27/10/2015

Iararana

Iararana, um documento dos anos 30

 Cid Seixas

            Enquanto o centro intelectual do país – representado nos primeiros anos do século XX pelo Rio de Janeiro, Capital da República, e por São Paulo, novo pólo econômico – procurava se manter sintonizado com o ideal de modernidade presente na sociedade e nas literaturas européias, as regiões mais afastadas recebiam intempestivamente as silhuetas e ressonâncias do admirável mundo novo.
            Monteiro Lobato, não obstante combatido pelas primeiras escaramuças modernistas, orientava sua obra por um movimento de fundação identitária que corrigia os desvios românticos da tentativa de estabelecimento de uma representação (ou de uma imagem) nacional empreendida no século XIX. Enquanto os olhos do Brasil miravam a Europa para reescrever o Brasil, olhos vesgos olhavam para dentro. Tal olhar, por vesgo, torto, oblíquo, dirigido para outro lado, isto é, o lado da cá, era tido como feio, desajeitado, curiboca. No caso, quase sinônimos.
            Se em 22 a intelectualidade paulista dividia tais hesitações com o ímpeto da Semana de Arte Moderna, em 28 meia dúzia de rapazes baianos combatia o academicismo dominante fundando, eles mesmos, mais uma academia. Edson Carneiro (o etnólogo), Jorge Amado (o romancista), Sosígenes Costa (o poeta) definiram as suas obras a partir de idéias difusamente compartilhadas na Academia dos Rebeldes. Os baianos, apesar de novos (Jorge Amado mal completava seus dezessete anos), não se entusiasmavam pelo Modernismo de 22, especialmente pelas ressonâncias europeizantes que davam prestígio aos primeiros gritos da rapaziada paulista.
            Deste modo é que a cautela com que os moços da província aderiram ao modernismo do centro soaria dissonante a ouvidos afinados com a  ruidosa sinfonia metropolitana. José Paulo Paes, no que pese a argúcia crítica do ensaio “Iararana ou o Modernismo visto do quintal”, com que introduziu a sua excelente edição do poema nuclear de Sosígenes Costa, pautou a análise pela idéia recorrente de um caráter anacrônico do texto do poeta baiano.
            É a propósito de um aparente descompasso, ou de uma oscilação dialética entre tradição e ruptura, presente na indiferença ou na desconfiança inicial dos integrantes da Academia dos Rebeldes para com os Modernistas de São Paulo, que foi arrolado o episódio Monteiro Lobato. Enquanto brios e brilhos da Semana de Arte Moderna refletiam luzes de Paris, projetando sombras sobre a Mata de Pau Brasil, projetos de modernidade essencialmente fundados numa concepção nacionalista, como os de Lobato, em São Paulo, de Gilberto Freire, em Pernambuco, de Jorge Amado e seus companheiros, na Bahia, não prescindiam das tradições identitárias nacionais e locais, pois sobre elas ergueriam seus patamares.
            Convém, observar ainda que a modernidade brasileira, através das suas diversas manifestações e modernismos literários, ao trocar os temas de circulação européia e metropolitana por objetos constituídos pela identidade local, flutuou entre dois enfoques. O primeiro encerra uma visão da nossa cultura com olhos externos (embora esses olhos já sejam os nossos), onde o pitoresco e o exótico extasiam o expectador, como o olhar do viajante. O segundo constitui uma visão vividamente interior, menos feérica na medida em que projeta luzes e sombras, grandezas e misérias.
            É esta procura de uma representação de essência realista que dará forma a uma sociologia do negro nas obras de Edson Carneiro e de Jorge Amado; ou da cultura do cacau nos textos de Sosígenes Costa, de um lado, e Jorge Amado, do outro. Enquanto Amado inicia sua saga do cacau para denunciar a exploração do trabalho e a usurpação do lucro, Sosígenes, também no começo dos anos trinta, escreve Iararana para denunciar a usurpação do poder de uma cultura por outra estranha e invasora.
            Gilberto Freire sustentava a atualidade do seu discurso numa análise da tradição brasileira e colonial portuguesa consonante com o mais rigoroso aparato conceitual da cultura moderna. Monteiro Lobato quis renovar a literatura nacional convocando um elenco de personagens com os pés fincados na tradição cultural da nossa terra. O que une a todos eles é o compromisso com a cultura da sua nação, sobreposta à idéia de uma modernidade importada a custo da perda da própria identidade nacional, ou mesmo regional. Daí, a oscilação pendular que poderia manter a renovação em suspenso caso esta implicasse numa descaracterização cultural.
            Embora atento à diversidade destes fatos, José Paulo Paes parte da eleição de um tempo e de um lugar modelares, com base nos quais orienta seus pressupostos críticos. É verdade que o mesmo estudo, que aponta para – ou adere a – um topocentrismo cristalizado, também valoriza a diferença.
            Enquanto Menotti Del Picchia, na sua conferência durante a Semana de Arte Moderna, bradava enfurecido: “Morra a Hélade! Organizemos um zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do Parnaso!”; enquanto Menotti orquestrava a vaia, Sosígenes promovia um insólito sincretismo da mitos indígenas com a mitologia clássica, engenhosamente tratada pelo viés burlesco.
            Se a tradição poética brasileira, conhecida por Sosígenes Costa e pelos circunspectos leitores baianos do início do século passado, flectia-se de modo reverencial, e até mesmo servil, ante mitos e mimos do mundo clássico, o poeta das roças de cacau metia tudo no saco de gatos de uma presepada curiboca, mestiça e sestrosa – sobretudo safada.
            José Paulo Paes sentencia:

