29/10/2015

28/10/2015

Guido Guerra

Guido Guerra,
um criador de mundos paralelos

Por Cid Seixas

Foi num dia sombrio deste ano de Nosso Senhor que Guido Guerra partiu de corpo alma para o desconhecido mundo dos ausentes.
Como não poderia deixar de ser, jornais e revistas registraram o fato. É o que faz agora este número de Iararana.
Aleilton Fonseca, sempre atento, me liga dizendo que gostaria de incluir nesta edição dois textos que publiquei sobre o amigo de muitos anos. Pede-me também as fotos que reuni para o livro Auto-retrato, preparado por iniciativa primeira de James Amado para comemorar os sessenta anos de Guerra, em 2003.
Para atender ao convite, foram selecionados trechos de alguns artigos escritos em lugares e tempos diversos sobre o autor de Vila Nova da Rainha Doida, sua obra mais representativa. Como colagem feita no calor da hora, para entrar na gráfica, o que aqui se publica sob os títulos “Recordações do escrivão Guido Guerra” ou “Perfil de um criador de mundos paralelos” é algo fragmentário e pouco representativo da obra múltipla deste jornalista, contista e romancista que deixou sua marca generosa e explosiva não apenas na literatura baiana, mas no seu contexto cultural.

Joana Felicidade:
A ironia que afirma

Guido Guerra, ficcionista e repórter formado na turbulência de uma redação de jornal, durante os primeiros anos de inquisição e arbítrio impostos pelo golpe militar de 64, começou como repórter policial e terminou como cronista diário, onde o astuciado cedia lugar ao acontecido. Mas nada foi por acaso, nenhuma experiência ficou solta no passado sem resposta futura — como, por exemplo, a passagem pelo setor político do jornal. Seu trajeto e seu aprendizado estiveram sempre circunscritos ao cotidiano do homem, quer na tragicomédia do submundo das crônicas policiais ou no drama silencioso da opressão política. Talvez, por isso mesmo, o compromisso do ficcionista de hoje não desdenhe da dura realidade partilhada, através da pena, pelo repórter de ontem.
Os temas que servem de material narrativo ao seu livro Ela se chama Joana Felicidade (Rio de Janeiro, Record, 1984, 118 p.) são um só: a vida do homem. O cotidiano com sua tragédia habitual, homeopática, gradativa e, por isso mesmo, capaz de subjugar sem revolta ou reação mais conseqüentes. Essa dimensão trágica da vida que Guido Guerra procura sublinhar em cores metonímicas, caricaturais, portanto, é narrada com ironia, como se quisesse negá-la, arrancá-la do infortúnio dos homens. Mas a negação, sabemos, é a primeira forma de aceitação do difícil ou do recalcado. Aquilo que eu não posso dizer nem permitir aflorar à consciência, em forma de palavra, insiste em se fazer ouvir como palavra invertida, que se nega. Negando-se, afirma-se. E a escrita de Guerra sabe disso, ao se valer da ironia.
Embora o jornalista e o escritor caminhem juntos, conforme se vê na opção deste autor, há no entanto um ponto crucial onde o ficcionista rompe com o repórter: se no registro jornalístico os fatos e acontecimentos chegam ao texto marcados pelo distanciamento de quem escreve (exigência do chamado jornalismo informativo, objetivo, que privilegia a notícia), nas páginas ficcionais o universo das criaturas se desenrola como o centro de um sistema solar a atrair o comprometimento emocional do criador.
Enquanto no texto jornalístico, o acontecimento e o repórter formam dois mundos paralelos, na tessitura absurda e possível do mundo ficcional — que é o paraíso perdido da encenação do desejo — a criatura e o criador comungam o mesmo original pecado e se interpenetram no ato de amor da escrita.
É por isso que, na ficção, não só o criador mas também a criatura está investida na função de narrar, atuando como personagem e diretor da representação; como passista e mestre sala no carnaval do invento.
Na reportagem jornalística, quem narra é sempre o autor do texto. Na ficção, a personagem toma a palavra do autor que se faz narrador e conta a história a partir do seu ponto de vista. Mas o autor não protesta. Porque apesar de todas as teorias do texto literário, de toda assepsia estrutural, neo-positivista, a penetração do criador na criatura projeta em um o desejo do outro, criando um espaço único e diverso. Um é o espelho do outro. É sempre preciso não confundir o criador com a criatura, não atribuir a um o caráter do outro. O poeta é um fingidor, nos ensina um dos mais verdadeiros poetas do fingimento, que no próprio nome — Pessoa — se confunde com a persona, máscara ou personagem. Mas é sempre preciso também saber que um é o outro, como o corpo de Deus é a sua alma. A criatura é o criador.
E Guido Guerra nos dá belos exemplos, cedendo a função de narrar às criaturas, às personagens. Na primeira parte do livro, "O sorriso dos mortos", o narrador que nos introduz à história pode ser o autor, que, pouco a pouco, cede lugar ao diálogo — elemento preponderante na linguagem ficcional de Guerra —, mas o diálogo cresce de tal modo que a fala das personagens ganha estatura de uma nova narrativa. Assim, os capítulos do conto (ou, se preferirem, da novela) que abre o livro são marcados pela troca de posição entre João e Joana enquanto narradores intercalados. Trata-se, portanto, de um grande diálogo experimentalmente transformado em ponto de vista, ou foco narrativo, que sob o ângulo estrutural se constitui num bom pretexto para discussões teóricas sobre o fazer ficcional.
A outra parte do livro, "O santo rosto de papel", é um grande monólogo, onde uma velha moradora dos Alagados, conversando com sua solidão e sua viuvez nos permite conhecer a história. Trata-se, portanto, do mesmo fenômeno anterior: o diálogo ou a fala da personagem cresce de tal modo que toma o lugar da narração, se transformando na própria narração e transformando o personagem em narrador.
De resto, é conveniente lembrar que o processo vem sendo trabalhado por Guido Guerra nos últimos livros, como em Lili Passeata, também publicado pela Record. Ela se chama Joana Felicidade é um livro onde o autor tem oportunidade de testar perante o público, de forma ousada, este seu experimento com a linguagem ficcional. Mas como a literatura não conhece fronteira entre o fato e o ato de contar, entre o discurso e o curso dos acontecimentos, a linguagem ficcional é ela mesma a obra de ficção. Com isso quero dizer que se o recurso empregado pelo autor é bom, bom também será o resultado — sua obra. Isto Guido Guerra aprendeu com a maturidade, quando o texto do escritor de hoje ganha a mesma segurança do texto do jornalista de sempre.

