10/11/2015

Galiza

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas



LÍNGUA E POESIA GALEGAS

            A língua falada na Galiza, região espanhola situada ao norte de Portugal, vem resistindo e se mantendo durante séculos. Se, na Idade Média, parte significativa da poesia produzida nas cortes ibéricas tomava como expressão o idioma galego, seguiram-se longos períodos de adormecimento desta língua intimamente ligada à nossa. Muitos estudiosos consideram a língua portuguesa um ramo frondoso do velho tronco comum. Na verdade, quando lemos textos portugueses do século XIII ou XIV encontramos formas bastante próximas da língua galega, tal como hoje é escrita e cultivada.
            Sabemos que durante os anos da ditadura franquista, o empenho unificador da península ibérica obstinadamente perseguido pelo caudilho considerou os diversos falares, dialetos e línguas históricas dos povos que constituem a nação espanhola como focos contrários à ordem instituída. Assim, os povos das várias nações hispânicas foram impedidos de se expressar na língua materna. O castelhano foi imposto como língua nacional única. Por conta disto, as elites emergentes procuravam se expressar unicamente em castelhano, enquanto nas aldeias o povo se envergonhava da língua dos seus pais e dos seus antepassados.
            Na Galiza, foi esquecida a longa e rica tradição de uma língua culta, na qual se expressaram nobres, príncipes e reis espanhóis e portugueses. Apenas alguns focos de resistência política, literária e lingüística teimavam em manter viva a velha semente galaica.

"Torres de sal que foron algún día
crisol do tempo elemental do lume,
patria do corazón
perdida para sempre"

            Este empenho galego encontrou eco e despertou solidariedade além das fronteiras ibéricas, especialmente da Bahia, terra onde os galegos fizeram morada de várias gerações emigradas. Um dos nossos mais representativos poetas, Godofredo Filho, publicou em revistas européias os seus poemas galegos, numa clara atitude de respeito à inolvidável língua dos primeiros trovadores. Ao escrever seus poemas galegos, quando na própria Galiza a língua ainda era esquecida, Godofredo Filho reafirmava a cultura galega como berço da lírica brasileira ou de toda poesia de língua portuguesa. O poeta reconhecia o esforço de preservação do patrimônio comum e com as suas armas combatia o bom combate.
            Enquanto na Espanha procurava-se desencorajar a expressão regional, artistas de várias partes do mundo, convocados pelo silêncio imposto a Lorca ou pela palavra pintada por Picasso, voltavam os olhos para aqueles que resistiam.

*  *  *

            Falar a língua dos antepassados, cantar suas canções e dizer seus poemas tornou-se uma atitude política, uma atitude de defesa do espírito, do pensamento e do modo de sentir de cada um dos homens e mulheres do lugar. Graças a este foco de teimosia e resistência, após a restauração das liberdades individuais e coletivas, ocorreu um verdadeiro renascimento da cultura galega. Poetas, cantores, romancistas, historiadores, pensadores e cientistas fazem das principais cidades da Galiza importantes centros intelectuais da Espanha.
            A literatura continua sendo a ponta de lança da preservação e da constante reafirmação da língua. É neste quadro que a Editorial Galaxia, conhecida editora de Vigo, publicou o livro Fábrica íntima, de Gonçalo Navaza. O poeta esteve na Bahia o ano passado – quando revia as provas do seu livro –, tendo ministrando um curso de língua galega como parte das suas atividades de lingüista empenhado no alargamento das fronteiras do idioma do seu povo.

"Sobre a memoria enteira caerá a fría neve
restituíndo todo á branca perfección".

            Fábrica íntima é um volume com dezoito poemas fundamente marcados pelo melancólico sentimento do galego – bem conhecido de todos nós, por se manistar também nos seus vizinhos portugueses – quer quando o tema é o sujeito, quer quando o foco se amplia para o geral, o outro, o social. O canto geral se aproxima do velho canto ao som da lira. Sempre, porém, a luminosa música da palavra aproxima os olhos dos ouvidos.
            Como nos quatro quartetos de "Os outros passos":

"Na noite metafórica, ó abeiro da alta lúa
que no perfil do espacio se move de vagar
fende o silencio un eco dunha distante rúa
onde distantes passos parecen ressoar.

Avanzando contigo na verea da idade
semellan ser os ecos do teu proprio ruído:
os imposibles pasos da imposibilidade,
os pasos doutros homes que puideches ter sido

e non fuches. De lonxe, o seu son acompaña
o teu devalo lento por diverxente via,
axexando a soidade cunha presencia estraña
de soños só formada, e de melancolía;

unha presencia escura que manca o corpo cando
destila esa sospeita que che abala o sorriso:
que ó cabo dos camiños que fuches rexeitando
agardaba a verdade, a luz, o paraíso."

            O livro de Gonzalo Navaza não é somente uma fábrica de coisas íntimas, mas um invento compartilhado, um discurso através do qual o poeta se faz arauto da expressão interior ou da manifestação coletiva do povo galego.
            Neste momento em que a Bahia inaugura o seu Centro de Estudos de Língua e Literatura Galegas, vinculado ao Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, com um programa de eventos comemorativos, convém lembrar este livro de um poeta galego da nova geração.

_______________________
Língua e poesia galegas. Resenha crítica do livro Fábrica íntima, de Gonçalo Navaza.  Editorial Galaxia, 1974. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 3 abr. 95, p. 7.


*  *  *

Leitura Crítica é publicada todas as segundas-feiras,
no segundo caderno de A TARDE.
Correspondências para esta coluna:
Rua Alagoinhas, 256/101. CEP 41.949-629,
Salvador, Ba. Telefone 245-1420.