O Eco redundante
O nome de Umberto Eco se tornou
popular em todo o mundo após a publicação do seu romance de estréia O nome da rosa. Antes ele era conhecido
apenas nos meios acadêmicos, como filósofo dedicado à semiótica e aos estudos
literários. Algumas de suas análises de obras a gosto da chamada cultura de
massa despertou a atenção dos meios universitários para a compreensão desse
tipo de trabalho.
Eco demonstrava a razão do sucesso
de criações simplórias e repetitivas, identificando a necessidade psíquica do
leitor de se envolver com um mundo ficcional no qual via os seus desejos serem
realizados. Por outro lado, o esquema redundante e repetitivo do romance
policial ou das aventuras dos super-heróis era visto como uma forma
reconfortante de dar férias à inteligência. O leitor de uma grande faixa do
mercado gosta de não pensar, prefere os textos que tragam soluções e estruturas
presumíveis, esperadas, como modo de adormecer a reflexão. Assim, ele se sente
confortado ao ver que “sabe tudo” no espaço da sua leitura. Ele já pode
antecipar como os personagens agirão ou como a trama será resolvida. Os
caminhos buscados pelo narrador terão que ser os mesmos caminhos que o leitor
já conhece e é capaz de acompanhar, enquanto sonolentamente continua a ler.
Qualquer inovação e qualquer busca
de novas soluções desconfortam o leitor acomodado e fazem ele se sentir menos
seguro. Afinal de contas, o que ele busca nesse tipo de leitura é continuar
sendo como é, pensando como pensa e sentindo-se confortavelmente satisfeito.
O texto literário que inquieta,
ensina e desafia não serve para o repouso do guerreiro cansado. Não esqueçamos
que, cada vez mais, o mundo está cheio de repousados guerreiros. O velho índio
Touro-Sentado reencarna na civilização metropolitana.
Ao nos ajudar a tomar consciência de
fatos como esses, Umberto Eco pensou num lance de dados que lhe parecia
desafiador: juntar esquematicamente a estrutura da arte de massa com a ambição
da arte promriamente dita. A redundância das séries da televisão, a fixidez da
trama mirabolante do romance policial e outros ingredientes poderiam também ser
usados por um escritor inteligente e ambicioso. Assim nasceu O nome da rosa. O livro fez sucesso de
crítica e de público, conferindo ao autor uma notoriedade até então
desconhecida. Pouco depois publicou O
pêndulo de Foucault, romance que tentava repetir o sucesso anterior.
Para o leitor avaliar a repentina
notoriedade de Umberto Eco e como o seu nome era pouco conhecido fora dos meios
universitários, antes de se tornar romancista, vale a pena lembrar um episódio.
O filósofo italiano estava visitando a Bahia, no fim anos setenta, quando
participou de atividades da nossa universidade. Servi de guia, durante dois ou
três dias, nas suas visitas a museus, igrejas, candomblés e outros lugares representativos
da nossa cultura. Eco recebeu de presente de um amigo nosso, Cláudio Maia, um
pequeno livro do seu pai, Vasconcelos Maia, O
leque de Oxum, e folheando o livro manifestou interesse em conhecer Jorge
Amado, certamente pelas suas relações com a cultura afro-baiana. Telefonei para
Jorge, que estava recolhido fora da sua casa do Rio Vermelho, para escrever
sossegadamente. O nome do professor e filósofo italiano não foi capaz de afastar
o nosso Jorge Amado do seu trabalho para o desejado encontro. Afinal, dezenas
de estudiosos estrangeiros tentavam interromper o seu.
Menos de um ano depois, o quase
desconhecido pesquisador italiano tornou-se um escritor tão internacional
quanto Jorge Amado. Desse modo, em 1988, o romancista baiano fez a seguinte
anotação, publicada em Navegação de
cabotagem, quando soube, em Moscou, ter sido citado em O Pêndulo de Foucault: “A vaidade não é meu defeito, sentimento
pouco habitual, no entanto a notícia envolve-me num calor de vanglória, sorrio
para Zélia. Devido, sem dúvida, à estima em que tenho o escritor italiano, não
apenas o romancista, também o articulista ferino e divertido que amo ler.”
* * *
A
ilha do dia anterior é o terceiro romance de Umberto Eco. Conta a história
da viagem e do naufrágio de um nobre italiano, por volta de 1643. O foco
narrativo do livro está voltado ora para um misterioso navio abandonado, ao
qual o náufrago chegou, ora para os fatos que levaram o personagem a empreender
a malsucedida viagem.
O interesse do leitor é despertado
no início da narrativa para os estranhos acontecimentos, mas esses
acontecimentos são insuficientes para preencher as quase quinhentas páginas do
romance. Assim o livro começa a ser monótono e repetitivo. Após prender a nossa
atenção com uma peripécia curiosa, o narrador – já sabemos que isso vai ocorrer
– se vale da sua erudição para desfiar inacabáveis pensamentos do protagonista.
As questões metafísicas mais
estapafúrdias, tomadas a sério pelos homens de fé do século XVII, constituem
páginas e páginas de A ilha do dia
anterior. O leitor torce para que essas questões sejam deixadas de lado
para que possa continuar acompanhando os fatos. Mas nas últimas cem ou duzentas
páginas do livro já suspeita que esses fatos, na verdade, são poucos. Que o
fictício diário de Roberto de la Grive, que serve de pretexto para a narrativa,
não fornece elementos suficientemente ricos. Daí o recheio gorduroso, as
inacabáveis discussões conceituais emperrando a ação romanesca.
Mas como intelectual gosta de
sofrer, muita gente vai achar que este ponto crítico do romance de Umberto Eco
é exatamente o seu grande trunfo ou a sua grande virtude – a marca de uma obra
primorosa.
Não esqueçamos que quando Clarice
Lispector deu à sua obra um caráter reflexivo e confessional que impunha uma
monótona leitura, o entusiasmo dos seus brilhantes
leitores aumentou ainda mais.
Como diria um certo carnavalesco:
quem gosta de miséria é intelectual. Pois é. Cada vez mais admiro a feliz insciência
da ceifeira de que fala o poema de Fernando Pessoa:
“Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó cancão! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!”
No mais, resta constatar,
redundantemente, que o filósofo Umberto Eco trazia dentro de si um romancista.
Esse romancista, por sua vez, trazia dentro de si um romance – O nome da rosa. Parece que todos os livros
de ficção escritos em seguida são apenas caudais deste romance que o autor
trouxe consigo. Tanto O pêndulo de
Foucault quanto A ilha do dia
anterior são o eco da redundância. Ou redundâncias de Umberto Eco.
Resta-nos agora esperar as exigências de novos sucessos arrefecerem para que o
romancista possa novamente surpreender o leitor com suas grandes criações.
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O eco redundante. Artigo crítico sobre A
ilha do dia anterior, de Umberto Eco. Tradução de Marco
Lucchesi. Rio de Janeiro, Record, 496 p. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 20 fev. 95, p. 5.
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Leitura
Crítica é publicada todas as segundas-feiras,
na página 5 do segundo caderno de A
TARDE.
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