            “É bem verdade que os deuses do Parnaso comparecem em Iararana sob o signo negativo da paródia ­– signo modernista por excelência e particularmente caro a Sosígenes Costa, a quem ensejou invenções notáveis –, mas nem por isso deixam de ali estar menos presentes. Outro traço diferencial do poema é o empenho, mais que nacionalista, localista: sua ação se passa quase toda em Belmonte, a cidade natal do poeta, e isso é assaz significativo. Significa, quando mais não fosse, filiar-se Iararana menos àquele nacionalismo de programa que levava o paulista Mário de Andrade e o gaúcho Raul Bopp a procurarem na distante Amazônia, deles conhecida somente através dos livros, inspiração para Macunaíma e Cobra Norato, do que a nostalgia da infância subjacente a boa parte das peças reunidas na Obra Poética, especialmente na sua parte final, "Belmonte, Terra do Mar", tida por Manuel Bandeira como a de "maior força" no conjunto do livro. Um exame do poema permitirá destacar melhor esses aspectos diferenciais.”

            O cerne da questão aqui levantada é o des-valor, implícita ou explicitamente, imputado a Iararana quando a análise de José Paulo Paes, que apresenta o poema ao leitor, adere a um topocentrismo silencioso e pacificamente estabelecido. Chame-se novamente atenção para o fato do estudioso paulista operar seu enfoque crítico com base em um tempo e em um lugar modelares. (Os gregos e os romanos tomavam sua urbe como centro do mundo. Os norte-americanos até hoje pensam que Buenos Aires é a capital do Rio de Janeiro. São Paulo acha feio tudo que não é espelho.)
            É evidente que a blague e a ironia não desmerecem o trabalho do crítico sosigeniano, querem apenas sublinhar o lugar de onde ele fala. É por isso que José Paulo conduziu sua interpretação crítica sustentada na idéia recorrente de que o texto do poeta da roça está marcado por um caráter anacrônico. E é talvez esta observação que teria provocado a idéia de valoração negativa nos leitores da análise crítica responsável pela reposição da obra no circuito dos estudos sobre o modernismo brasileiro.
            Não obstante a força e a originalidade desta obra, transcorridos mais de vinte anos da diligência de José Paulo Paes para colocá-la em circulação, Iararana ainda não conquistou um lugar de destaque, figurando entre os textos de natureza similar, como o Cobra Norato, de Raul Bopp (ao qual se sobrepõe e supera em alguns aspectos essenciais), e o Macunaíma, de Mário de Andrade, na linha de construção de um herói nativo; ou mesmo como o Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, que incorpora e valoriza outros elementos culturais. Os livros pioneiros dos paulistas Mário de Andrade e Cassiano Ricardo são publicados em 1928, enquanto os poemas do gaúcho Raul Bopp e do baiano Sosígenes Costa só serão escritos no início dos anos trinta, quando o Modernismo Brasileira já era uma realidade geradora de tendências contrapostas e bem definidas, adquirindo um caráter e uma abrangência nacionais.
