CONTOS DE ANGÚSTIA E
NOJO
Graciliano
Ramos:
“A arte de Breno Accioly
me faz pensar
em coisas e figuras da terra onde ele nasceu:
espinhosa, não se adapta
a medida, cresce fora da lei. Tem a bárbara firmeza
do cangaceiro
e a resistência
do mandacaru”.
Nos seus primórdios, a arte não se
queria uma donzela intocável e exigente, mas uma dançarina alegre e sedutora.
Assim, ela se tornou parte da vida, sem querer substituir a vida. O seu valor
residia nisto. Em ser uma extensão da vida. Uma forma de transgressão dos
caminhos menos satisfatórios como possibilidade de abrir veredas mais
confortáveis.
Mas, ao buscar novas expressões e
possibilidades, a arte se voltou contra o seu objetivo inicial de alegrar. Já
no Renascimento, ela tinha um compromisso com a educação moral da humanidade.
O Romantismo cedeu ao gosto burguês,
mas a modernidade que se instaura a partir de então retoma as exigências
renascentistas, acrescentando outras diretrizes.
Ao texto alegre e brincalhão se opõe
o texto que inquieta, desloca e provoca a reação do leitor. Não apenas a
literatura, mas as artes plásticas, o cinema etc. sustentam o seu prestígio nas
formas de desconforto do público. Assim como nos anos de efervescência do
marxismo o engajamento político, ou social, era o elemento essencial da estética;
ontem e hoje, a arte se põe a serviço do desprazer. Da inquietação, como forma
de armar uma reação contra o estabelecido.
Tal é a prática estética de Breno
Accioly. Quando a literatura no Brasil assumiu um compromisso com a denúncia
das chagas sociais, este contista alagoano estendeu a denúncia ao que Freud
chamou de mal-estar na cultura. Os fantasmas interiores ganharam voz e corpo
para inquietar o leitor.
A
prática tanto pode ser uma nova forma de atuação, quanto uma forma de escapismo
através dos recônditos do sujeito, como convinha ao gosto romântico.
A
crítica costuma apontar Breno Accioly como um contista que conferiu uma
dimensão dostoievskiana a este tipo de narrativa no Brasil. Tristão de Athayde,
no seu rodapé de crítica saudou a aparição do autor afirmando que “nunca vimos,
até hoje, no Brasil, tão bem expresso, literariamente, esse terrível campo de
transição entre a luz da consciência e a outra luz da insanidade, como nestes
contos por vezes repugnantes.”
Tendo
publicado um romance e quatro livros de contos, sendo o primeiro em 1944 e o
último quatro anos antes da sua morte, que se deu em 1966, este contista estranho
e poderoso foi reeditado algumas vezes. Esta quarta edição que a Civilização
Brasileira faz de João Urso atesta a
procura dos seus textos por novos leitores, apesar de Breno Accioly ser hoje,
no panorama da literatura brasileira, um desconhecido para o grande público.
Depois
de alguns anos de esquecimento, Ricardo Ramos preparou para a Global o volume Os melhores contos de Breno Accioly,
numa coleção destinada a traçar um panorama representativo do conto brasileiro
e publicada em 1984.
Nesta
coletânea aparecem alguns contos — os melhores da antologia — extraídos de João Urso, livro fundamental do autor. A
angústia e a revolta constituem personagens cuja dimensão psíquica responde às
patologias mais inquietantes. Por isso, apesar da narrativa seca e precisa de
Breno Accioly, os contos são lidos num clima sufocante, onde o ar é rarefeito e
o tempo parece parar. Trata-se, portanto, de uma leitura densa e entrecortada
de paradas íngremes, cercadas por pedras agudas. Para definir o fenômeno, Vinícius de Morais
disse que “Breno Accioly veio abrir sobre as águas claras do conto brasileiro
as comportas de sua alma tumultuosa que habita nas trevas mais fundas e
sórdidas do ser.” Isto, depois de constatar o que ele chamou de grande talento
para o gênero, reafirmando o que outros escritores disseram do autor, morto
precocemente aos 44 anos.
No
universo sombrio dos dez contos de João
Urso, o abandono, o medo e a disformidade
da alma firmam uma narrativa pessoal e de relativa originalidade. As fraquezas
do espírito e a consciência dos limites fazem dos personagens figuras trágicas
e apagadas, como o menino João Urso, protagonista do conto que título ao livro,
cuja risada desvairada assusta e torna o personagem repugnante para o
mundo. Neste universo terrível, surge
como um vento benfazejo o conto “Natal de seu Hermídio”, narrado em primeira
pessoa e constituindo uma crônica rememorativa da infância do autor. Mas mesmo
aí, aparece o estranho e o indizível, nos recônditos da alma do personagem central,
o taciturno seu Hermídio, fabricante de mundos fantasiosos que encantavam o menino
e fechavam seus olhos para tudo o mais.
A
cidade de Sant’Ana do Ipanema é a Macondo de Breno Accioly. Aí têm lugar quase
todas as suas narrativas. Seus homens e mulheres, suas casas e ruas constituem
a paisagem deste contista.
Mas
para que o leitor tenha uma noção do seu lugar no espaço conto brasileiro,
convém repetir as palavras de José Lins do Rego, logo após o lançamento de João Urso, em 1944:
“Breno
Accioly é, no entanto, uma verdadeira força poética que se debruça sobre o
homem para sondar-lhe as profundezas. Os casos de seus contos são mistura de
confissão e de terríveis análises que ele pratica, quase que sem saber. Se eu
fosse um técnico em psicologia profunda muito teria que sondar nestas criaturas
que aparecem no seu livro. Digo que me espanta este poder tremendo de revelar o
estranho da natureza que há no jovem alagoano. As próprias coisas que o rodeiam
são carregadas de uma pesada forma. Há uma tristeza sinistra nas suas
narrativas.”
Mais
não digo.
Mário
de Andrade:
“Breno Accioly de um nada
faz um conto e acende
numa vela a chama
da angústia humana.”
Lúcio
Cardoso:
“Não
creio tenhamos,
atualmente,
nenhum
contista
superior a
Breno
Accioly.
Alguns
dos seus contos são pequenas obras primas
que
honrariam qualquer
literatura.”
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Contos de angústia e
nojo. Artigo crítico sobre o livro João
Urso; contos, de Breno Accioly. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1995, 164 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 1º mai. 95, p. 7.
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