona aos seus leitores, abrindo o caminho para o transitar de outras histórias, como as estranhas “Flores de Novidade” ou o confortante final feliz do Cego Estrelinho.
            “Lenda de Namarói” é um dos tantos bons momentos do livro. Um mito tribal, reinventado pela narrativa em primeira pessoa de uma mulher, transporta-nos a um tempo mítico em que as mulheres eram as únicas criaturas humanas do lugar. Da infertilidade de algumas surgiram os primeiros homens, seres incapazes de se desdobrarem em outros seres.
            Esta narrativa ancestral, em tudo oposta aos mitos da primazia masculina que constituíram a civilização moderna, insere-se no contexto das diversas narrativas míticas onde o papel da mulher é reinterpretado por culturas ditas primitivas. Darcy Ribeiro trouxe das suas andanças pelas selvas do Brasil um mito análogo. Formulações e interpretações do real, como estas, jogam por terra a “inveja do falo” que Freud põe na base da mentalidade ocidental, ao fazer suas análises interpretativas. A partir dos nossos mitos de homens do mundo dito civilizado, a mulher estaria marcada por uma falta, por uma ausência.
           O conto deste escritor africano, desentranhado de antigos saberes, inverte a polaridade. Ora, este reinventar o olhar, este reinverter os saberes não é a marca da escrita criativa?
            Com Mia Couto vemos o mundo pelas lentas limpas de uma narrativa que não segue pela estrada principal. Os atalhos, caminhos e veredas descortinam outras paisagens para os olhos. Basta saber ver.
O que não é fácil.

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Contos africanos. Artigo crítico sobre o livro Estórias abensonhadas, de Mia Couto. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, 136 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 07 out. 96, p. 7.