            Comparados a Macunaíma e a Martim Cererê, os poemas  Cobra Norato e Iararana remetem a um outro  momento modernista, momento em que a sociedade brasileira havia passado por profundas transformações. Curiosamente, o poema de Raul Bopp – fiel ao figurino nativista dos anos 20 – foi suficiente para colocar seu autor ao lado dos pioneiros do Modernismo Brasileiro, enquanto o de Sosígenes Costa – já marcado pela consciência identitária nacional e localista que perpassaria a literatura dos anos 30 – continua merecendo atenção secundária. Como exemplo, observe-se o lugar ocupado pelo poeta grapiúna em uma entre as principais Histórias da Literatura Brasileira que permitem uma perspectiva atualizada da produção do século XX, a de Massaud Moisés: o capítulo “Retardatários”, dedicado aos poetas Joaquim Cardozo, Dante Milano e Sosígenes Costa, embora garanta a Sosígenes “um lugar de destaque nos quadros da poesia moderna” (Moisés, 1989, p. 437), cataloga Iararana como um texto de “valor sobretudo histórico”. Observe-se como a perspectiva de José Paulo Paes teria influenciado um leitor rigoroso como Massaud Moisés, tanto que o historiador destaca a seguinte passagem do estudo crítico de Paes: “não há como fugir à evidência de que o primitivismo de Iararana já tinha algo de anacrônico no momento mesmo de composição do poema, anacronismo que a publicação do seu texto só faz aumentar” (p. 436).
            São fatos desta natureza que podem condenar um texto ao purgatório crítico, bem como dar destaque a outros que o tempo poderá obscurecer. Iararana, de Sosígenes Costa, é portanto um poema que atravessa o longo processo inquisitorial de canonização, ou de condenação, no ano do centenário de nascimento do autor. A responsabilidade dos novos leitores e estudiosos da sua obra, sobretudo na esfera da Universidade, onde os estudos investigatórios mais verticais ganham espaço, decidirá o lugar a ser ocupado por este texto nos primeiros anos do século XXI.
            Coetâneos e igualmente épicos, Cobra Norato e Iararana remetem a uma mesma filiação indianista, o que justifica o ensejo de estudos comparativos destinados a fixar as convergências e as diferenças. Na primeira categoria, a das convergências, ambos estão sustentados em temas e linguagem retirados do inventário popular, embora Iararana submeta a história nacional, atrelada à história e à ancestralidade mitológica da civilização colonizadora, a um tratamento coloquial e a um registro lingüístico deliberadamente popular e paródico – chistoso.
            Terminada a escrita de Iararana, Sosígenes enviou a um companheiro da Academia dos Rebeldes, Edson Carneiro, uma carta datada de 5 de dezembro de 1933, dando conta do texto de caráter deliberadamente modernista. Na sua linguagem informalmente irreverente, chamava o poema de “um negócio grande preparado este ano, que posso publicar, caso vocês achem que presta e está bom. Não é um negócio de coisas reunidas. É um negócio inteiro. É Iararana.” Em outra passagem da carta, ele detalha: “Começa com versos livres, soltos como menino no pasto, pula num samba, emenda por um coco, cai de novo no samba e termina falando como a gente fala para encurtar a história e não amolar a paciência.”
            Observe-se que mesmo avesso a publicações, Sosígenes está inclinado a editar o texto, caso os companheiros “achem que presta e está bom”. A propósito desta falta de entusiasmo do poeta pela divulgação da sua obra, Jorge Amado escreveu:

