27/10/2015

Emília Guerra

A POESIA ‘FAMILIAR’
DE EMÍLIA LEITÃO GUERRA

Cid Seixas

Neste limiar do século XX para o XXI, os estudos de gênero têm deixado um saldo positivo: a audiência de vozes femininas – antes perdidas no silêncio de velhos papéis e agora resgatadas pelo interesse em compreender o lugar da mulher na cultura. Na Bahia, escritoras do século XIX e do início do século que ora se finda têm frequentado antologias e estudos acadêmicos.

Paralelo a este resgate e, talvez, influenciado por ele, o escritor Guido Guerra, folheando o álbum de família, selecionou alguns poemas da avó paterna, Emília Leitão Guerra, poeta baiana nascida em Pernambuco, no dia 18 de novembro de 1883.

Os sonetos e outras formas adotadas por Emília Leitão Guerra testemunham a conveniência de permitir a novos leitores o conhecimento de uma autora cujo universo poético ultrapassa as lembranças familiares e se inscreve no vasto e heterogêneo painel da poesia de inspiração romântico-parnasiano-simbolista. A autora começa a escrever e publicar num momento em que a modernidade literária contagiava a uns e a tradição saudosista imunizava a maioria.

São seus contemporâneos poetas simbolistas como Pethion de Vilar (1870-1924, pseudônimo literário do professor Egas Moniz Barreto de Aragão, da Faculdade de Medicina da Bahia, mais médico e menos artista), Artur de Sales (1879-1952, o cada vez mais estudado artífice do verso), Francisco Mangabeira (1879-1904, poeta pouco conhecido, apesar de respeitado pela crítica simbolista), Durval de Morais (1882-1948, vindo de Maragogipe com sua poesia cristã, chegou a ser aclamado “o maior poeta da Bahia”) e Pedro Kilkerry (1885-1917, talvez o mais aberto à identificação do Simbolismo com a modernidade), para citar apenas os nomes masculinos de maior envergadura. As mulheres – ou melhor dito: as senhoras – não tinham lugar nas chamadas lides literárias. Mesmo as mais envolvidas com as letras e as artes tinham espaço tão somente quando reconhecidas como  paladinas do par, título que, mesmo soando irônico aos ouvidos de hoje, pode ser tomado como epíteto ou caracterização do papel imposto à mulher até a primeira metade do século XX. Acredita-se que o fato da revista A Paladina, fundada por Amélia Rodrigues em 1910, ter ganho no título um complemento que vale como qualificativo, restritivo – passando a ser denominada A Paladina do Lar, em 1912, quando Amélia deixa o grupo –, é uma enfática expressão desse lugar, periférico e subalterno, reservado à mulher nas letras e nas artes.[1]

Enquanto os homens aderiam ou se opunham às publicações que representavam tendências literárias em voga, marcando uma hipotética filiação artística, a criação literária das mulheres ficava à margem deste processo de inserção intelectual, reservado aos varões. Observe-se que na Bahia, até a segunda metade do século XX, as vozes femininas não se faziam ouvir, mesmo nos mais ruidosos momentos de afirmação de tendências estéticas. Poemas, contos ou romances escritos por mulheres, vistos sob esta ótica, pairavam no limbo de uma categoria alheia às tendências sociais da arte, ficando restritos aos arquivos e às relações familiares. É o caso destes versos de “Relembrando”, poema que a autora dedica ao irmão Albino Leitão Guerra, professor da cadeira de Dermatologia da velha Faculdade de Medicina da Bahia:

Relembro os dias de nossa infância

Quadra bendita do alegre riso,
Essa, da vida, a fagueira instância
Que tem, das rosas, doce fragrância,
Que tem as graças do Paraíso.


Legados também aos arquivos familiares são os muitos poemas de amor, implícita ou explicitamente dedicados ao marido da poetisa. Vejamos o soneto “Por que duvidas?”:

Fizeste mal em duvidar. Acaso
Desconhecias meu afeto ardente?
Não sabes, dize, que, por ti somente,
Do amor nas chamas divinais me abraso?