Guido Guerra, ensaísta-autor
de uma reportagem sentimental

Um menino, filho de italianos, com seu registro de tenor, participando, em 1903, da ópera Carmem, de Bizet, impressionou de tal forma a Caruso, que o grande lírico queria levá-lo para Itália e ensiná-lo os segredos da sua arte. Mas ele preferiu ficar no Brasil e trocar a iniciação no canto lírico por uma carreira na música popular. Este é um dos fatos que envolvem a vida de Vicente Celestino, um dos maiores fenômenos da nossa música popular, ao lado de contemporâneos como Francisco Alves e Orlando Silva.
Quando se comemora nos palcos do Rio de Janeiro o centenário de nascimento desse artista, Guido Guerra publica pela Record O hóspede das tempestades.
Autor conhecido através dos seus livros de contos, ou de romances de ressonância nacional, além de cronista com  passagem por vários jornais, Guido Guerra “abandona temporariamente a ficção”, conforme as palavras do seu editor, para apresentar ao público um livro escrito com ternura e admiração. Trata-se de um conjunto de textos díspares em torno da vida e da obra do tenor Vicente Celestino.
O hóspede das tempestades é um livro montado pela reunião de sete textos ou capítulos. Embora denominado pelo autor de ensaio-reportagem, rótulo que se aplica à maioria dos textos, dois deles, o primeiro e o último, merecem destaque por não se enquadrarem nesta designação.
“O mito à sombra do homem”, primeiro capítulo do livro, é um exercício de escrita que leva o leitor a imaginar que O hóspede das tempestades se constrói como uma espécie de biografia romanceada. Aí, o narrador é um jovem repórter dos Diários Associados que passa de entrevistador a amigo de Vicente Celestino. A sobreposição de episódios e a substituição do tempo cronológico da narrativa pelo tempo psicológico remetem o leitor ao território do romance-documento.
Mas nos cinco capítulos seguintes, Guido Guerra muda completamente de estilo, assumindo o lugar do ensaísta, ou mesmo do repórter objetivo, embora crítico. O último capítulo, “A voz orgulho do Brasil”, é uma reunião das várias entrevistas, em forma de pergunta e resposta, que Guido publicou na imprensa baiana com Vicente Celestino. Ao contrário do que disse José Ramos Tinhorão, em crítica ao livro, a transcrição destes documentos, mesmo tendo servido de base aos textos anteriores, não são redundantes. Testemunham, de modo direto, e sem a refração do olhar do outro, a profunda lucidez e o senso crítico do velho tenor. É admirável a compreensão que um cantor e compositor da chamada velha guarda tem dos novos movimentos e do lugar que lhe é reservado. Não acalenta ilusões, mesmo diante de homenagens e palavras de reconhecimento, como o título de expressão máxima da música brasileira, que lhe foi conferido pelo Festival Internacional da Canção, realizado em 1967, no Rio de Janeiro.
Vicente Celestino sabia que sua música não tinha mais lugar no gosto das novas gerações. Ele diz, numa das entrevistas a Guido Guerra, que ”cai bem reverenciar uma figura do passado, homenagear um velho cantor que conheceu os píncaros da glória, cuja popularidade ninguém discute: circulam piadas com meu nome, lendas de que quebrei copos de cristal com um simples agudo, que desafiei tenores para um dó-de-peito, coisas que estão enraizadas no anedotário popular. Quando uma mulher tinha seios volumosos, dizia-se que tinha mais peito que Vicente Celestino. Pois bem, retomando o fio da meada: uma coisa é o reconhecimento pelo que se fez. Outra é premiar pelo que se faz agora, no presente. No caso, foi uma homenagem hors concurs. Não é a mesma coisa. Se eu me inscrevesse, se disputasse uma classificação, aí a coisa seria bem diferente. Eu não estou enquadrado no que, hoje, o bom gosto musical consagra.”
Ele percebeu como os compositores e intérpretes da Bossa Nova criaram uma nova estética musical, destinada a sepultar o velho estilo de cantar. E afirma: “Ela veio porque teria de vir, porque os jovens surgiram em busca de caminho. Uma geração não se afirma copiando a outra, mas negando-a.” E acrescenta, comparando a durabilidade dos movimentos e modas em outros países com o consumismo relâmpago instaurado no Brasil: “Quando o rock surgiu nos Estados Unidos, com Elvis Plesley, não inviabilizou a balada, o fox, o blues, o jazz. Havia espaço para todas as vertentes. No Brasil, quando uma moda pega, parece que vira a cabeça de todo mundo e nada mais presta. Isto é terrível, porque cria uma unanimidade estética, um padrão exclusivo de cantar e compor, de ver o mundo sob a mesma ótica, ou seja, não se cria o confronto entre as várias tendências artísticas.”
Vê-se, portanto, como as reflexões do velho tenor continuam atuais, sendo de extrema importância a transcrição das suas próprias palavras, nas entrevistas concedidas a Guido Guerra.
O capítulo inicial e o final do livro O hóspede das tempestades, divergentes que são do corpo deste ensaio reportagem, cumprem porém um papel bem definido. O primeiro dá lugar à livre imaginação, redimensionando e refazendo os fatos acontecidos, o segundo amarra estes acontecimentos à estrita realidade.
Creio que o ponto forte do livro de Guido Guerra é a sua intimidade com o objeto eleito, a sua profunda e não ocultada simpatia por Vicente Celestino. Pelo homem e pelo artista. Esse amor e essa proximidade obrigam o autor do livro a conhecer e nos revelar muito deste artista.
Se os capítulos que fixam a trajetória de Vicente Celestino revelam uma intimidade produtiva com o objeto da sua análise, o mesmo não se pode dizer do capítulo em que Guido Guerra analisa movimentos como a Bossa Nova, a Tropicália e a Jovem Guarda. Isso, críticos de música popular já o fizeram melhor. Mas tal incursão foi sentida pelo autor como uma necessidade de contextualização de Vicente Celestino.
São justas as suas reflexões sobre diversos fatos da carreira do compositor-intérprete. Quando, no auge das reverências e irreverências do Tropicalismo, Caetano gravou um dos dramalhões musicais mais conhecidos de Vicente Celestino, público e artistas se dividiram no modo de receber e interpretar o acontecimento. Com isenção e propriedade, Guido Guerra observa no seu livro: “A interpretação de Coração Materno, na recriação de Caetano Veloso, demarcaria as diferenças entre o movimento nascente e o agonizante: a expectativa, anunciada a gravação, era de um tom crítico que expusesse o velho cantor ao ridículo, o que não ocorreu: observou-se, ao contrário, a supressão da carga dramática pela valorização da letra e, por via travessa, do conteúdo trágico; e aí saltava à vista o conflito entre duas gerações”.
Para os admiradores de Vicente Celestino, a publicação de O hóspede das tempestades é uma excelente oportunidade de reencontro com o velho tenor. Nessa celebração, envolvendo o autor e os leitores, a cumplicidade da emoção fala mais alto e renova na lembrança  o tempo as auroras puras.

O impassível fluir do trágico:
maturidade da escrita

Depois de bem sucedidas incursões pelo vasto território do romance, Guido Guerra volta ao conto, escrevendo páginas da melhor qualidade em Vila Nova da Rainha Doida. Ele saltou da crônica diária do jornal para as páginas do livro quando ainda não conhecia o fluxo das traiçoeiras correntezas do rio, cortado por pedras, quedas d’água e cachoeiras – o curso da escrita.
Os contos de Dura realidade, publicados em 1965 pela Editora Progresso, marcaram a estreia de um escritor que em quase nada deixava entrever o ficcionista da maturidade. Na casa do sem jeito, livro de crônicas que veio em seguida, traziam para o livro a irreverente figura do Papagaio Devasso, uma espécie de Boca do Inferno dos inquietos anos sessenta.

*   *   *

A partir do final dos anos 70, Guido Guerra construiu seu espaço no quadro da ficção e, especialmente, do romance brasileiro com livros como O último salão grená, Lili Passeata, Quatro estrelas no pijama e Ela se chama Joana Felicidade, publicados pela Civilização Brasileira, pelo Clube do Livro e depois pela Record.
Jornalista por formação, começou pela narrativa curta, pela história feita para ser lida de uma só fôlego. História que reunia a agilidade da reportagem e o humor circunstancial da crônica. Depois, ele descobriu que precisava do tempo e do espaço romanescos para conferir densidade aos seus personagens, muitos deles nascidos do texto perecível de jornal.
Chegando ao romance, Guerra apurou sua artilharia narrativa e amadureceu como escritor. Vila Nova da Rainha Doida é o retorno do escritor ao campo de desafios da história curta. Neste livro ele realiza alguns contos exemplares, capazes de permanecer na mente do leitor engendrando outras palavras. Palavras ditas do interior de cada um de nós quando tecemos o fio de ligação entre o destino dos seus personagens e o nosso cotidiano de leitores.
Outros contos, no entanto, permeiam a crônica, com sua despretensiosa espontaneidade, onde o anedótico se sobrepõe à astúcia fabulativa. São histórias que não alcançaram o mesmo nível de linguagem e fabulação que carateriza o livro como um conjunto, como um todo formado por cordilheiras ensolaradas e vales sombrios. Mas as boas histórias compensam plenamente os momentos em que o cronista do cotidiano aligeirado insiste em ocupar espaço nestas quase duzentas páginas de Vila Nova da Rainha Doida.
O mundo rural, as pequenas cidades do interior, tomadas como metáforas confortáveis da sociedade global, constituem o território mais luminoso da narrativa de Guido Guerra, o espaço onde ele realiza melhor o trabalho ficcional. As histórias transcorridas nesse mundo emblemático são as mais fascinantes, a exemplo daquelas passadas em Mirante dos Aflitos, cidade do Coronel Duarte e do seu fiel escudeiro Tibério Boa Morte.
Nesse espaço denso e trágico o ficcionista pôde alcançar seus mais bem acabados relatos, transpondo para o domínio distante das ficções do interior, a opressão e a injustiça que caracterizam a reluzente miséria do neo-liberalismo.
Sem fazer apologia dos deserdados e sem macaquear o engajamento dos anos sessenta, o texto desse escritor dispara certeiro e objetivo, guardando nos cofres do faz de conta os tesouros da solidariedade e da denúncia mais conseqüentes.
A força da tragédia banal dos homens simples é, às vezes, arrefecida pela busca do humor. Em meio ao desapontamento do narrador e do leitor diante das impassíveis engrenagens da máquina do mundo, Guido Guerra recorre ao humor de conformação um tanto irônica e cáustica, quebrando a tensão da narrativa. Mas os melhores momentos são aqueles em que ele enfrenta o destino das suas criaturas de papel, deixando que elas executem movimentos de desespero e resignação contra a rede da vida. Deixando que elas encenem o gesto falido ou o ensaio mambembe desse drama, cujo roteiro todos gostaríamos de reescrever. Mas o drama não se passa num palco, porém nas ruas do nosso tempo, onde o riso desconcertado toma o lugar que poderia ser ocupado por um soco no vazio – ou pelo impassível fluir do trágico.

