10/11/2015

Artesanato e escrita

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


DO ARTESANATO À ARTE DA ESCRITA


            Madre Marie é o primeiro livro de Constantino Gregório Netto. Como o autor guardou para a maturidade as histórias que trazia para contar, este livro é o início de um trabalho que, por certo, dará outros resultados.
            A narrativa começa em nossos dias, com uma romaria em volta de uma velha cruz de madeira, perdida entre a vegetação, no fim da costa de Itapuã; mas a ação do livro se desenvolve nos fins do século passado. A cidade francesa de Marselha é o primeiro cenário da narrativa, que se estende pelo convés de um cargueiro até aportar no Recife.
            Os engenhos e canaviais substituem o colégio de freiras onde a protagonista fez seus estudos. Mudando de cenário, o narrador situa os acontecimentos nos confins das praias de Itapuã, que por volta de 1900 ainda era um lugar deserto e distante da pequena vila de pescadores que deu origem ao atual bairro do mesmo nome. É aí que a narrativa encontra o seu desfecho.
            O motivo central e, praticamente, único constituinte do tema, é a história de uma família francesa. Os Deneville Exupéry são financeiramente arruinados em Marselha e terminam seus dias no Brasil, entre Recife e Salvador. A menina Marie, protagonista do livro vive experiências amorosas as mais diversas. Uma forte tempestade de amor, desejo e sexo desencadeia cenas de ódio e violência que levam Marie a se confinar num convento, como ocorria naquela época. A vida religiosa representava não apenas uma esperança de tranquilidade como também uma fuga das circunstâncias desfavoráveis. O século dezenove via no convento a solução de vários conflitos irresolvidos, daí a título Madre Marie, que se explicará pela leitura.
            Graças à reunião de condimentos típicos do folhetim romanesco, o leitor menos exigente chega ao fim da narrativa mantendo o interesse pelos acontecimentos narrados, mas o leitor habituado a bons romances encontra pontos marcados por uma incipiente fragilidade. Isto evidencia a condição de livro de estréia de um autor ainda não experiente. Como Constantino Gregório Netto já anuncia que pretende se dedicar com determinação ao trabalho da escrita, conforme se lê na notícia biográfica da orelha do livro, convém a um leitor investido da função crítica, juntar às naturais restrições, a indicação de caminhos possíveis.
            O texto nos leva a supor uma certa predileção do autor por romances perpassados por ingredientes bem a gosto do grande público: cenas de sexo, crimes e alguns acontecimentos insólitos. Assim, Constantino pretende se afirmar escritor dosando este kit de artefatos ao contar uma história. Mas a preocupação com o artesanato da escrita, com o bem construir a sua obra, não se evidencia na leitura do romance. Por isso, o livro contém momentos de ingenuidade fabulativa. O desejo de prender o leitor com acontecimentos ruidosos permite situações inverossímeis. Certos acontecimentos parecem forçados, ditados não pela própria ação dos personagens mas pela intervenção de um narrador interessado em agradar.
            Milhares de livros escritos para o grande público são marcados por esta inconsistência interna. Os autores que produzem em massa, quase sempre enviam os originais para serem comercializados pela editora sem se dar ao trabalho de uma cuidadosa reflexão sobre o que acabaram de escrever. Assim, os tropeços e inverossimilhanças passam a fazer parte do gênero.
            O escritor em fase de aprendizagem que leva a sério as fórmulas dos fabricantes de sucesso fácil corre o risco de herdar também estes defeitos, juntamente a uma virtude: agilidade da trama.
            Para alguém que se lança no mar de histórias e astuciados, a melhor escola de escritores tem como mestres os clássicos de todos os tempos. Assim, a leitura atenta de um Machado de Assis, para apreender a sutileza de construção das tramas é uma lição de enorme valor.
            Convém a todo autor que tem um projeto literário a ser seguido, estudar na grande e abstrata escola dos bom escritores. Reler suas obras fundamentais. Primeiro, por puro deleite, depois com a senso de observação de Sherlock Holmes.
            Mas a leitura de um Graciliano Ramos, por exemplo, é fundamental para que o novo escritor aprenda os encantos de um estilo seco e preciso, porém altamente significativo. Com mestre Graça podemos aprender que a escrita não foi feita para molhar a página de derramamentos. Diz melhor quem diz sem jogar palavras fora. A economia do texto é fundamental.
            O tratamento exato e irretocável dos motivos que constituem a trama também pode ser buscado na obra de Graciliano. Aí, por certo, Constantino Gregório Netto terá muito o que aprender.
            Se o texto do autor de Madre Marie carece de maior domínio da arte da escrita, Machado e Graciliano são mestres insubstituíveis. Assim, a pontuação que persegue o narrador por todo o livro passará a ser um veículo expressivo a serviço de outros ditos e outros sentidos.
            A capacidade de contar uma história simples e interessante, Constantino já traz consigo. Resta-lhe aprimorar os instrumentos do seu novo ofício. E para isto a receita é só uma, como diria o velho criador de São Bernardo: trabalho, trabalho, trabalho.
            Nos dados biográficos do autor de Madre Marie lemos que ele se aposentou relativamente cedo, ainda na casa dos cinquenta anos, para se dedicar à literatura. É necessário a esta dedicação que o autor não esqueça que toda arte se sustenta no artesanato, isto é, no domínio da técnica de bem fazer. Ninguém pode ser um artista, na plena acepção da palavra, sem ser um artesão do seu ofício. O artesanato a gente aprende com trabalho e seguindo a lição dos mestres – daqueles que fazem melhor –, a arte, ah!, esta procura a gente, quanto a gente está pronto para recebê-la. Antes disto a busca é inútil, as musas de que falavam os antigos são como os duendes ou os demiurgos. Caprichosas, elas só aparecem aos escolhidos. E o meio de alguém ser visitado pelas musas é um só, embora com vários nomes: dedicação, trabalho, esforço.
            Com isso, Constantino Gregório Neto alcançará, sem dúvidas, melhores resultados nos seus próximos livros. Contar uma história ele sabe e gosta de fazer. Contar com engenho e arte é o desafio que tem pela frente, após uma estréia promissora.

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Do artesanato à arte da escrita. Artigo crítico sobre o livro Madre Marie, de Constantino Gregório Netto. Romance. Salvador, 1995, 186 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 10 abr. 95, p. 7.

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