A minha ternura não conhece ocaso;
A tua imagem guarda reverente.
Assim, um belo, um precioso vaso,
Guarda os caros perfumes do Oriente.

Como é pequena a tua confiança!
E eu que sempre a julguei serena e forte
Qual a que tenho em ti; Pois bem; descansa!

– Enquanto eu viva, meu amor não finda;
Acabará, quando vier a morte,
Se, após a morte, não se amar ainda.

Após a leitura de sonetos como este, presentes na obra da autora, não se pode deixar de ressaltar o ânimo ou o acendimento amoroso de uma voz que não se deixa sufocar de todo, em meio às exigências e convenções sociais predominantes. A placidez e a força de caráter, que se deixam transbordar de modo harmônico e bem resolvido nesta voz feminina, sugerem uma maturidade capaz de solucionar conflitos antigos e sempre atuais. Num momento em que a mulher continuava sendo identificada como o sexo frágil, por isso mesmo devedora de obediência e submissão ao marido; força, determinação e placidez fazem-se presentes na expressão poética de Emília Leitão Guerra, pondo em xeque crenças estabelecidas ou impostas.

A respeito do papel subalterno reservado à mulher, José de Alencar escreveu um dos mais admiráveis romances,Senhora, construindo uma personagem que, através da afirmação econômica, valor maior da consciência burguesa, consegue inverter a posição das pedras de um sólido e imutável tabuleiro. Mas a independência econômica da mulher, vislumbrada pelo autor como mecanismo capaz de abalar a dominação do macho, ainda estava muito longe de se tornar uma imposição da vida social, transformando Aurélia numa espécie exótica e confinada ao território das ficções cotidianas...

As viúvas de ricos homens, matriarcas incontestes, sempre afirmaram sua vontade sobre os varões da família e do lugar, sem que isso abalasse a crença no poder de mando inerente ao homem. Aceitar a hipótese descortinada no romance de Alencar seria uma forma de antecipar a possível decifração do enigma e decompor a esfinge.

Quebrada a tradição do impasse, que poder restaria aos machistas (e às feministas)? Homem e mulher dialogariam (ou mediriam forças) em igualdade de condições. Deslocando ou desacreditando a questão econômica como fator condicionante, no  mundo moderno (que tomou o lugar da força bruta, no mundo antigo), impõe-se a divisão de gênero como divisão de espécies conflitantes. O homem será sempre o lobo da mulher que, devorando-o como o cordeiro, será sempre a loba da matilha. Transformados em espécies conflitantes, o homem se uniria ao homem, como fazem os machistas nas suas reuniões entre pares; e as mulheres se uniriam às mulheres, como pede o paladar feminista. Mas o rei não pode estar nu. É preciso ver uma veste.

Como então situar, para o leitor contemporâneo, a poesia de Emília Leitão Guerra? Parnasiana, simbolista, neo-romântica? Os autores desse momento são caracterizados menos pela natureza do seu texto poético e mais pelos laços de camaradagem intelectual com os grupos e revistas literárias. Se na França, de onde nos veio o modelo, o Simbolismo foi um marco de modernidade literária, ou uma espécie de saída estética para o pensamento decadentista; no Brasil, o Simbolismo pode ser compreendido como um rótulo para diversas tendências pós-românticas. Em cada estado brasileiro, uma publicação ou um grupo enfeixava sua produção sob o guarda-chuva de uma escola que, segundo Massaud Moisés, foi mais ligada à estética literária do que às transformações culturais e históricas.[2]

O ideal da arte pela arte encontra plena realização neste momento, quando o compromisso do fazer artístico com a realidade é substituído pelo compromisso único com o prazer proporcionado pelo desvendamento de símbolos e imagens que, antes de constituírem, apenas substituem o objeto.

Tal espécie de toalete literária pretende apenas vestir e maquiar a realidade, dar a ela uma face mais jovem e faceira – encobrindo as dobras da pele. Creio que foi esta possível vertente aberta pelo Simbolismo a que mais encontrou adeptos, transformando a palavra (“simbolismo”) em mero rótulo para designar as mais diversas tendências pós-românticas.