Guido Guerra: do jornalismo
à criação literária

Auto-Retrato é um livro que se escreveu a muitas mãos e há muitos anos; ou melhor, ao longo dos anos. As mãos do escritor maduro e com seguro domínio dos seus instrumentos de trabalho, reunindo os textos que compõem este livro de retalhos, ao completar sessenta anos, não são as mesmas mãos do incipiente cronista que, nos anos sessenta, verteu pelas páginas do velho Diário de Notícias golfadas de mel e de fel, às vezes misturadas numa mesma taça. São outras também, diversas das do cronista de Na casa do sem jeito, as mãos que escreveram O último salão grená e aquelas outras, definitivamente seguras, que traçaram as linhas precisas de Vila Nova da Rainha Doida.
Esse livro é, mais do que um painel, uma espiral. Ascendendo, depois de muitas voltas, idas e vindas, até achar o caminho mais simples e mais próximo da chegada: a maturidade.
Nascido a 19 janeiro de 1943, na cidade de Santa Luz, região sisaleira da Bahia, Guido Guerra viveu boa parte da infância e da adolescência (1947-1958) em Senhor do Bonfim, onde o seu pai, o futuro desembargador Adolfo Leitão Guerra, foi Juiz de Direito.
Em Salvador estudou no Ginásio Ipiranga, no Colégio de Aplicação da UFBA e,  finalmente, no Colégio da Bahia (Central), onde começou a fazer o curso Clássico, que não chegou a concluir.
As redações de jornal foram responsáveis pela sua formação posterior. Mesmo sem curso universitário obteve o registro de Jornalista Profissional, após os muitos anos de aprendizado. Neste ponto, sua trajetória foi idêntica a de muitos escritores brasileiros tanto do século XIX quanto do século XX, cuja escola superior foi o trabalho diário com a palavra escrita no calor da hora e na apressada contingência do jornal. Machado de Assis, Graciliano Ramos, ou o baiano Herberto Sales são apenas exemplos.
Ainda estudante no Central, começou o aprendizado no Jornal da Bahia, em 1961, recém fundado diário que teve em seus quadros intelectuais como João Carlos Teixeira Gomes, Florisvaldo Mattos, Glauber Rocha, Ariovaldo Matos, David Salles, Paulo Gil Soares e outros. Pouco depois, por volta de 1962, transferiu-se para o Diário de Notícias, onde foi repórter e logo em seguida começou a assinar uma coluna.
Sobre os anos de atuação de Guido Guerra no velho DN, Jorge Amado deixou algumas páginas registradas no livro de memórias Navegação de Cabotagem que bem revelam o perfil combativo do jornalista e do futuro escritor. Em 1972, o jornalista responde pela primeira vez a um inquérito na Polícia Federal, órgão civil responsável pela censura e pela repressão aos adversários do regime militar implantado em 1964 e que, poucos anos depois, se caracterizaria como uma longa ditadura de direita, a serviço da política imperialista dos Estados Unidos, hoje plenamente hegemônica. A esta acusação de subversão, seguiram-se muitas outras. Guido Guerra respondeu a 17 inquéritos e interpelações do regime ditatorial. Algumas vezes foi afastado do jornal, para voltar em seguida e tornar a ser afastado, enquanto durou a censura e a presença dos oficiais militares nas redações dos jornais.
Em 1963, escreveu no semanário Folha da Bahia, jornal de esquerda empastelado pelo golpe militar de 64, cuja redação funcionava na sede do Partido Socialista Brasileiro, congregando militantes do clandestino Partido Comunista. Em seguida passou a colaborar com o Jornal IC, dirigido por Ariovaldo Matos e José Gorender, ambos anteriormente ligados à Folha da Bahia. A partir de 1977 retorna ao Jornal da Bahia, onde assina a coluna “Nariz de Cera”, transferindo-se em seguida para a Tribuna da Bahia, como redator principal da seção “Roda Viva”. Nos anos 80 torna-se editorialista e colunista do Jornal da Bahia, funções que deixa para assinar uma prestigiada coluna no recém-fundado Bahia Hoje, de vida curta.

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Recordações do escrivão Guido Guerra; ou perfil de um criador de mundos paralelos. Iararana (Salvador), v. IX, p. 16-25, 2007.