            “Neste nosso país no qual até hoje os poetas pagam a edição de seus primeiros livros deu-se, em 1959, um acontecimento insólito: uma editora, a Leitura, do Rio, solicitou a um poeta até então inédito os originais do seu primeiro livro; e o poeta, em vez de mostrar-se lisonjeado, simplesmente recusou-se a atender ao pedido quase absurdo. Somente à insistência pertinaz dos amigos ele finalmente cedeu. Assim apareceu a edição de Obra Poética de Sosígenes Costa. Neste nosso país em que os poetas começam aos 16 anos – e alguns morrem ainda quase adolescentes –  um grande artista concedia em ser publicado quando estava próximo dos sessenta. Este seu único livro, uma edição de mil exemplares, é hoje raridade bibliográfica.
            Sosígenes Costa "era muito retraído", como se diz ainda hoje em Ilhéus, cidade da região cacaueira da Bahia onde ele viveu, sem ser percebido, a maior parte de sua vida. Sua participação no movimento literário limitou-se, nos últimos anos da década de 20 e ao início dos anos 30, ao vínculo com um grupo modernista  – não sei se a designação é correta; será pelo menos discutível – a Academia dos Rebeldes, de Salvador. Sob a égide de Pinheiro Viegas (poeta mais conhecido pelo seu jornalismo panfletário do que pelos sonetos e poemas de pequena circulação) esse grupo tentava renovar a literatura baiana, ao lado dos moços de Arco & Flexa e de Samba. Os poemas de Sosígenes Costa apareciam a espaços nas páginas de jornais e revistas e granjearam-lhe um punhado de leitores, círculo numericamente reduzido mas de alta qualidade e cheio de admiração.
            A publicação de Obra Poética causou, na ocasião, um certo impacto, naquele momento dominado pelas experiências concretistas [1959]. O livro de Sosígenes Costa obteve dois prêmios literários, um no Rio, e outro em São Paulo; mereceu artigos e louvores variados, inclusive dos concretistas. “

            Após esta citação relativamente longa de Jorge Amado, procuremos retomar o fio do raciocínio interrompido. Apesar de alheio ao mundo das editoras, em 1933 Sosígenes Costa pretendeu submeter Iararana  ao crivo dos seus pares rebeldes. Infelizmente desconhecemos a reação de Edson Carneiro e de Jorge Amado diante do poema que inaugurava, na Literatura Brasileira, a gesta cacaueira. Neste mesmo ano de 33, Jorge Amado publicou Cacau, abrindo a saga que se desdobraria em Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e Gabriela Cravo e Canela, para ser encerrada com a síntese memorável que é Tocaia Grande, livro pertencente a este filão temático do escritor, que atravessa o realismo socialista e chega à escrita despojadamente popular e oral da maturidade.
            O levantamento – que se impõe, por necessário – da correspondência de Sosígenes com os outros integrantes da Academia dos Rebeldes poderá esclarecer pontos desta ordem e servir de subsídio para a compreensão de um momento paradigmático da nossa literatura, os anos 30.
            Unitariamente concebidos como epopéias modernas, Cobra Norato e Iararana respondem diversamente às inquietações dos anos 30, sendo que o segundo traz de acréscimo uma contundente crítica ao processo de colonização, retomando a idéia de estupro ou de violentação de uma raça, já presente, de modo secundário, no romance indianista de José de Alencar.
            Mas, apesar destes pontos comuns, o poema de Raul Bopp continua sendo tomado como caso exemplar único de epopéia modernista. Desde a década de setenta, quando a Civilização Brasileira publicou quatro bem sucedidas edições de Cobra Norato (a primeira delas em 1973 e a última em 1978), com nota introdutória do filólogo Antonio Houaiss e ilustrações de Poty, este poema passou a ter audiência nacional. Impresso inicialmente em 1931, na Gráfica Irmãos Ferraz, de São Paulo, o poema só ganhou uma outra edição em 1937, de apenas 150 exemplares numerados. Dez anos depois, o autor faz uma nova edição do texto, incluído no livro Poesias, de 500 exemplares, seguindo assim um curso de pequeno vulto. Creio que o volume intitulado Cobra Norato, o poema e o mito, de Othon Moacyr Garcia, publicado em 1962 pela bem freqüentada Livraria São José, do Rio de Janeiro, contribuiu para inaugurar uma nova recepção do Cobra Norato. Bem aceita pela crítica, a análise interpretativa do autor culmina com a afirmação consagradora:

