13/11/2015

Narrador das roças

Euclides Neto: um narrador das roças e dos roceiros


Quando o menino Euclides Neto começou a ler os primeiros livros, o realismo social dos regionalistas de 1930 dava as contribuições mais frutíferas à literatura brasileira, levando suas conseqüências até Portugal, com o Neo-Realismo.

De um lado, a densidade de alguns escritores, do outro, o honesto engajamento com o homem e sua realidade abriram novos caminhos para a criação literária, onde a solidariedade e o humanismo se confundiam com os projetos estéticos.

É dentro desse quadro que o cronista e ficcionista Euclides Neto continua pintando suas paisagens e retratando o que viu e viveu. É essa mesma solidariedade com implicações políticas ou religiosas que marca de modo indelével, aqui com implicações de uma ideologia humanista, a escrita desse homem da terra.

Os Magros é um romance da juventude do autor, agora reeditado como forma de reafirmar a sua perfeita sintonia com a obra da maturidade. O velho Euclides Neto, ex-prefeito de Ipiaú, onde desenvolveu um modelo planejado de reforma agrária, ex-secretário de Estado, onde queria fazer bem mais, continua sendo o mesmo escritor solidário ao homem, como nos tempos das auroras puras. Seu texto tem um objetivo maior: dar voz a todos aqueles que foram sufocados pelas injustiças sociais.

Mas não se trata apenas de um discurso bem intencionado. Muitos existem. Trata-se de um discurso literário situado e datado. Situado na zona cacaueira da Bahia. Datado da primeira metade do século, quando a cultura do cacau atingiu o seu esplendor.

Mas, desafiando o calendário, o discurso engajado de Euclides Neto continua abrindo espaço nestes anos de fim de século, quando o esplendor do ciclo do cacau foi inócuo para atenuar a pobreza e a miséria de muitos que, com suas mãos, construíram toda aquela riqueza.

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Contam que o poeta Manuel Bandeira perguntou uma vez a Adonias Filho:
— O que o sul da Bahia produz, além do cacau?
— Produz escritores, respondeu Adonias.

O cacau foi destruído pela praga e a riqueza pela falta de visão daqueles que pensavam que o ouro é um bem eterno. Mas os escritores, estes sim, ficaram e são hoje o patrimônio maior da nação grapiúna. Sosígenes Costa, Jorge Amado, Florisvaldo Matos, Ildásio Tavares, Adonias Filho, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, Euclides Neto e tantos e tantos mais que convém não tentar citar a todos, porque muitos seriam esquecidos.

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É do fato de ser situado e datado que nascem as virtudes e os defeitos de Os Magros. As conquistas formais de Graciliano Ramos, o grande construtor e o surpreendente estilista de magreza dessa geração, deixaram, sem dúvidas, marcas na escrita de Euclides Neto. Algumas indesejáveis e desnecessárias, que ressoam como ecos inúteis. A cadela dessa família de vidas magras do romance euclidiano não tem nome de peixe, mas se chama Sereia. A proximidade eufônica e marinha com Baleia cria no leitor preconceituoso a expectativa de um pastiche.

Mas Os Magros não tem nada de pastiche ou imitação simplória. É obra autônoma que testemunha o engajamento da escrita de um homem comprometido com sua terra e, principalmente, com a gente que vive nela.

É verdade que Euclides Neto constrói seu romance observando alguns pontos de identidade com Vidas Secas. Dialogando com essa obra, ampliando suas conquistas. E isto confere atualidade e interesse ao romance agora reeditado. A viagem intertextual de Os Magros sugere inúmeras abordagens e reclama a atenção da crítica acadêmica, universitária, para o texto euclidiano.

Aliás, já é tempo das pesquisas de pós-graduação na Bahia, com suas dissertações e teses, se voltarem para a produção da comunidade na qual está inserida. Naturalmente, não se chega longe trabalhando os autores mais jovens, cujas obras ainda não percorreram a implacável circularidade imposta pelo tempo, mas é preciso estudar aqueles que se inscreveram num momento da história literária que já pode ser contemplado com o necessário distanciamento crítico.

Ler esse romance de Euclides Neto implica em reler e compreender a recepção do realismo social trazido pelo romance de 30. Já podemos observar quando a simples imitação se transforma em diálogo intertextual destinado a levar adiante uma conquista, a reforçar um projeto ideológico ou estético.