27/10/2015

Identidade

Modernismo e identidade:
impasses e confrontos de uma vertente regional

Cid Seixas
  
Quando, na Bahia, os jovens Rebeldes de 1928 se puseram em combate às estruturas conservadoras da sociedade, dirigindo farpas e flechas à Academia Brasileira, fundaram uma outra academia para combater a conivência acadêmica com as conveniências da impunidade e as oligarquias do imutável.
            A tempestiva reunião de intelectuais baianos ainda jovens e desconhecidos (do porte futuro de Jorge Amado, no romance, de Edson Carneiro, na etnografia, de Sosígenes Costa, na poesia, ou de Walter da Silveira, no cinema e no ensaio de crítica da cultura), esta bem temperada panelinha baiana foi marcada pela tempestuosidade de aparência inconsequente e de consequências significativas.
            Não tendo construído um grande acervo de produção durante os seus breves anos de existência e tumulto (de 1928 a 1933), a Academia dos Rebeldes já foi vista como um movimento apenas contestatório e demolidor. O próprio Jorge Amado, no tom despreocupado e bonachão que revestiu e abaianou seu discurso, após abandonar as barreiras do stalinismo e superar as limitações do Partido Comunista, foi responsável pela disseminação de uma idéia demasiadamente modesta a respeito do papel fomentador dos Rebeldes. Não obstante, nos últimos anos, o mesmo Jorge Amado ter legado à posteridade depoimentos decisivos sobre o papel diferencial do grupo com o qual se iniciou na literatura e na militância popular.[1] A força inovadora destes jovens decorre, portanto, de um conjunto de fatos iluminados por uma proposta própria e sociologicamente determinada de modernidade literária, ou ainda por um fenômeno artístico que Nelly Novaes Coelho designou de olhar inaugural.
            Convém, portanto, não subestimar a importância desta vertente sociopolítica do modernismo na Bahia pelo fato da Academia dos Rebeldes ter constituído apenas um meteórico programa de passagem para os seus integrantes. A curta duração deste agrupamento intelectual deveu-se à explosão de interesses e projetos culturais múltiplos, que se realizariam em espaços diversificados. Inteiramente distanciada e independente do modernismo da revista Arco & flexa,[2] a Academia dos Rebeldes procurava ignorar o modernismo de importação da Semana de Arte Moderna de São Paulo e suas ramificações e re-significações regionais. Enquanto a maior parte dos jovens modernistas de regiões ou nações periféricas se contentava em traduzir para a sua cultura as conquistas do admirável mundo novo, caracterizando assim os primeiros embates modernistas, alguns “refratários” e rebeldes procuravam a própria identidade da sua cultura. Identidade esta verificável no trânsito da tradição para a inovação pressuposta pelos mecanismos do processo social. As configurações regionais do modernismo (ver mais adiante os possíveis pontos identitários entre os rebeldes baianos, a “escola” pernambucana de Gilberto Freyre e a colidente modernidade de Monteiro Lobato) levaram à constituição de uma cultura artística ou de um modernismo de exportação. O regionalismo dos anos trinta decorre deste diferencial, assegurando ao então jovem Jorge Amado a possibilidade de inverter uma relação secular entre as literaturas do Brasil e de Portugal. Se até então Lisboa estava investida no papel de metrópole intelectual das relações bilaterais, Alves Redol vai buscar em Jorge Amado alguns pontos de sustentação da insciente proposta que resultou na eclosão do neo-realismo português.
Revisitar tal proposta de reconstrução da realidade brasileira – não esboçada completa e claramente no momento da sua constituição como grupo, mas inquietantemente detonada como caleidoscópio – é o propósito enunciado.
            Comecemos pela tentativa de explicação do título deste trabalho: “Academia dos Rebeldes (sem causa?). Revisitando uma proposta não esboçada”. A pergunta parentética quer funcionar como provocação ou como resposta afirmativa contrária ao aparente enunciado interrogativo.
            Parte-se, não apenas, da hipotética importância do desconhecido papel da Academia dos Rebeldes para a moderna Literatura Brasileira, mas também da certeza que a rebeldia, guinada à condição de título do grupo, ultrapassa os arroubos juvenis e se inscreve como uma marca decisiva e constante dos seus participantes.
            Desmontando, aos poucos, o sentido inicialmente sugerido e a ironia das formulações, compreende-se o porquê da criação de uma academia para combater a convivência acadêmica com o conservadorismo. Mas estes Rebeldes também se voltaram contra as formas de vã guardismo que julgaram inconsequentes e dissociadas da realidade cultural brasileira. Deste modo, admitiram a retomada das tradições que estivessem em consonância com as necessidades concretas do homens no seio da vida social. Aí, a forma de comprometimento ideológico destes Rebeldes define as fronteiras do seu processo criativo, abrindo sendas para as questões políticas e identitárias – que como tais ainda não eram denominadas.
            Já se censurou os moços de 28 pela “incoerência” de terem criado uma academia para combater a Academia. Nada de contraditório, se aceitarmos que as academias, nas duas acepções – de instituições do saber ou de confrarias de intelectuais – podem estar a serviço da construção do presente e da arquitetura do futuro ou, tão somente, podem significar a melancólica rememoração do passado.
            Intitulada aquela de Academia dos Rebeldes, seus confrades queriam assinalar o caráter disfórico das academias instituídas e, ao mesmo tempo, recuperar a euforia acadêmica através de uma rebeldia quase adolescente. Opor a disposição dos jovens para mudar o mundo à apatia dos já estabelecidos diante do paradigma fóssil – eis a proposta dos jovens baianos de 28.
            Se na idade madura, o homem repousa na confraria dos vencidos da vida, no início da juventude a academia é dos rebeldes. E porque rebeldes, estes acadêmicos ou antiacadêmicos baianos que ajudaram a construir o avançado patamar dos anos 30, antes mesmo de esboçarem uma proposta de ação, fizeram irromper, a seu modo, o trabalho de reconstrução da realidade brasileira.
            Ilustre desconhecida, a Academia dos Rebeldes se inscreve neste lugar comum da linguagem. Cabe então retomar, um pouco, a sua história insuficientemente contada além dos velhos muros e derruídas portadas da Cidade da Bahia.
            No volume de 1992, Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei,  Jorge Amado diz em tom sério-jocoso: “A Academia dos Rebeldes foi fundada na Bahia em 1928 com o objetivo de varrer com toda a literatura do passado – raríssimos poetas e ficcionistas que se salvariam do expurgo –  e iniciar a nova era.” (Amado, p. 84)
            Seguindo um hábito boêmio da época, quando escritores e intelectuais se reuniam em torno de uma mesa de bar, jovens como Jorge Amado e Edson Carneiro, então com 16 anos, e outros mais velhos, a exemplo de Alves Ribeiro, Clóvis Amorim, João Cordeiro, Aydano do Couto Ferraz e Da Costa Andrade, também transformavam as infindáveis discussões etílicas em inflamadas tertúlias literárias. Sosígenes Costa, poeta da cidade de Belmonte residindo em Ilhéus, a capital dos coronéis do cacau, foi convidado por Jorge Amado a participar do grupo. Era mais um correspondente literário do que um frequentador das rodas boêmias, tendo raríssimas vezes se deslocado a Salvador.
            O mentor inicial do grupo foi o poeta e agitador cultural Pinheiro Viegas, corrosivo intelectual que também destilou seus feitos e seu fel entre os rapazes da revista Samba[3] que, em 1928, formavam um outro grupo atuante na Bahia. (Seixas, 1996, p. 73-79) Assim como Carlos Chiacchio foi o intelectual mais velho e já reconhecido que serviu de fiador dos rapazes de Arco & flexa perante a tradição baiana, Viegas se tornou patrono tanto da Academia dos Rebeldes quanto do grupo ligado à revista Samba. Jorge Amado se refere a ele como “panfletário temido, epigramista virulento, o oposto do convencional e do conservador, personagem de romance espanhol, espadachim”. E na mesma passagem do texto acrescenta a múltipla informação: “A antiacademia sobreviveu ao patrono e durou ainda um ano; o último a obter ingresso em suas hostes foi Walter da Silveira.” (Amado, p. 84)
            Muito embora a militância comunista tenha funcionado, em diversos momentos da vida intelectual, como elemento redutor da autonomia da arte, o compromisso político de alguns Rebeldes constituiu um fator decisivo para os pontos de coesão entre estes criadores. A militância serviu de régua e compasso aos escritores que levantaram um projeto de modernidade – visceral e epidermicamente – afinado com a realidade do seu povo.
            Quando era o último dos sobreviventes do grupo que formou a Antiacademia de 28, Jorge Amado procurou reconsiderar o papel desempenhado por aqueles bem humorados mosqueteiros, que combateram o bom combate dos fins dos anos vinte aos princípios dos anos trinta, fazendo um inventário sucinto do papel desempenhado não apenas nos tempos da juventude mas durante toda a vida de cada um dos Rebeldes. Amado chegou então a esta avaliação sentimental:

                “Único vivo do grupo que compôs a Academia, no exercício da saudade, faço o balanço dos livros publicados pelos Rebeldes, por cada um de nós. A Obra Poética e Iararana, de Sosígenes Costa: sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental de Édison Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente, crítico literário, o grande Édison; os Sonetos do malquerer e Os Sonetos do Bem-querer, de Alves Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos; os dois livros de contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos; os dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Massapê; o romance de João Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título para Corja; as coletâneas de poemas de Aydano do Couto Ferraz, a de sonetos de Da Costa Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema – some-se com meus livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo.” (Amado, 1992, p. 85)

            Fundamentando a sua avaliação, segundo a qual o grupo teria uma destacada importância, Jorge Amado mostrou como os Rebeldes concorreram “de forma decisiva” para o processo de formação da moderna literatura brasileira “para dar-lhe conteúdo nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros. Fomos além [...], sentíamo-nos brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade, com ele construímos, jovens e libérrimos nas ruas pobres da Bahia.” (Idem, ibidem)
            Aí, portanto, a marca da Academia dos Rebeldes: a aliciação, ou o engajamento com formas e fundos populares calcados no sentimento telúrico e no compromisso identitário para com os valores da cultura nacional, ou até mesmo localista; aí, a sua linha tangencial adversa à essência do modernismo de 22. Enquanto o olhar focado pelas lentes da Semana de Arte Moderna espiava a cultura do povo brasileiro sob o véu da diferença caricaturada pelo pitoresco e pelo exótico, fazendo desfilar um Brasil fantasiado para inglês ver, a perspectiva deflagrada pela práxis textual da Academia dos Rebeldes estava fundada na ação direta dos seus actantes. Para o escritor identificado com os princípios capitais dos Rebeldes, o compromisso identitário bania a superficialidade do pitoresco visto de fora, porque seu processo criador levava em conta a situação concreta que o cercava, enquanto sujeito ou actante da cultura.
            É ainda Jorge Amado em entrevista-depoimento para o livro Literatura baiana – 1920-1980, organizado por Valdomiro Santana, quem afirma, propondo uma cisão colidente entre o modernismo na Bahia e em São Paulo:

