10/11/2015

Poesia engajada

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Poesia engajada

            Inquisitorial é o primeiro e o melhor livro do poeta e compositor José Carlos Capinan. Publicado em edição artesanal de pequena circulação, em 1966, com capa em xilogravura de Calazans Neto, o pequeno volume foi conhecido apenas por um público restrito. Em seguida, Capinan tornou-se um nome nacional, como compositor de música popular, inicialmente parceiro de Gilberto Gil e Caetano Veloso, na fase do tropicalismo, e posteriormente de outros grandes compositores.
            Somente a poucos anos atrás o poeta voltou ao território dos livros, publicando dois outros títulos, sem o impacto causado na década de sessenta pelo seu Inquisitorial.

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            Esta edição marca um duplo e auspicioso retorno: o encontro definitivo da poesia de Capinan com o leitor brasileiro e uma nova fase editorial da Civilização Brasileira, capitaneada por Ênio Silveira.
            Durante muitos anos a Editora Civilização Brasileira foi a principal trincheira de investidas do pensamento brasileiro. Publicou nossos melhores autores e editou uma revista lida e respeitada por todos. Durante os longos anos de vigência do regime militar e a gradual diminuição de investimentos na vida intelectual do país, a Editora foi se enfraquecendo, até ser vendida a um grupo português. Hoje, a Civilização Brasileira funciona atrelada à Bertrand Brasil, com sede no Rio de Janeiro e em São Paulo, e o velho capitão Ênio Silveira, antigo dono da editora, foi convidado para devolver-lhe o prestígio, atuando como diretor editorial. Assim, Ênio vem editando muitos títulos e, entre estes, o livro de Capinan que apesar de ser uma reedição para alguns baianos, para o grande público brasileiro é, de fato, um lançamento.

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            O que justifica a publicação de Inquisitorial nos anos noventa é a sua condição de poesia engajada de boa qualidade. Sabemos que durante a vigência da ditadura de direita, implantada em 1964, o leitor passou a valorizar toda manifestação intelectual que refletisse a insatisfação do povo brasileiro. Assim, o simples engajamento do autor já era motivo de aceitação do seu texto, independentemente da qualidade intrínseca. Os discursos mais retumbantes e esquerdeiros eram aceitos como literatura e lidos com devoção pela juventude intelectual. Mas nesta geléia geral alguns poetas, como Thiago de Mello e Ferreira Gullar, conseguiram erguer suas vozes além da mediocridade aplaudida. Na Bahia, Capinan fez coro com o que havia de melhor, publicando seu livro de estréia. O temido crítico José Guilherme Merquior escreveu, dois anos depois, em Paris, um alentado artigo crítico de declarado elogio à poesia de Capinan.
            Este artigo, que se tornou conhecido no Brasil ao ser inserido no livro A astúcia da mímese, uma das obras mais lidas do renomado crítico, agora foi republicado a título de introdução ao Inquisitorial.
            O volume divide-se em três partes. “Aprendizagem”, com poemas escritos entre 1962 e 1964, “Inquisitorial”, contendo o poema título, dividido em doze cantos, escrito em 1965, e finalmente “Algum exercício”, incluindo poemas escritos desde 1959.
            Trata-se de uma das obras mais representativas da chamada “geração de 60” da poesia brasileira. É evidente que, visto hoje, o livro não desperta o mesmo entusiasmo de alguns anos atrás. Aquilo que ele tem de situado e datado não mais responde às exigências do leitor dos anos noventa, mas como testemunho de uma época é sem dúvida um importante marco.
            É nesta perspectiva que discutimos o livro de Capinan, sabendo que isolado do seu momento, ele perde sua importância. Mas dificilmente poderemos falar da poesia engajada da geração de sessenta sem procurar na poesia de Inquisitorial exemplos dos mais marcantes.
            Merquior via a última parte do livro como a mais fraca, pela dicção política mais emocionada e mais despojada. Mas é precisamente nela que estão textos como “Poema ao companheiro João Pedro Teixeira”, verdadeiro hino da resistência da intelectualidade de esquerda, “Formação de um reino”, eloqüente alegoria da imposição de poderes ilegítimos à vida de um povo, e, por fim, “Compreensão de santo”, poema que ultrapassa a sua circunstância e que ainda hoje merece uma leitura atenta.
           
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            O três primeiros versos de “Compreensão de santo” propõem um núcleo ideativo central para o poema: “Todos os santos têm o sexo amputado. / E cansados de suster a própria boca / Maldizem ter fome enquanto comem”. Quer lido enquanto mera referência à condição religiosa de santidade, ou metaforicamente como reflexão acerca da virtude humana, o poema flagra a incompletude dos grandes vultos.
            Afeitos a uma aceitação maniqueista do mundo, isolamos de um lado as virtudes e do outro lado os vícios, sem nos apercebermos que as ações humanas não conseguem manter as qualidades de forma distinta e em estado puro. A prática cotidiana mescla impulsos positivos e negativos, fazendo com que a predominância de um sobre outro defina a qualidade da ação.
            Somente a miopia do sectarismo pode aceitar uma ética maniqueista. Por isso, no mundo dos homens “todos os santos têm o sexo amputado”. “E cansados de suster a própria boca maldizem ter fome enquanto comem”.
            Como a sexualidade é um dos “vícios” mais combatidos pela moral burguesa, ou pelo ideal de virtude imposto ao mundo ocidental cristão desde o século XII, quando se estabelecia um fosso entre os prazeres do mundo pagão e a conduta proposta pelo clero aos povos cristãos, só resta ao praticante da virtude amputar o desejo como epifania do sexo.
            Mas se o homem é composto de carne e espírito, as forças do animal e da mente entram em choque. Todos os animais são compelidos à satisfação do impulso sexual, a partir de leis ditadas exclusivamente pela força da carne. Os homens põem os poderes do espírito para combater o instinto natural da sua condição biológica.
            Da ambivalência nasce o sentimento de culpa — “maldizem ter fome, enquanto comem” — uma vez que a inteligência é uma força abstrata que tenta domar a força concreta da carne.
            Se o primeiro verso do poema de Capinan evoca a luxúria, os dois seguintes, que analisam a culpa aí contida, fundem a sexualidade com a gula, um pecado capital muito combatido e regiamente praticado pelo clero medieval e das épocas seguintes. A analogia entre os dois “pecados”, sugerida pelo poema, une os prazeres da cama com os prazeres da mesa, fundamente interligados na mundo psíquico.
            Mas estes três versos de “Compreensão de santo” nos remetem a muito mais, enquanto o espaço aqui se encerra, sem que possamos falar de todo o poema. Resta-nos sugerir ao leitor a sua própria reflexão.

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Poesia engajada. Artigo crítico sobre Inquisitorial; poemas, de José Carlos Capinan. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995. Coluna “Leitura Crítica” do jornalA Tarde, Salvador, 6 mar. 95, p. 5.
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