Drummond
e o arco de Eros
Considerado
por muitos como a maior expressão da poesia brasileira de todos os tempos,
Carlos Drummond de Andrade teve sua obra estudada por grandes figuras do
ensaísmo e da crítica. Em Confidência
mineira (O amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade), Mirella Vieira
Lima dá a sua contribuição ao entendimento da lírica drummoniana, centrando o
seu interesse nas manifestações amorosas presentes nesta poesia essencialmente
voltada para a compreensão do sentimento do mundo.
Este livro
é resultado de mais de quatro anos de trabalho e pesquisa da autora, tendo sido
defendido como tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo. Além
das fontes impessoais e acessíveis a todo leitor, Mirella Vieira Lima teve
oportunidade de ter acesso a documentos pessoais de Drummond e a edições
raríssimas, confiadas a bibliófilos e colecionadores. Com isso, cercou-se de
elementos necessários para a compreensão do amor na poesia de Drummond.
A partir do
sentimento de culpa que acompanha à plenitude amorosa e ao trajeto das flechas
de Eros, a autora elege um eixo central de referência temática, depois
transformado em lugar de expectação da sua análise. Pelo trabalho de
interpretação que Mirella Vieira Lima dedica a diversos poemas de Drummond,
neste livro, o leitor pode observar que a poesia amorosa do autor não se perde
nos labirintos do amor sem corpo, mas atinge o cerne do desejo carnal.
Carlos
Drummond de Andrade é o poeta do amor absoluto, tão bem evocado nestes versos
de “Amor e seu tempo”, que nos foram confiados por ele para publicação no Jornal de Cultura, que editamos de 1973
a 1975 nos hoje extintos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Incluído
ainda no livro As impurezas do branco,
permita o leitor a sua transcrição, pela pertinência com relação ao tema de Confidência mineira:
“Amor é
privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais
larga e a mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto,
amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago
cifrado, / que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do
terrestre, salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no
crepúsculo.
Amor é o
que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada,
ouvida. Amor começa tarde.”
Se, na
maturidade, Drummond vai de encontro a um amor sem culpas, a sua poesia
apresenta momentos marcados pela expiação mais funda. Analisando o poema
“Sombra das raparigas em flor”, Mirella evidencia como o desejo sexual é tomado
pelo poeta como uma força maléfica. “O adjetivo torto expressa essa condenação dirigida à própria libido,
evidenciando rejeição à sexualidade.”
Mas na análise a “Campo de flores” ela reconhece no que Drummond
encontra no amor “poder de revelação — luz”.
Não
esqueçamos que a tradição da poesia brasileira está enraizada nesta visão “cristã”
do ato de amar como pecado original. Desde a Idade Média, quando os cânticos
maçárabes elegiam o sentimento carnal como epifania do homem, a atuação do
clero na Península Ibérica impunha uma visão do amor humano como força
diabólica. A regra de ouro das cantigas de amor galaico-portuguesas era
promover a excelência de um amor a nível espiritual, inteiramente destituído de
corpo. Esta perspectiva atravessa o século XV e chega ao Renascimento. Um dos
mais vivos diálogos em verso do Cancioneiro
geral, de Garcia de Resende, confronta Ayres Teles e o Conde de Vimioso
numa peleja sobre o desejar e o bem-querer. Obediente à visão “cristã”, o Conde
encerra um dos seus versos com o voto de castidade: “Prazer nem por
pensamento”. Vem daí a ambivalência ou a fratura presente na poesia de
Camões e transmitida à poesia
brasileira.
A moral do
mundo ocidental cristão não vê com olhos de tolerância a presença da sexualidade
nas relações interpessoais. Trata-se de um vício a ser extirpado. A poesia de
Drummond não fica imune a esta interdição, mas reage através de mecanismos
inconscientes destinados ao atenuamento da culpa.
É assim que
aparecem as imagens de ascensão e queda que Mirella Vieira Lima tão bem
localiza na poesia de Drummond. Um outro céu é proposto pelo poeta como lugar
de chegada dos amantes satisfeitos. Nos poemas da maturidade, concordará
conosco a autora desta Confidência
mineira, o caminhante consegue alcançar o céu, “imagem de perfeição e satisfação
completa”.
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Drummond e o arco de
Eros. Artigo crítico sobre o livro Confidência
Mineira; o amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade, de Mirella Vieira
Lima. Ensaio. São Paulo,
Pontes / EDUSP, 1995, 200 p.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 12 jun. 95, p. 7.