                “Nós, os Rebeldes, tínhamos um ponto de vista: queríamos uma literatura nacional, mas com um conteúdo capaz de universalizar. Tivemos a revista Meridiano, que só saiu um número e onde está o nosso manifesto. Quer dizer, vivemos o espírito do Modernismo – mas tínhamos uma certa desconfiança desse movimento, aquela coisa de paulista, de língua inventada. Os modernistas não conheciam a linguagem popular.” (Amado, 1986, p. 15)

            Se a força de uma tradição social de raízes populares mantém uma ordem de artistas sujeita à renovação fundada na prática cultural, tais artistas estão atrelados à caminhada com os pés roçando o chão, por mais híspido e incerto que seja o caminho. Já outros artistas, pertencentes a uma esfera ideológica oposta, são tentados a abandonar as veredas e picadas tortuosas pela ampla estrada da primeira miragem contemplada. Estes últimos reluzem aos olhos como bijuterias vindas de Paris, marcadas pela novidade e pelo rótulo da vanguarda.
            Daí a facilidade com que alguns modernistas do centro cultural do país aderiram, num primeiro momento, ao futurismo de Marinetti, enquanto o chamado modernismo periférico (de estados como a Bahia ou Pernambuco, citando-se apenas dois exemplos próximos) procurava conter o novo na prática corrente ou possível da geléia geral do lugar. Visto de relance, trata-se de um lance cauteloso ou mesmo conservador. Mas, visto com vagar, a impressão cede espaço a uma reflexão mais consequente.
            O próprio Mário de Andrade, que ao longo da sua vida literária embebeu-se de Brasil, guardando a descoberta da nacionalidade na bagagem do turista aprendiz, começou cedendo ao fascínio pela novidade vinda de fora. Depois é que descobriu que o novo se faz com materiais reciclados.
            Mais uma vez, quero aproximar a forma de construção de uma nova realidade nacional adotada por Jorge Amado e pelo grupo dos Rebeldes daquela realizada por Gilberto Freyre, em Pernambuco, ou, pioneiramente, por Monteiro Lobato, na solidão caipira de São Paulo. São propostas da modernidade que, por divergirem da gramática modernista, foram inicialmente acoimadas de anacrônicas.
            E aqui insisto no caso Sosígenes Costa, cujo poema Iararana foi revelado aos leitores, por José Paulo Paes, já submetido ao estigma judicatório do anacronismo, pelo próprio organizador do volume. Apesar do esforço em fazer circular a vertente epidermicamente modernista do poeta grapiúna, esta obra nuclear e fundadora, surgida na saliência fecunda do modernismo brasileiro, foi vista com reserva pela crítica nacional. Sosígenes Costa só encontra lugar entre os historiadores da literatura brasileira como poeta simbolista, figurando no amplo painel daqueles que continuam fiéis às sutis formas de representação do século XIX nas primeiras décadas do século XX. Tendo em vista a produção simbolista de Sosígenes anteceder e proceder à sua desassistida vertente modernista, convém especular se o modernismo (não a modernidade) no poeta não seria algo de epidérmico.
Cacau de Jorge Amado e Iararana, de Sosígenes Costa, são textos dos três primeiros anos da década de trinta que inauguram o ciclo do cacau, respectivamente, no romance e na poesia. O primeiro marcado pelo realismo socialista, o segundo desmedido experimento que flutua entre as propostas identitárias – comuns a Amado, Edson Carneiro, Sosígenes ou Walter da Silveira – e o desafio de aceitar as blagues e os blefes da poesia modernista de 22 ou de 28.
            A originalidade do nativismo de Sosígenes Costa salta da invenção do Brasil empreendida, no século anterior, por Alencar, para se enveredar pelas roças de cacau do sul da Bahia. A partir de uma metonímia localista propondo mitos fundadores de uma cultura mestiça como figuração do nacional, Sosígenes ousa submeter a epopéia aos signos dessacralizadores da paródia. Indo além dos inventos pioneiros de Mário de Andrade, em Macunaíma, ou de Cassiano Ricardo, em Martim Cererê, o rebelde Sosígenes Costa é punido com a indiferença da crítica brasileira, pela rebeldia diferencial de Iararana.
            Ao propor a aproximação entre os Rebeldes e Monteiro Lobato, prevejo o reconhecimento que aos poucos se impõe. Convém lembrar aqui Oswald de Andrade em Ponta de Lança, quando significativamente sublinhava: “Urupês é anterior a Pau Brasil e à obra de Gilberto Freyre.” Mais adiante, o são-joão-batista do modernismo dá a bóia por baixo, submetendo os pioneiros de 22 à avaliação do “passadista” Monteiro Lobato: “nós também trazíamos nas nossas canções, por debaixo do futurismo, a dolência e a revolta da terra brasileira.” (Andrade, 1971, p. 4)
            Reconhecendo o papel manancial deste autor estigmatizado pelos modernistas de 22 e admirando a consistência das idéias do Jeca Tatu, Oswald diz que Lobato “oferecia um peito nu e atlético aos golpes mais profundos de que lançam mão a usura e o latrocínio.” Convinha aos saqueadores do Furacão-da-Botocúndia matar o homem para saquear seus bens; àqueles a quem o autor de Ponta de Lança chamou de “grandes carnívoros que se alimentaram muitas vezes das suas idéias, das suas iniciativas e descobertas”. (Andrade, 1971, p. 5)
            Voltando à antiacademia dos Rebeldes, é importante que se proponha, a partir da periferia, ou de espaços que ultrapassam os limites do centro, uma revisão do lugar, na literatura brasileira, de escritores e de movimentos que responderam às circunstâncias culturais das diversas regiões do Brasil.
            Obras e movimentos, a exemplo dos Rebeldes baianos, que se inscreveram na modernidade brasileira independente ou divergentemente do Modernismo de 22, foram vistos, durante algum tempo, como conservadores e anacrônicos, sendo deslocados do lugar que de fato ocupam na história da nossa literatura.
            O aparente ante-modernismo pode significar a marca da diferença; a recusa de uma região do país de abandonar a sua identidade longamente constituída. Estas formas refratárias, desobedientes, insubmissas (de Pernambuco ou da Bahia, por exemplo), podem ser vistas como uma forma de afirmação da modernidade nem melhor nem pior, apenas diferente da forma surgida com a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Assim como o modernismo brasileiro traz uma marca diferencial com relação à modernidade vista através dos escritores europeus, o modernismo dos vários estados brasileiros também surgiu de condições culturais diversas daquelas do Rio de Janeiro, capital da República, ou de São Paulo, nova capital econômica do país. (Seixas, 2001, p. 82)
            Adotar um padrão, uma gramática modernista, a partir da ótica da maior cidade industrial brasileira, serviu para balizamento didático de uma historiografia da literatura em processo de escrita, mas pode relegar ao esquecimento importantes manifestações literárias brasileiras, num país marcado pela diversidade de culturas.
            Cidade mestiça, umbilicalmente ligada ao continente africano, Salvador conseguiu superar – ou por em suspenso – a sua ilusão de bastarda princesa européia nas obras de Jorge Amado, de Edison Carneiro ou de Walter da Silveira, por exemplo. Estes autores souberam ver as virtudes da diversidade: o papel do negro e da mestiçagem no processo de formação da nossa cultura. Daí o que veio depois, a flamejante consequência da ousadia destes Rebeldes que souberam desobedecer à norma gramatical modernista brasileira, construindo a modernidade não a partir das quinquilharias contrabandeadas da Europa mas da matéria bruta, prima, retirada da realidade regional. Jorge Amado como figura essencial do romance regionalista de 30. Edison Carneiro e os estudos etnográficos revolucionários com relação à contribuição do negro. Uma antropologia da mestiçagem, vista não mais do lado de fora, mas como imperativo visceral da utilização dos instrumentos da cultura européia pelos afro-descendentes. Walter da Silveira como pensador do cinema e formador de uma nova mentalidade cinematográfica no país. Todos sabemos que Glauber e grande parte do cinema novo saído da Bahia não seriam os mesmos sem a influência constelar de Walter da Silveira. Tudo isso que foi feito nos anos 30 e se reinventou, ao longo dos anos seguintes, nasceu daqueles rapazes que viam com desconfiança o jeito de corpo dos modernistas da grande cidade. No modernismo visto do quintal, dos terreiros, becos e ladeiras, outros bichos e outras gentes entram na história.
            Rebeldes sem causa? Pois sim...