Duas narrativas paralelas constroem a textura romanesca de Os Magros. A primeira, erigida à condição de eixo da obra, é a dos magros trabalhadores de aluguel numa roça de cacau. A outra, a dos gordos proprietários, entra como contraponto, numa regularidade empobrecedora. Ao retomar o livro nessa nova edição o autor poderia ter revisto o caráter mecânico do contraponto. A narrativa, de um capítulo para outro, alterna o cenário da magreza rural com a entediante fartura urbana dos donos de terras e gentes. A previsibilidade é um elemento empobrecedor. Mesmo quando tem pouco a dizer, o autor impõe uma pequena narrativa contrapontística, criando uma monótona regularidade. Quebrar um pouco a mecânica regular desse contraponto daria mais ritmo ao livro.

É esse contraponto que – ao contrário do que acontece em Vidas secas, onde os contos em torno de uma mesma família se encadeiam formando uma novela – propõe a estrutura do romance. No livro de Euclides Neto as duas narrativas distintas se escrevem como linhas cruzadas, mas também, como na obra de Graciliano, alguns capítulos funcionam como contos autônomos. Alguns verdadeiros momentos de elevada escrita, como o capítulo XIII, onde após a morte de um dos filhos de João, o gerente da fazenda persegue os meninos pelo mato. Página autônoma e antológica, um dos momentos altos do livro.
Voltando aos pontos críticos, a oposição entre a miséria dos magros protagonistas e a opulência dos senhores da terra parece demasiadamente esquemática, conservando aí uma ingenuidade analógica à das primeiras obras de um Jorge Amado, por exemplo, que nos romances da juventude via todos os pobres como bons e todos os ricos como maus. Tanto que Jorge revê essa forma de maniqueísmo nos romances da maturidade, por isso, talvez, chamados de romances burgueses pelos patrulheiros linha dura, aos quais o velho Engels diria que falta dialética.

Quando Euclides Neto opõe a miséria do casebre em que vivem as nove pessoas da família de João à fartura do “palacete” em que a fazendeira mora praticamente sozinha, o impacto do contraste é quebrado pelo excesso de tintas que pintam a riqueza com um realismo ingênuo. Isto ocorre no segundo capítulo do livro, no qual a casa do Doutor Jorge é chamada de palacete e suas excelências são acintosamente decantadas. O efeito seria melhor, se o contraste fosse mais discretamente mostrado. Claro que isso agrada aos antigos comunistas de carteirinha, mas foi por isso mesmo que nos anos do patrulhamento stalinista o bom texto se afastou do Partidão.

Estas marcas do realismo socialista tornam o livro demasiadamente datado, para alguns leitores, especialmente aqueles que apreciam a capacidade de um escritor de rever as suas obras ano após ano. É o que fazia, por exemplo, Miguel Torga, autor admirado por Euclides Neto. Poucos dias antes de morrer, Torga revia a vigésima edição de um dos seus livros de contos, apagando deles as marcas demasiadamente circunstanciais.

Tal desprendimento faria de Os Magros um livro bem mais vivo e permanente porque, não tenhamos dúvida, trata-se de uma obra que deve ser lida e conhecida por milhares de leitores, permitindo o livre soar dessas vozes sufocadas que, ouvidas, ajudariam as pessoas a passar muitas coisas a limpo.


as fontes populares

A narrativa de Euclides Neto é tributária direta das fontes populares rurais, notadamente da região sul da Bahia, marcada pela opulência e pela miséria das roças de cacau. Esse singular escritor baiano nasceu nos heróicos anos de bravatas e astúcias desbravadoras do modernismo brasileiro e morreu em abril do último ano do século passado, sem viver as esperanças do novo milênio. Escritor ilustrado nos bancos e páginas da academia, com pleno domínio do registro padrão da língua culta, Euclides Neto optou por um projeto de incorporação das formas, substâncias, conteúdos e expressões populares ao seleto clube da literatura culta.

            Recusando-se utilizar as fontes populares como signos do exótico e do pitoresco, mas se valendo de tal riqueza como ampliação dos estreitos corredores da fabulação erudita, esse singular narrador conseguiu atingir o domínio pleno da arte da escrita inventiva no seu derradeiro livro: O tempo é chegado, publicado postumamente, em 2001, pela Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, com o selo da Editus.

            O texto de Euclides Neto confere à narrativa o trânsito entre dois espaços, primitivamente unidos e depois dissociados pelo discurso acadêmico: os espaços da Literatura e da História. Nesse lugar de reunião ancestral, onde a arte de narrar mira mais os ouvidos do que os olhos, a experiência cotidiana e o saber comunicável transitam e se realimentam nos interstícios dos sujeitos do discurso, onde quem ensina aprende e o aprendizado é uma ensinança.

