10/11/2015

Confidência mineira

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Drummond e o arco de Eros


            Considerado por muitos como a maior expressão da poesia brasileira de todos os tempos, Carlos Drummond de Andrade teve sua obra estudada por grandes figuras do ensaísmo e da crítica. Em Confidência mineira (O amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade), Mirella Vieira Lima dá a sua contribuição ao entendimento da lírica drummoniana, centrando o seu interesse nas manifestações amorosas presentes nesta poesia essencialmente voltada para a compreensão do sentimento do mundo.
            Este livro é resultado de mais de quatro anos de trabalho e pesquisa da autora, tendo sido defendido como tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo. Além das fontes impessoais e acessíveis a todo leitor, Mirella Vieira Lima teve oportunidade de ter acesso a documentos pessoais de Drummond e a edições raríssimas, confiadas a bibliófilos e colecionadores. Com isso, cercou-se de elementos necessários para a compreensão do amor na poesia de Drummond.
            A partir do sentimento de culpa que acompanha à plenitude amorosa e ao trajeto das flechas de Eros, a autora elege um eixo central de referência temática, depois transformado em lugar de expectação da sua análise. Pelo trabalho de interpretação que Mirella Vieira Lima dedica a diversos poemas de Drummond, neste livro, o leitor pode observar que a poesia amorosa do autor não se perde nos labirintos do amor sem corpo, mas atinge o cerne do desejo carnal.
            Carlos Drummond de Andrade é o poeta do amor absoluto, tão bem evocado nestes versos de “Amor e seu tempo”, que nos foram confiados por ele para publicação no Jornal de Cultura, que editamos de 1973 a 1975 nos hoje extintos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Incluído ainda no livro As impurezas do branco, permita o leitor a sua transcrição, pela pertinência com relação ao tema de Confidência mineira:
            “Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais larga e a mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo.
            É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, / que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo.
            Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. Amor começa tarde.”
            Se, na maturidade, Drummond vai de encontro a um amor sem culpas, a sua poesia apresenta momentos marcados pela expiação mais funda. Analisando o poema “Sombra das raparigas em flor”, Mirella evidencia como o desejo sexual é tomado pelo poeta como uma força maléfica. “O adjetivo torto expressa essa condenação dirigida à própria libido, evidenciando rejeição à sexualidade.”  Mas na análise a “Campo de flores” ela reconhece no que Drummond encontra no amor “poder de revelação — luz”.
            Não esqueçamos que a tradição da poesia brasileira está enraizada nesta visão “cristã” do ato de amar como pecado original. Desde a Idade Média, quando os cânticos maçárabes elegiam o sentimento carnal como epifania do homem, a atuação do clero na Península Ibérica impunha uma visão do amor humano como força diabólica. A regra de ouro das cantigas de amor galaico-portuguesas era promover a excelência de um amor a nível espiritual, inteiramente destituído de corpo. Esta perspectiva atravessa o século XV e chega ao Renascimento. Um dos mais vivos diálogos em verso do Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, confronta Ayres Teles e o Conde de Vimioso numa peleja sobre o desejar e o bem-querer. Obediente à visão “cristã”, o Conde encerra um dos seus versos com o voto de castidade: “Prazer nem por pensamento”. Vem daí a ambivalência ou a fratura presente na poesia de Camões  e transmitida à poesia brasileira.
            A moral do mundo ocidental cristão não vê com olhos de tolerância a presença da sexualidade nas relações interpessoais. Trata-se de um vício a ser extirpado. A poesia de Drummond não fica imune a esta interdição, mas reage através de mecanismos inconscientes destinados ao atenuamento da culpa.
            É assim que aparecem as imagens de ascensão e queda que Mirella Vieira Lima tão bem localiza na poesia de Drummond. Um outro céu é proposto pelo poeta como lugar de chegada dos amantes satisfeitos. Nos poemas da maturidade, concordará conosco a autora desta Confidência mineira, o caminhante consegue alcançar o céu, “imagem de perfeição e satisfação completa”.

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Drummond e o arco de Eros. Artigo crítico sobre o livro Confidência Mineira; o amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade, de Mirella Vieira Lima. Ensaio. São Paulo, Pontes / EDUSP, 1995,  200 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 12 jun. 95, p. 7.