IARARANA 

Enquanto o centro intelectual do país – representado nos primeiros anos do século XX pelo Rio de Janeiro, Capital da República, e por São Paulo, novo pólo econômico – procurava se manter sintonizado com o ideal de modernidade presente na sociedade e nas literaturas européias, as regiões mais afastadas recebiam intempestivamente as silhuetas e ressonâncias do admirável mundo novo.
            Monteiro Lobato, não obstante combatido pelas primeiras escaramuças modernistas, orientava sua obra por um movimento de fundação identitária que corrigia os desvios românticos da tentativa de estabelecimento de uma representação (ou de uma imagem) nacional empreendida no século XIX. Enquanto os olhos do Brasil miravam a Europa para reescrever o Brasil, olhos vesgos olhavam para dentro. Tal olhar, por vesgo, torto, oblíquo, dirigido para outro lado, isto é, o lado da cá, era tido como feio, desajeitado, curiboca. No caso, quase sinônimos.
            Se em 22 a intelectualidade paulista dividia tais hesitações com o ímpeto da Semana de Arte Moderna, em 28 meia dúzia de rapazes baianos combatia o academicismo dominante fundando, eles mesmos, mais uma academia. Edson Carneiro (o etnólogo), Jorge Amado (o romancista), Sosígenes Costa (o poeta) definiram as suas obras a partir de idéias difusamente compartilhadas na Academia dos Rebeldes. Os baianos, apesar de novos (Jorge Amado mal completava seus dezessete anos), não se entusiasmavam pelo Modernismo de 22, especialmente pelas ressonâncias europeizantes que davam prestígio aos primeiros gritos da rapaziada paulista.
            Deste modo é que a cautela com que os moços da província aderiram ao modernismo do centro soaria dissonante a ouvidos afinados com a  ruidosa sinfonia metropolitana. José Paulo Paes, no que pese a argúcia crítica do ensaio “Iararana ou o Modernismo visto do quintal”, com que introduziu a sua excelente edição do poema nuclear de Sosígenes Costa, pautou a análise pela idéia recorrente de um caráter anacrônico do texto do poeta baiano.
            É a propósito de um aparente descompasso, ou de uma oscilação dialética entre tradição e ruptura, presente na indiferença ou na desconfiança inicial dos integrantes da Academia dos Rebeldes para com os Modernistas de São Paulo, que foi arrolado o episódio Monteiro Lobato. Enquanto brios e brilhos da Semana de Arte Moderna refletiam luzes de Paris, projetando sombras sobre a Mata de Pau Brasil, projetos de modernidade essencialmente fundados numa concepção nacionalista, como os de Lobato, em São Paulo, de Gilberto Freire, em Pernambuco, de Jorge Amado e seus companheiros, na Bahia, não prescindiam das tradições identitárias nacionais e locais, pois sobre elas ergueriam seus patamares.
            Convém, observar ainda que a modernidade brasileira, através das suas diversas manifestações e modernismos literários, ao trocar os temas de circulação européia e metropolitana por objetos constituídos pela identidade local, flutuou entre dois enfoques. O primeiro encerra uma visão da nossa cultura com olhos externos (embora esses olhos já sejam os nossos), onde o pitoresco e o exótico extasiam o expectador, como o olhar do viajante. O segundo constitui uma visão vividamente interior, menos feérica na medida em que projeta luzes e sombras, grandezas e misérias.
            É esta procura de uma representação de essência realista que dará forma a uma sociologia do negro nas obras de Edson Carneiro e de Jorge Amado; ou da cultura do cacau nos textos de Sosígenes Costa, de um lado, e Jorge Amado, do outro. Enquanto Amado inicia sua saga do cacau para denunciar a exploração do trabalho e a usurpação do lucro, Sosígenes, também no começo dos anos trinta, escreve Iararana para denunciar a usurpação do poder de uma cultura por outra estranha e invasora.
            Gilberto Freire sustentava a atualidade do seu discurso numa análise da tradição brasileira e colonial portuguesa consonante com o mais rigoroso aparato conceitual da cultura moderna. Monteiro Lobato quis renovar a literatura nacional convocando um elenco de personagens com os pés fincados na tradição cultural da nossa terra. O que une a todos eles é o compromisso com a cultura da sua nação, sobreposta à idéia de uma modernidade importada a custo da perda da própria identidade nacional, ou mesmo regional. Daí, a oscilação pendular que poderia manter a renovação em suspenso caso esta implicasse numa descaracterização cultural.
            Embora atento à diversidade destes fatos, José Paulo Paes parte da eleição de um tempo e de um lugar modelares, com base nos quais orienta seus pressupostos críticos. É verdade que o mesmo estudo, que aponta para – ou adere a – um topocentrismo cristalizado, também valoriza a diferença.
            Enquanto Menotti Del Picchia, na sua conferência durante a Semana de Arte Moderna, bradava enfurecido: “Morra a Hélade! Organizemos um zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do Parnaso!”; enquanto Menotti orquestrava a vaia, Sosígenes promovia um insólito sincretismo da mitos indígenas com a mitologia clássica, engenhosamente tratada pelo viés burlesco.
            Se a tradição poética brasileira, conhecida por Sosígenes Costa e pelos circunspectos leitores baianos do início do século passado, flectia-se de modo reverencial, e até mesmo servil, ante mitos e mimos do mundo clássico, o poeta das roças de cacau metia tudo no saco de gatos de uma presepada curiboca, mestiça e sestrosa – sobretudo safada.
            José Paulo Paes sentencia:

                É bem verdade que os deuses do Parnaso comparecem em Iararana sob o signo negativo da paródia ­– signo modernista por excelência e particularmente caro a Sosígenes Costa, a quem ensejou invenções notáveis –, mas nem por isso deixam de ali estar menos presentes. Outro traço diferencial do poema é o empenho, mais que nacionalista, localista: sua ação se passa quase toda em Belmonte, a cidade natal do poeta, e isso é assaz significativo. Significa, quando mais não fosse, filiar-se Iararana menos àquele nacionalismo de programa que levava o paulista Mário de Andrade e o gaúcho Raul Bopp a procurarem na distante Amazônia, deles conhecida somente através dos livros, inspiração para Macunaíma e Cobra Norato, do que a nostalgia da infância subjacente a boa parte das peças reunidas na Obra Poética, especialmente na sua parte final, "Belmonte, Terra do Mar", tida por Manuel Bandeira como a de "maior força" no conjunto do livro. Um exame do poema permitirá destacar melhor esses aspectos diferenciais. (Paes, 1979, p. 17)