            Os narradores perdidos no interior do tempo-espaço, ou guardados e defendidos, preservados, portanto, nas dobras e nos lugares ocultados de cada cultura, destilam o sabor e o saber da narrativa primordial. Euclides – Neto e avô de saberes narrados, não obstante as leituras modernas e contemporâneas que o tornaram um profissional cultivado nos moldes da academia – retornou à fonte primitiva, perdida no interior da terra e do homem, para beber o elixir da linguagem esquecida.

Nesta fonte da eterna juventude dos povos, o narrador apenas conta e transmite experiências, saberes ou mesmo dissabores.

O narrador moderno e contemporâneo profana a história contada, junta o mito à imagem de novos deuses da razão, isto é, casa o conto, ou o astuciado, com a sua explicação. Já o narrador primordial, apenas, narra – porque tudo é novo, misterioso e inexplicável.

A narrativa literária que a modernidade nos legou é marcada pela sanção da lógica que a tudo explica. O escritor dos nossos dias conta uma história que já contém em si mesma uma explicação dos fatos narrados; ou, muitas vezes, a explicação dos fatos, que nos é sugerida, constitui o desdobramento ou o desenlace da narração. A explicação e a compreensão confundem-se e transmutam-se na própria narrativa. Portanto, nada mais distante do mito do que esse tipo de narrativa engendrado pela razão crítica. Daí o fato da tradição moderna destacar, desde o século XIX, um tipo de narrativa como pertencente ao gênero fantástico. Opondo-se à idéia de realismo literário, surgiu a noção de realismo-fantástico, porque o fato narrado que não contém sua própria explicação ultrapassa os umbrais da realidade narrativa.

Euclides Neto faz o narrador das suas histórias recuar ao tempo do mito, onde o que se conta não precisa de outra legitimação além do próprio contar. Onde História e Literatura, hoje dois saberes distintos, eram uma só narrativa. Os velhos cronistas foram os pais dos novos historiógrafos, gerando tais filhos quando esposaram uma virgem então inacessível: a compreensão do fato narrado.

No vórtice dessa viagem, unindo tempos antagônicos, Euclides Neto constrói o poder de sedução da sua escrita, chegando ao magma, à lava, ao cristal das histórias reunidas no livro O tempo é chegado.

Esta multitemporalidade que pode se converter em atemporalidade, faz as narrativas de Euclides Neto resvalarem para o estranhamento, para um espaço insólito ou uma terra de ninguém, evocando em alguns contos do autor a reminiscência de algo que está desaparecendo. Benjamin, no livro Magia e técnica, arte e política, ao estudar as características do narrador na obra de Nikolai Leskov, observa que as características orais da arte de narrar estão em processo de extinção, porque a sabedoria – “o lado épico da verdade” – não encontra espaço numa sociedade marcada pelo desaparecimento das relações interpessoais construídas no trabalho, nas atividades e ofícios em que a troca de experiências constituía a produtividade. Para Walter Benjamin, “esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular de forças produtivas.” (Benjamin, 1987, p. 201)

Podem-se evocar algumas idéias desse pensador da escola de Frankfort, a propósito da ficção de Euclides Neto e da sua busca de caminhos na esfera do romance, para achá-los, depois, na prática do conto, quando realiza a maturidade da sua arte de narrar. Benjamin observa que a tradição oral, que é característica da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente diversa de tudo aquilo que viria a definir o romance como forma literária. As formas narrativas que aspiram romper com a tradição da cultura ágrafa se afastam da tradição oral, dos contos de fada e das lendas, buscando novos saberes na transmissão escrita da ciência. Por outro lado, há formas narrativas menos preocupadas com a compreensão do admirável mundo novo e mais comprometidas com a transmissão da velha e renovada experiência adquirida no dia a dia das pessoas. Aqui se fala, particularmente, do conto de Euclides Neto. O narrador primordial retira da própria experiência ou da experiência relatada por outras pessoas as coisas que são incorporadas à sua história.

No panorama do conto brasileiro do século XX, Euclides Neto configura os traços do narrador benjaminiano; como alguém que vem de longe e conta aos seus ouvintes a experiência e a sabedoria trazidas de lugares mágicos, porque defendidos pelas brumas do desconhecido. Essa distância configurada no saber no narrador é, segundo Benjamin (p. 202), o longe espacial das terras estranhas e o longe temporal contido na tradição.