            “Sendo o único e verdadeiro poema épico da literatura brasileira (porque popular pela essência do tema e pela feição da forma verbal), já que às tentativas anteriores – desde o Caramuru e O Uruguai até o I Juca Pirama e O Caçador de Esmeraldas e quantos se arrolem como tais – falta-lhes a feição de unidade temática e lingüística de vínculo popular e legítimo sabor de brasilidade, – é Cobra Norato um dos melhores legados do Movimento Modernista, um dos grandes poemas destes sessenta anos de literatura brasileira do século XX.”

            No ensaio pioneiro “Iararana ou o Modernismo visto do quintal”, de 1979, José Paulo Paes, obedecendo ao rigor da sua investigação, aplicado ao estudo de “gregos e baianos”, caracteriza o poema de Sosígenes Costa como devem ser caracterizadas narrativas como esta (ou como Cobra Norato):

            “A palavra saga, há pouco usada, deve ser entendida no seu sentido mais próprio, aquele que lhe dá André Jolles quando a considera uma "forma simples" ou primordial (de que a epopéia é a sucessora literariamente erudita) e a define como a narrativa de acontecimentos pretéritos, oriunda de "uma disposição mental em que o universo se constrói como família e se interpreta, em seu todo, em termos de clã, de árvore genealógica, de vínculo sangüíneo" e em que assume o primeiro plano "o representante heróico de um clã determinado, o detentor hereditário das altas virtudes de uma raça". Tal conceituação se ajusta de perto ao argumento de Iararana a partir do momento em que se desenvolve o tema da descendência de Tupã-cavalo.”

            Para fundamentar seu raciocínio, José Paulo Paes, examina alguns pontos essencial do mito mestiço criado por Sosígenes Costa, desde o início do tema quando o centauro Tupã-cavalo, "bicho mondrongo" chegado de Portugal, não encontra entre os seres fabulosos do Brasil – “a mula-sem-cabeça, a rainha dos jacarés, a caipora” – aquela com quem possa casar. Nas suas andanças de macho sem rédea,

Uma anta medonha com cara de homem
Entrou pela barra nadando no mar.

Assim os seres nativos identificaram o invasor até que, no diálogo da cena II, onde o narrador assume a figura do avô que conta a história ao neto (este “menino do céu”, como se verá mais tarde, o verdadeiro herói do poema):

            – Mas que bicho danado era este?
            Mas que bicho era este, senhor?

            – Menino, este bicho veio da Oropa.

            – Mas na Oropa tem anta, me diga?
            Olhe, me avô, que na Oropa não tem anta.

            – Esta anta com cabeça de gente não era anta, meu neto.
            Aquilo era cavalo da Oropa com cabeça de gente.