            O cerne da questão aqui levantada é o des-valor, implícita ou explicitamente, imputado a Iararana quando a análise de José Paulo Paes, que apresenta o poema ao leitor, adere a um topocentrismo silencioso e pacificamente estabelecido. Chame-se novamente atenção para o fato do estudioso paulista operar seu enfoque crítico com base em um tempo e em um lugar modelares. (Os gregos e os romanos tomavam sua urbe como centro do mundo. Os norte-americanos até hoje pensam que Buenos Aires é a capital do Rio de Janeiro. São Paulo acha feio tudo que não é espelho.)
            É evidente que a blague e a ironia não desmerecem o trabalho do crítico sosigeniano, querem apenas sublinhar o lugar de onde ele fala. É por isso que José Paulo conduziu sua interpretação crítica sustentada na idéia recorrente de que o texto do poeta da roça está marcado por um caráter anacrônico. E é talvez esta observação que teria provocado a idéia de valoração negativa nos leitores da análise crítica responsável pela reposição da obra no circuito dos estudos sobre o modernismo brasileiro.
            Não obstante a força e a originalidade desta obra, transcorridos mais de vinte anos da diligência de José Paulo Paes para colocá-la em circulação, Iararana ainda não conquistou um lugar de destaque, figurando entre os textos de natureza similar, como o Cobra Norato, de Raul Bopp (ao qual se sobrepõe e supera em alguns aspectos essenciais), e o Macunaíma, de Mário de Andrade, na linha de construção de um herói nativo; ou mesmo como o Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, que incorpora e valoriza outros elementos culturais. Os livros pioneiros dos paulistas Mário de Andrade e Cassiano Ricardo são publicados em 1928, enquanto os poemas do gaúcho Raul Bopp e do baiano Sosígenes Costa só serão escritos no início dos anos trinta, quando o Modernismo Brasileira já era uma realidade geradora de tendências contrapostas e bem definidas, adquirindo um caráter e uma abrangência nacionais.
            Comparados a Macunaíma e a Martim Cererê, os poemas  Cobra Norato e Iararana remetem a um outro  momento modernista, momento em que a sociedade brasileira havia passado por profundas transformações. Curiosamente, o poema de Raul Bopp – fiel ao figurino nativista dos anos 20 – foi suficiente para colocar seu autor ao lado dos pioneiros do Modernismo Brasileiro, enquanto o de Sosígenes Costa – já marcado pela consciência identitária nacional e localista que perpassaria a literatura dos anos 30 – continua merecendo atenção secundária. Como exemplo, observe-se o lugar ocupado pelo poeta grapiúna em uma entre as principais Histórias da Literatura Brasileira que permitem uma perspectiva atualizada da produção do século XX, a de Massaud Moisés: o capítulo “Retardatários”, dedicado aos poetas Joaquim Cardozo, Dante Milano e Sosígenes Costa, embora garanta a Sosígenes “um lugar de destaque nos quadros da poesia moderna” (Moisés, 1989, p. 437), cataloga Iararana como um texto de “valor sobretudo histórico”. Observe-se como a perspectiva de José Paulo Paes teria influenciado um leitor rigoroso como Massaud Moisés, tanto que o historiador destaca a seguinte passagem do estudo crítico de Paes: “não há como fugir à evidência de que o primitivismo de Iararana já tinha algo de anacrônico no momento mesmo de composição do poema, anacronismo que a publicação do seu texto só faz aumentar”. (Idem, p. 436)
            São fatos desta natureza que podem condenar um texto ao purgatório crítico, bem como dar destaque a outros que o tempo poderá obscurecer. Iararana, de Sosígenes Costa, é portanto um poema que atravessa o longo processo inquisitorial de canonização, ou de condenação, no ano do centenário de nascimento do autor. A responsabilidade dos novos leitores e estudiosos da sua obra, sobretudo na esfera da Universidade, onde os estudos investigatórios mais verticais ganham espaço, decidirá o lugar a ser ocupado por este texto nos primeiros anos do século XXI.
            Coetâneos e igualmente épicos, Cobra Norato e Iararana remetem a uma mesma filiação indianista, o que justifica o ensejo de estudos comparativos destinados a fixar as convergências e as diferenças. Na primeira categoria, a das convergências, ambos estão sustentados em temas e linguagem retirados do inventário popular, embora Iararana submeta a história nacional, atrelada à história e à ancestralidade mitológica da civilização colonizadora, a um tratamento coloquial e a um registro linguístico deliberadamente popular e paródico – chistoso.
            Terminada a escrita de Iararana, Sosígenes enviou a um companheiro da Academia dos Rebeldes, Edson Carneiro, uma carta datada de 5 de dezembro de 1933, dando conta do texto de caráter deliberadamente modernista. Na sua linguagem informalmente irreverente, chamava o poema de “um negócio grande preparado este ano, que posso publicar, caso vocês achem que presta e está bom. Não é um negócio de coisas reunidas. É um negócio inteiro. É Iararana.” Em outra passagem da carta, ele detalha: “Começa com versos livres, soltos como menino no pasto, pula num samba, emenda por um coco, cai de novo no samba e termina falando como a gente fala para encurtar a história e não amolar a paciência.”
            Observe-se que mesmo avesso a publicações, Sosígenes está inclinado a editar o texto, caso os companheiros “achem que presta e está bom”. A propósito desta falta de entusiasmo do poeta pela divulgação da sua obra, Jorge Amado escreveu:

                Neste nosso país no qual até hoje os poetas pagam a edição de seus primeiros livros deu-se, em 1959, um acontecimento insólito: uma editora, a Leitura, do Rio, solicitou a um poeta até então inédito os originais do seu primeiro livro; e o poeta, em vez de mostrar-se lisonjeado, simplesmente recusou-se a atender ao pedido quase absurdo. Somente à insistência pertinaz dos amigos ele finalmente cedeu. Assim apareceu a edição de Obra Poética de Sosígenes Costa. Neste nosso país em que os poetas começam aos 16 anos – e alguns morrem ainda quase adolescentes –  um grande artista concedia em ser publicado quando estava próximo dos sessenta. Este seu único livro, uma edição de mil exemplares, é hoje raridade bibliográfica.
                Sosígenes Costa "era muito retraído", como se diz ainda hoje em Ilhéus, cidade da região cacaueira da Bahia onde ele viveu, sem ser percebido, a maior parte de sua vida. Sua participação no movimento literário limitou-se, nos últimos anos da década de 20 e ao início dos anos 30, ao vínculo com um grupo modernista  – não sei se a designação é correta; será pelo menos discutível – a Academia dos Rebeldes, de Salvador. Sob a égide de Pinheiro Viegas (poeta mais conhecido pelo seu jornalismo panfletário do que pelos sonetos e poemas de pequena circulação) esse grupo tentava renovar a literatura baiana, ao lado dos moços de Arco & Flexa e de Samba. Os poemas de Sosígenes Costa apareciam a espaços nas páginas de jornais e revistas e granjearam-lhe um punhado de leitores, círculo numericamente reduzido mas de alta qualidade e cheio de admiração.
                A publicação de Obra Poética causou, na ocasião, um certo impacto, naquele momento dominado pelas experiências concretistas [1959]. O livro de Sosígenes Costa obteve dois prêmios literários, um no Rio, e outro em São Paulo; mereceu artigos e louvores variados, inclusive dos concretistas. (Amado, 1979, p. 22)

            Após esta citação relativamente longa de Jorge Amado, procuremos retomar o fio do raciocínio interrompido. Apesar de alheio ao mundo das editoras, em 1933 Sosígenes Costa pretendeu submeter Iararana  ao crivo dos seus pares rebeldes. Infelizmente desconhecemos a reação de Edson Carneiro e de Jorge Amado diante do poema que inaugurava, na Literatura Brasileira, a gesta cacaueira. Neste mesmo ano de 33, Jorge Amado publicou Cacau, abrindo a saga que se desdobraria em Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e Gabriela Cravo e Canela, para ser encerrada com a síntese memorável que é Tocaia Grande, livro pertencente a este filão temático do escritor, que atravessa o realismo socialista e chega à escrita despojadamente popular e oral da maturidade.
            O levantamento – que se impõe, por necessário – da correspondência de Sosígenes com os outros integrantes da Academia dos Rebeldes poderá esclarecer pontos desta ordem e servir de subsídio para a compreensão de um momento paradigmático da nossa literatura, os anos 30.
            Unitariamente concebidos como epopéias modernas, Cobra Norato e Iararana respondem diversamente às inquietações dos anos 30, sendo que o segundo traz de acréscimo uma contundente crítica ao processo de colonização, retomando a idéia de estupro ou de violentação de uma raça, já presente, de modo secundário, no romance indianista de José de Alencar.
            Mas, apesar destes pontos comuns, o poema de Raul Bopp continua sendo tomado como caso exemplar único de epopéia modernista. Desde a década de setenta, quando a Civilização Brasileira publicou quatro bem sucedidas edições de Cobra Norato (a primeira delas em 1973 e a última em 1978), com nota introdutória do filólogo Antonio Houaiss e ilustrações de Poty, este poema passou a ter audiência nacional. Impresso inicialmente em 1931, na Gráfica Irmãos Ferraz, de São Paulo, o poema só ganhou uma outra edição em 1937, de apenas 150 exemplares numerados. Dez anos depois, o autor faz uma nova edição do texto, incluído no livro Poesias, de 500 exemplares, seguindo assim um curso de pequeno vulto. Creio que o volume intitulado Cobra Norato, o poema e o mito, de Othon Moacyr Garcia, publicado em 1962 pela bem frequentada Livraria São José, do Rio de Janeiro, contribuiu para inaugurar uma nova recepção do Cobra Norato. Bem aceita pela crítica, a análise interpretativa do autor culmina com a afirmação consagradora:

                Sendo o único e verdadeiro poema épico da literatura brasileira (porque popular pela essência do tema e pela feição da forma verbal), já que às tentativas anteriores – desde o Caramuru e O Uruguai até o I Juca Pirama e O Caçador de Esmeraldas e quantos se arrolem como tais – falta-lhes a feição de unidade temática e linguística de vínculo popular e legítimo sabor de brasilidade, – é Cobra Norato um dos melhores legados do Movimento Modernista, um dos grandes poemas destes sessenta anos de literatura brasileira do século XX. (Garcia, 1962)