Para o filósofo neo-hegeliano, somos pobres em histórias surpreendentes mesmo quando somos torpedeados por notícias de todos os cantos do mundo, porque os fatos que constituem as notícias já chegam acompanhados de explicações. Benjamin entende que a maior parte do que é veiculado está a serviço da informação, em detrimento da narração; e afirma textualmente: “Metade da arte narrativa está em evitar explicações.” (p. 203)

É essa ausência de intervenção da lógica e do pensamento explicativo que assegura a permanência, na memória do leitor, tanto das antigas narrativas históricas, construídas pelos cronistas e escrivões reais, quanto do conto, de ontem ou de hoje, fundado em tais bases estruturais.

Para elucidar o raciocínio aqui desenvolvido a propósito dos contos de Euclides Neto e do seu lugar no quadro da literatura brasileira do século XX, vejamos o que diz o pensador da escola de Frankfort:

“Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. Nesse caso, a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história. Pense-se no trecho de Hebel, citado acima, cujo tom é claramente o da crônica, e notar-se-á facilmente a diferença entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através dos seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia está o plano da salvação, de origem divina, indevassável em seus desígnios, e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável.” (Benjamin, 1987: 209)

Herdeiro dessa forma narrativa, pela via da tradição oral que também a alimentou, Euclides Neto substitui a explicação plausível pela lógica da fábula, identificando a estrutura do seu texto com a do texto do mito. A narrativa mítica não precisa explicar aquilo que narra pois ela mesma já é uma explicação para o que ainda não se explica.

Autor de ensaios, crônicas e romances, Euclides Neto iniciou-se nas artesanias da escrita com a geração emblemática de 45, marcada pela fusão do veio telúrico dos anos 30 com os tumultos de um mundo novo que se refazia. Ao longo de doze livros publicados em vida, o escritor desenha a cartografia de um percurso e as perdas e ganhos de um percalço, para deixar como herança da sua obra de escritor multiface, polígrafo, um livro póstumo que é uma espiral parabólica no panorama da nossa literatura.

Utilizo a expressão espiral parabólica no sentido de lugar geométrico: plano de um ponto que se move com velocidade constante ao longo de uma reta; girando, por sua vez,  com movimento uniformemente acelerado em torno de um ponto fixo.

Simples e complexa, ingênua e maliciosa, divertida e cismada, dissoluta e contrita, ilusória e densa são adjetivos que escorrem, numa cascata cambiante de oxímoros, a dialogar entre si no faz de conta da prosa maneira de Euclides Neto.

Ora aceitando os desafios da escrita literária do seu tempo, ora recuperando o pensamento silvestre que escorre num dedo de prosa matuta, o texto narrativo de Euclides Neto contempla a re-apropriação do pensamento selvagem, no sentido proposto por Lévi-Strauss. O contista de O tempo é chegado transita com desembaraço entre espaços marcados pela incompatibilidade, promovendo a alquimia da criação artística que transmuta a dureza dos metais na ductilidade do difuso.

Os contos reunidos nesse livro de guardados, achados e perdidos, chegam sorrateiros, como o matuto que pede licença para entrar nas casas da cidade, com gestos silenciosos e humildes. Mas sua entrada, não obstante a suavidade matreira, é acompanhada por uma luminosa inquietação. O gosto e o saber estabelecidos são delicadamente postos em suspenso no curso de um astuciado que nos leva de volta a lugares descolonizados pelo pensamento selvagem.

A ingênua simplicidade dos contos de fadas estão a serviço de uma dicção culta, ampliada pela experiência do homem e da mulher que vivenciam uma outra cultura, subterrânea e subjacente como um lençol freático a dessedentar os exaustos caminhantes de uma seara massificada e exaurida por um vendaval de informações.

Euclides Neto e Cid Seixas, em lançamento do livro O espelho infiel, 1996.


Euclides Neto 
e a decadência do ciclo do cacau

O livro do escritor e jornalista Elieser Cesar O romance dos Excluídos: terra e política em Euclides Neto nasce como um estudo essencial para a compreensão de um segundo momento da ficção grapiúna. Se Jorge Amado e Adonias Filho, para vislumbrarmos dois marcos de altitude relevante na literatura brasileira – um da geração de 30 e o outro da geração de 45 –, constroem o inventário épico da fundação de uma nova cultura de léguas prometidas nas terras do sem fim, Euclides Neto fixa a sua obra no momento de apogeu e prenúncio da decadência dessa mesma cultura do cacau.