            Desta forma tomamos conhecimento da chegada do cavalo com cara de homem às matas primitivas do Brasil. Na procura de fêmea, o monstrengo vê a Iara do rio Jequitinhonha penteando os longos cabelos verdes à margem rio e a arrasta para o canavial, possuindo a senhora das águas com brutalidade. O estupro da nativa pelo europeu é representado na quarta parte do poema, através de um ritmo cheio de balanço e malícia:

            Ora, um dia a cana brava pegou fogo,
            Fogo pegou na cana brava,
            ninguém passe mais por lá.
            Olha o fogo no canaviá.

            O fogo devorando tudo remete o leitor em duas direções: a cana queimada e os corpos incendiados pelo ato de desejo. O ritmo ostensivamente folclórico do samba mostra no poema as pessoas correndo de “saia suspensa” ou de “roupa arribada”. O rio Jequitinhonha responde à agressão contra sua senhora das águas, a Iara, inundando tudo para afogar o invasor. Segundo José Paulo Paes, o episódio “comporta duas leituras: explicação mítica das enchentes periódicas do Jequitinhonha, tão temidas pelas suas populações ribeirinhas” ou ainda uma “figuração da hostilidade da natureza ao estrangeiro violador.” (Paes, 1979, p. 14-15). Na esteira de uma análise da estrutura mítica da saga, o crítico lembra que o fato paradoxal de um acontecimento único explicar inundações que se repetem em outros tempos obedece à “mecânica do mito, que reitera perpetuamente um acontecimento primordial”.
            Nove meses depois do incêndio no canavial  se dá o parto da Iara, quando nasce Iararana, descrita como de uma brancura de lagartixa, comparada ao pai tanto na cor quanto no caráter cruel. “Nessa brancura, que mostra ter Iararana puxado muito mais ao pai do que à mãe, confirma-se a violentação, cujo fruto perpetua o violentador, mais que a violentada.”
            É este poeta “quase completamente esquecido” que precisa ser mais publicado e mais lido para figurar, conforme as palavras de Jorge Amado, “entre os grandes, aqueles que existirão enquanto existir a língua portuguesa, e devolver ao público leitor um bem que de direito lhe pertence e lhe era negado, o verso de Sosígenes Costa.”

  

Referências

 AMADO, Jorge. Apresentação. In: Costa, Sosígenes. Iararana. Introdução, apuração de texto e glossário por José Paulo Paes; apresentação de Jorge Amado; ilustrações de Aldemir Martins. São Paulo, Cultrix, 1979.
Amado, Jorge. Academia dos Rebeldes. In Santana, Valdomiro (org.). Literatura baiana 1920-1980. Rio de Janeiro, Philobiblion, 1986.
Amado, Jorge. Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro, Record, 1992.
Costa, Sosígenes. Iararana. Introdução, apuração de texto e glossário por José Paulo Paes; apresentação de Jorge Amado; ilustrações de Aldemir Martins. São Paulo, Cultrix, 1979.
Costa, Sosígenes. Obra poética. Segunda edição revista e ampliada por José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, Brasília, INL, 1978.
Garcia, Othon Moacyr. Cobra Norato, o poema e o mito. Rio de Janeiro, São José, 1962.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. Vol. 3: Simbolismo. São Paulo, Cultrix, 1989.
PAES, José Paulo. Iararana ou o Modernismo visto do quintal. In: Costa, Sosígenes. Iararana. Introdução, apuração de texto e glossário por José Paulo Paes; apresentação de Jorge Amado; ilustrações de Aldemir Martins. São Paulo, Cultrix, 1979.
SEIXAS, Cid. Triste Bahia, oh! Quão dessemelhante. Notas sobre a literatura na Bahia. Salvador, EGBA / Secretaria da Cultura e Turismo, 1996. (Coleção As Letras da Bahia)

(Artigo publicado no livro organizado por Ciro de Mattos e Aleilton Fonseca: O triunfo de Sosígenes Costa. Ilhéus, Editus, 2005, o. 143-156.)