            No ensaio pioneiro “Iararana ou o Modernismo visto do quintal”, de 1979, José Paulo Paes, obedecendo ao rigor da sua investigação, aplicado ao estudo de “gregos e baianos”, caracteriza o poema de Sosígenes Costa como devem ser caracterizadas narrativas como esta (ou como Cobra Norato):

                A palavra saga, há pouco usada, deve ser entendida no seu sentido mais próprio, aquele que lhe dá André Jolles quando a considera uma "forma simples" ou primordial (de que a epopéia é a sucessora literariamente erudita) e a define como a narrativa de acontecimentos pretéritos, oriunda de "uma disposição mental em que o universo se constrói como família e se interpreta, em seu todo, em termos de clã, de árvore genealógica, de vínculo sanguíneo" e em que assume o primeiro plano "o representante heróico de um clã determinado, o detentor hereditário das altas virtudes de uma raça". Tal conceituação se ajusta de perto ao argumento de Iararana a partir do momento em que se desenvolve o tema da descendência de Tupã-cavalo. (Paes, 1979, p. 15)

            Para fundamentar seu raciocínio, José Paulo Paes, examina alguns pontos essencial do mito mestiço criado por Sosígenes Costa, desde o início do tema quando o centauro Tupã-cavalo, "bicho mondrongo" chegado de Portugal, não encontra entre os seres fabulosos do Brasil – “a mula-sem-cabeça, a rainha dos jacarés, a caipora” – aquela com quem possa casar. Nas suas andanças de macho sem rédea,

Uma anta medonha com cara de homem
Entrou pela barra nadando no mar.

Assim os seres nativos identificaram o invasor até que, no diálogo da cena II, onde o narrador assume a figura do avô que conta a história ao neto (este “menino do céu”, como se verá mais tarde, o verdadeiro herói do poema):

            – Mas que bicho danado era este?
            Mas que bicho era este, senhor?

            – Menino, este bicho veio da Oropa.

            – Mas na Oropa tem anta, me diga?
            Olhe, me avô, que na Oropa não tem anta.

            – Esta anta com cabeça de gente não era anta, meu neto.
            Aquilo era cavalo da Oropa com cabeça de gente.

            Desta forma tomamos conhecimento da chegada do cavalo com cara de homem às matas primitivas do Brasil. Na procura de fêmea, o monstrengo vê a Iara do rio Jequitinhonha penteando os longos cabelos verdes à margem rio e a arrasta para o canavial, possuindo a senhora das águas com brutalidade. O estupro da nativa pelo europeu é representado na quarta parte do poema, através de um ritmo cheio de balanço e malícia:

            Ora, um dia a cana brava pegou fogo,
            Fogo pegou na cana brava,
            ninguém passe mais por lá.
            Olha o fogo no canaviá.

            O fogo devorando tudo remete o leitor em duas direções: a cana queimada e os corpos incendiados pelo ato de desejo. O ritmo ostensivamente folclórico do samba mostra no poema as pessoas correndo de “saia suspensa” ou de “roupa arribada”. O rio Jequitinhonha responde à agressão contra sua senhora das águas, a Iara, inundando tudo para afogar o invasor. Segundo José Paulo Paes, o episódio “comporta duas leituras: explicação mítica das enchentes periódicas do Jequitinhonha, tão temidas pelas suas populações ribeirinhas” ou ainda uma “figuração da hostilidade da natureza ao estrangeiro violador.” (Paes, 1979, p. 14-15). Na esteira de uma análise da estrutura mítica da saga, o crítico lembra que o fato paradoxal de um acontecimento único explicar inundações que se repetem em outros tempos obedece à “mecânica do mito, que reitera perpetuamente um acontecimento primordial”.
            Nove meses depois do incêndio no canavial  se dá o parto da Iara, quando nasce Iararana, descrita como de uma brancura de lagartixa, comparada ao pai tanto na cor quanto no caráter cruel. “Nessa brancura, que mostra ter Iararana puxado muito mais ao pai do que à mãe, confirma-se a violentação, cujo fruto perpetua o violentador, mais que a violentada.”
            É este poeta “quase completamente esquecido” que precisa ser mais publicado e mais lido para figurar, conforme as palavras de Jorge Amado, “entre os grandes, aqueles que existirão enquanto existir a língua portuguesa, e devolver ao público leitor um bem que de direito lhe pertence e lhe era negado, o verso de Sosígenes Costa.”


Referências

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AMADO, Jorge. Apresentação. In: Costa, Sosígenes. Iararana. Introdução, apuração de texto e glossário por José Paulo Paes; apresentação de Jorge Amado; ilustrações de Aldemir Martins. São Paulo, Cultrix, 1979.
Amado, Jorge. Academia dos Rebeldes. In Santana, Valdomiro (org.). Literatura baiana 1920-1980. Rio de Janeiro, Philobiblion, 1986.
Amado, Jorge. Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro, Record, 1992.
Andrade, Oswald de. Ponta de Lança. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.
ARCO & FLEXA: edição fac-similar, revista literária de 1928/1929, Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978. (n° 1, 66 p.; nº 2/3, 70 p.; nº 4/5, 90 p.
COELHO, Nelly Novaes.Literatura e linguagem. 3ª ed, São Paulo, Quiron, 1980, 389 p.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil. 4ª ed, São Paulo, Quiron, 1987, 199 p.
COSTA, Sosígenes. Obra poética. 2ª ed., Organização , apresentação e notas de José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, 1978, 317 p.
Costa, Sosígenes. Iararana. Introdução, apuração de texto, estudo introdutório e glossário por José Paulo Paes; apresentação de Jorge Amado; ilustrações de Aldemir Martins. São Paulo, Cultrix, 1979.
Garcia, Othon Moacyr. Cobra Norato, o poema e o mito. Rio de Janeiro, São José, 1962.
MARQUES, Nonato. A poesia era uma festa. Ensaio-depoimento e antologia. Salvador, GraphCo, 1994, 140 p.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. Vol. 3: Simbolismo. São Paulo, Cultrix, 1989.
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SEIXAS, Cid. Sosígenes Costa: Epopéia cabocla do modernismo na Bahia. In PÓLVORA, Hélio (org.). A Sosígenes, com afeto. Salvador, Edições Cidade da Bahia, 2001, p. 75-84.

(Modernismo e diversidade: impasses e confrontos de uma vertente regional. Légua & Meia, Feira de Santana, v. 3, n.2, p. 52-61, 2004.)





[1] O volume Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, composto por anotações e pela recuperação de dados guardados na memória, é uma preciosa fonte não somente para o conhecimento do trajeto intelectual do romancista Jorge Amado, como da vida cultural brasileira e dos percalços políticos e sociais do século XX.
[2] Arco & Flexa (flecha com x), mensário modernista baiano do final dos anos vinte que reuniu escritores como Carlos Chiacchio, Carvalho Filho, Hélio Simões, Pinto de Aguiar, Eurico Alves, Godofredo Filho, Eugênio Gomes, dentre outros. Além dos baianos, escritores de outros estados participaram da revista, a exemplo do gaúcho Raul Bopp, do “Clube de Antropofajia” (sic), de São Paulo, que compareceu com o poema inédito “Putirum”, depois incluído no livro Cobra Norato, de 1931. Sobre Arco & Flexa  ver a edição fac-similar de 1978 e a monografia de Ívia Alves, constantes das referências bibliográficas, no final deste texto.
[3] Samba, revista surgida na Bahia em novembro de 1928, reunindo jovens escritores hoje conhecidos como os “poetas da Baixinha”, designação difundida por Nonato Marques, pelo fato dos seus integrantes se reunirem num café da Baixa dos Sapateiros. Ao contrário de Arco & Flexa que era composta pela chamada elite social e intelectual de Salvador, o grupo da Baixinha incluía pessoas simples como o Guarda Civil 85 e o alfaiate Bráulio de Abreu, hoje reconhecido como o decano da poesia baiana. Em fevereiro de 1993 algumas comemorações marcaram os cem anos de vida do poeta. Sobre o Grupo da Baixinha, a revista Samba e algumas publicações baianas ver o livro de Nonato Marques A poesia era uma festa.