Elieser Cesar observa que Euclides Neto retoma a saga da região do cacau onde Jorge Amado parou: na consolidação da lavoura cacaueira e do seu processo civilizatório. Embora o leitor polêmico possa discordar dessa afirmativa, quando feita de modo peremptório, lembrando que o próprio Jorge Amado já propõe o desdobramento da sua saga, focando a substituição dos desbravadores pelos herdeiros, a afirmação de Elieser Cesar não cai no vazio,  pois é com Euclides Neto, contemporâneo e protagonista desse segundo ciclo, que o foco se desloca dos momentos heróicos para os momentos da simples e pura exploração do trabalho dos homens e mulheres de eito. Os novos “coronéis da cidade” vivem exclusivamente do usufruto de uma terra por outros lavrada.

Na monumental síntese do chamado ciclo do cacau, por ele mesmo construído, Amado não se limita em Tocaia Grande – a face obscura a percorrer os velhos caminhos da sua ficção. Ele se reapropria dos seus temas e tipos para anunciar o processo de degeneração dos heróis trágicos da epopéia grapiúna em bufões de uma tragicomédia macabra. É o que ocorre claramente na construção de uma personagem caricata e metonímica como o bacharel Venturinha, novo coronel de gabinete; em tudo antagônico à figura emblemática do ex-jagunço Natário da Fonseca, investido das funções de capitão descobridor e fundador de Tocaia Grade, uma nova Canudos nascida do sonho dos excluídos.

Se o capitão Pedro Álvares Cabral funda, nas mesmas terras do sul da Bahia, uma nação para uso e proveito del-Rei, o capitão Natário da Fonseca intenta fazer ressurgir uma outra Canudos, uma cidadela também sitiada e exterminada, até mesmo no nome. Entre Tocaia Grande, reduto de bravos, e Irisópolis, metonímia de uma nação corrompida, se interpõe a face obscura.
Convém observar que esse livro da maturidade de Jorge Amado, publicado nos anos oitenta, é posterior à vertente do trabalho de Euclides Neto, iniciada com Os Magros, de 1961. Consideradas as datas, podemos repetir a afirmação de Elieser Cesar, segundo a qual Euclides Neto retoma a saga onde Jorge Amado parou.

“Em Euclides Neto não vemos mais a expansão e a cristalização do poder dos coronéis. Em seus livros não temos mais a ligação telúrica do proprietário com o solo da promissão e do lucro. A fazenda é, em geral, o meio pelo qual o proprietário vive de rendas.

Diríamos que esse escritor enceta a história da decadência das terras do cacau, iniciada quando o proprietário, herdeiro do antigo coronel, já não vive na fazenda, mas em Salvador, numa luxuosa mansão e entrega todos os cuidados da roça ao capataz, aguardando apenas a remessa dos lucros para sua conta bancária.”  (Cesar, 2003, p. 12.)

Para traçar a analogia a partir de fraturas entre o fulcro do conjunto das obras de Jorge Amado sobre a região do cacau e o cerne dos romances de Euclides Neto que constituem a “tetralogia dos excluídos”, o estudioso parte da identidade entre os dois romancistas: a luta de classes nas terras do cacau. Nesse percurso de aproximação, o livro está centrado nos romances Os Magros, de 1961, O Patrão, de 1978, Machombongo, de 1986, e A enxada, de 1996, enquanto integrantes do painel caracterizado por Elieser Cesar como uma tetralogia dos excluídos.

Para a compreensão do texto de Euclides Neto enquanto retomada dos modelos da literatura comprometida com o realismo e a raiz telúrica dos anos 30, o autor recua ao romance social do século XIX, traçando um painel sumário de um século: 1830-1930. Em seguida, como antecessor imediato da eclosão da tetralogia de Euclides Neto, Cesar vai buscar os fundamentos e ensinamentos marxistas postos em prática na coleção Romance do Povo, dirigida por Jorge Amado e publicada pela Editorial Vitória, de 1953 a 1955, incluindo vinte obras tomadas como arquétipos do realismo socialista.

“Impulsionada pelos propagandistas do regime soviético, em várias partes do mundo, a discussão sobre o realismo socialista granjeou defensores fora da URSS, conquistando a simpatia das democracias populares e dos partidos comunistas dos países capitalistas. A partir de 1948, inflamou também os escritores brasileiros, sobretudo aqueles ligados ao Partido Comunista Brasileiro”. (Cesar, 2003, p. 43.)

