15/11/2015

Literatura de viagem

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Literatura de viagem



 “Lá, deslumbrado pelo sol da civilização. Aqui, sepultados nas trevas da barbaria.
Como estamos afastados do mundo! Que distância enorme
nos separa do século XIX!”
Leite Moraes


            Embora apontado por Rubens Borba de Moraes como um dos nossos melhores livros de viagem, o volume publicado em 1883 teve o mesmo destino de centenas de obras que caíram no esquecimento. Não fosse o autor avô do escritor Mário de Andrade, talvez a sua obra ainda estivesse perdida entre publicações menores.
            Borba de Moraes publicou, em 1979, o livro Lembranças de Mário de Andrade, contendo sete cartas; na introdução dedica algumas palavras ao autor destes Apontamentos de viagem. As referências elogiosas despertaram a atenção de Antônio Cândido que considera Rubens Borba de Moraes como a maior autoridade em literatura de viagens no Brasil. Foram provavelmente estas circunstâncias que permitiram aos estudiosos da literatura brasileira o acesso fácil ao livro de J. A. Leite de Morais, agora editado pela Companhia das Letras, com estudo introdutório, cronologia e notas de Antônio Cândido.
            Mas não se trata de leitura destinada apenas aos especialistas. O livro constitui fonte de informação e, sobretudo, de prazer, pela narrativa ágil e viva do autor, pelo domínio da escrita, exercitada sem os arroubos emocionais do romantismo. Diria mesmo que o texto ultrapassa as marcas que se tornaram índices caricaturais do Século XIX e se inscreve com notável atualidade entre a nossa melhor prosa. Não esqueçamos que os bacharéis do século passado se compraziam com os arroubos de uma sintaxe alambicada, onde o tonitroar da retórica florida ou os ingênuos queixumes substituíam o encanto da sugestão e do bem dizer.
            Leite de Moraes era um homem do século XIX, bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, viveu o momento em que o epicentro dos acontecimentos culturais do país se deslocava para a florescente província do café. A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco dividia com a do Recife a condição de eixo agregador dos mais destacados escritores do romantismo brasileiro. Entre estes bacharéis surgiram tanto os nossos melhores escritores quanto os nossos mais intragáveis beletristas. Seu livro tinha tudo para não passar de um pedante relato de bacharel: nomeado presidente da província de Goiás, começa suas anotações quando partiu de Araraquara, a cavalo, atravessando cerrados, rios e pântanos. Ocupou o governo de fevereiro a dezembro de 1881, quando resolve retornar para apresentar sua demissão aos conselheiros do Império. Sentindo-se sem condições de empreender a longa viagem à cavalo de Goiás até São Paulo, arrisca-se numa desconhecida aventura: seguir pelo rio Araguaia e descer o Tocantins até alcançar o Pará. Em Belém, tomaria um confortável navio que, em pouco tempo, o conduziria à Corte, no Rio de Janeiro.
            Mas a viagem até Belém seria um desafio ao desconhecido. Mal sabia das aventuras e perigos pelos intermináveis rios, onde as corredeiras e redemoinhos representavam um perigo ainda maior que os animais selvagens e as tribos hostis. A bordo de um bote movido por alguns remeiros conheceu um outro Brasil, onde a natureza e suas criaturas, em estado surpreendentemente selvagem, se opunham aos confortos e exigências da decantada civilização.
            O livro de Leite Moraes insere-se com interesse e destacada qualidade na tradição da chamada literatura de viagem de Língua Portuguesa, que a partir do século XVI passa a representar um filão simultaneamente popular e enriquecedor. Com as descobertas marítimas, os relatos de viagem passaram a representar não apenas um vigoroso antepassado do moderno jornalismo, com suas “reportagens” sobre povos e costumes desconhecidos, mas um elo com a velha tradição literária que remonta à odisséia dos navegantes imortalizados por Homero. A narrativa de viagem não apenas se situa nos primórdios da literatura ocidental, como inaugura a ponte que vai da criação escrita à prática jornalística.
            Se foi um gênero importante no Renascimento, no Romantismo ele se torna igualmente notável. As narrativas de viagem do século XIX surgiram aliadas ao espírito nacionalista e destinadas ao conhecimento ou à exaltação dos valores nacionais. Somente depois é que a necessidade de escapismo e de fuga do homem romântico o conduziu a caminhos que ultrapassavam as fronteiras do seu povo, abandonando a nova modalidade de viagem. As Viagens na minha terra, de Garret, por exemplo, trazem no título o espírito que norteava a reinvenção de um gênero da renascença.
            Apontamentos de viagem (de São Paulo à Capital de Goiás, desta à do Pará, pelos rios Araguaia e Tocantins, e do Pará à Corte. Considerações administrativas e políticas, pelo dr. J. A. Leite Moraes, ex-presidente de Goiás) é um livro que, felizmente, traz poucas considerações administrativas e muito de encanto e prazer. Não que o subtítulo seja enganoso. Leite de Morais, de fato, se desincumbe das suas considerações políticas e administrativas, mas o estilo da sua escrita é tão leve, tão preciso e, ao mesmo tempo, com tal poder de sugestão que afasta de nós a impressão de um texto sentencioso ou de um mero relatório pragmático. Com o mesmo encanto da fantasia e da ficção, o autor nos põe diante da realidade do Brasil no século XIX.
`           Literatura de viagem da melhor qualidade. É o que se pode dizer destes Apontamentos de viagem, de Leite Moraes.

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Literatura de viagem. Artigo crítico sobre o livro Apontamentos de viagem, de J. A. Leite Moraes. São Paulo, Companhia das Letras, 1995,  340 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 24 jul. 95, p. 5.

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