Autor de ensaios, crônicas e romances, Euclides Neto se iniciou nas artesanias da escrita com a geração emblemática de 45, marcada pela fusão do veio telúrico dos anos 30 com os tumultos e as exigências de um mundo novo que se refazia. (Cf. Seixas, 2002, p. 4.) Convém reafirmar, portanto, que Euclides Neto pertence, cronologicamente, à geração literária de 45: tendo nascido em 1925, publica dois romances da juventude que precedem Os MagrosBerimbau, em 1946 e Vidas Mortas, em 1947. Desse modo, o homem e o escritor vivem as inquietações ideológicas comuns aos jovens dos anos 40 e 50, inquietações estas que irão refletir as preocupações de um Brasil marcado por golpes, tentativas de golpes e governos instáveis, dos anos 30 aos 60, quando ele inicia a sua tetralogia, um pouco antes de se abater sobre o país a longa ditadura militar de 64. O tom inflamado que, às vezes, parece ecoar, ingenuamente, as obras de Jorge Amado e de Graciliano Ramos, representa uma tentativa de responder, nos anos 60, aos mesmos problemas sociais que atravessam incólumes a primeira metade do século.

“Publicado em 1961, Os Magros é, do ponto de vista estilístico, o mais ousado livro de Euclides Neto. Escrito com a técnica do contraponto, o romance é a história de duas famílias opostas em tudo e diferenciadas pela miséria e pela opulência. Novamente encontramos o leitmotiv da obra do escritor grapiúna: a luta de classes nas terras do cacau da Bahia. Em Os Magros  podemos identificar um diálogo intertextual com dois outros romances da literatura brasileira, ambos representantes da temática social nordestina dos anos 30: Cacau, de Jorge Amado, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos.” (Cesar, 2003, p. 81.)

Se o romance Os Magros é considerado por Elieser Cesar como o livro de Euclides Neto mais ambicioso na sua estrutura literária, Machombongo ocupa idêntico lugar no que diz respeito à concepção política. Resgatando do esquecimento os anos de chumbo do regime militar e a heróica resistência de alguns brasileiros mais ousados, o romancista se vale de personagens reais, como o deputado Haroldo Lima, e de personagens fictícios, como o coronel Rogaciano Boca Rica, para fixar o painel das grandezas de poucos e das misérias de muitos, sob as botas dos generais-presidentes.

Na fixação do contexto social em que surge o primeiro romance da tetralogia dos excluídos, Elieser Cesar remete o leitor para o final dos anos 50 e o início dos anos 60, quando os ideais nacionalistas e de esquerda entravam em choque, no plano continental, com o imperialismo e as garras das águias norte-americanas e, no plano nacional, com fome no campo, gerada pelo latifúndio improdutivo.

Curiosa é a relação feita entre Os Magros e um romance publicado no ano anterior: Irmão Joazeiro, de Francisco Julião (1960). Pouca gente sabe que o conhecido deputado e líder das Ligas Camponesas também se valeu da literatura como arma de combate político e social. É possível que o romance de Julião não tenha chegado ao conhecimento de Euclides Neto, mas as lutas dos trabalhadores rurais, bem como a criação da Sociedade Agrícola dos Trabalhadores de Pernambuco, núcleo da organização camponesa que precedeu os atuais movimentos pela reforma agrária, por certo não escaparam ao olhar atento do escritor grapiúna.

No mesmo ano em que Euclides Neto publica Os Magros, ocorre a sua eleição para prefeito de Ipiaú, culminando com a desapropriação de terras improdutivas para a implantação de uma propriedade coletiva destinada a possibilitar a agricultura de sobrevivência a centenas de trabalhadores rurais que alugavam sua força e seu suor às grandes propriedades dessa região de monocultura. A concretização da utopia do prefeito-escritor passou a ser conhecida como Fazenda do Povo e, com o golpe de 1964, Euclides Neto foi arrancado do cargo para o qual foi eleito e a sua mais importante obra de caráter social foi destruída, por parecer aos militares e à lógica das baionetas uma iniciativa comunista.

Nesse livro, O romance dos Excluídos: terra e política em Euclides Neto, Elieser Cesar considera o autor de O Patrão o nosso último escritor militante de esquerda. Ao tempo em que empreende uma abordagem crítica da importante tetralogia desse ficcionista baiano, não descuida de possibilitar ao leitor uma contextualização indispensável à compreensão dos romances estudados.


REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

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