O aproveitamento de experiências e conquistas formais do Parnasianismo, submetendo as caturrices da forma aos caprichos da expressão exaltada pelo espírito neo-romântico e conduzida pela sutileza de imagens e símbolos, identifica a poesia de Emília Leitão Guerra com a produção de outros poetas que, nesse momento, souberam aliar a sensibilidade pessoal ao discurso das emoções interpessoais que aproximam e unem os indivíduos no espaço da poesia.

Foi Lélis Piedade quem publicou os primeiros versos da poetisa no Jornal de Notícias, de Salvador, e no periódicoO Propulsor, de Feira de Santana, registrando uma fase marcada pela transição da adolescência. A passagem do século XIX para o XX marca também a maturidade poética da autora que produz em 1899 alguns dos seus melhores poemas.

Emília casou-se em 1907 com o médico Adolfo Santos Guerra que, dois anos depois, tomaria a iniciativa de fazer publicar o primeiro livro da esposa, Lírios da Juventude.[3] A obra foi saudada em artigo do poeta Ubaldo Osório Duque Estrada, no Correio da Manhã, conforme informação do escritor Guido Guerra.

O segundo e último livro, Evocações, foi publicado cinqüenta anos depois do casamento de Emília, reunindo os poemas dedicados ao marido, em edição organizada, em 1957, pela professora Júlia Amélia Viana Leitão, sobrinha da poeta. Em 1964 sairia a segunda edição deste livro, com o selo da Imprensa Oficial do Estado da Bahia e introdução de Jorge Faria Góes. Já idosa e adoentada, Emília Leitão Guerra não compareceu a este lançamento, encarregando um dos seus filhos, o desembargador Adolfo Leitão Guerra, a autografar os exemplares.[4]

Em 1999, Lizir Arcanjo incluiu no volume intitulado Mulheres escritoras na Bahia: as poetas[5] sonetos e outros poemas publicados por Emília nos jornais em 1898, 1900, 1901 e 1903, além de alguns que figuram nos dois livros, o de 1907 e o de 1957, reeditado em 1964.

Emília Leitão Guerra, filha de Emília Magalhães da Silva Porto e do comerciante português e Coronel da Guarda Nacional Brasileira José Martins Leitão, morreu aos oitenta e três anos, no dia 23 de novembro de 1966, deixando, além dos livros publicados, vários poemas dispersos nos arquivos da família.

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Artigo publicado como introdução  ao livro Poemas escolhidos (100 anos de Poesia), organizado pelo escritor Guido Guerra, sobrinho da autora. Salvador, Edições Cidade da Bahia, ilustrações de Floriano Teixeira, 2000, 120 p.

NOTAS

[1] Para melhor conhecer o episódio ver a dissertação de mestrado de Aline Paim de Oliveira: As Paladinas do Lar; escrita feminina baiana (1910-1917), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1999; resultante de pesquisa sob a orientação de Ívia Alves.
[2] MOISÉS, Massaud. O Simbolismo. Volume III de Moisés, Massaud: História da literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1985, p. 7.
[3] Impresso na Typographia Brasil, em Juiz de Fora, com prefácio do advogado e deputado federal Carlos Arthur da Silva Leitão, irmão da poetisa. Segundo Guido Guerra, este irmão foi o responsável pela formação cultural da autora, inclusive no aprendizado de línguas estrangeiras como alemão, francês e inglês, que estão na base das suas leituras.
[4] Dos onze filhos da poetisa, Salustino, José Martins, Emília, Adolfo e Dídia são falecidos; estando vivos Umbelina, Anísia, Cristina, Lúcia, Madalena e Júlio.
[5] Ver o livro Mulheres escritoras: as poetas; antologia com organização e introdução de Lizir Arcanjo. Salvador, Étera, 1999, 294 p. ilustradas com fotos e fac-símiles de publicações. O volume resulta de paciente e trabalhosa pesquisa da organizadora em arquivos e bibliotecas da Bahia, de Pernambuco, e do Rio de Janeiro, revelando algumas autoras inteiramente esquecidas e encontradas nas páginas de desconhecidos periódicos publicados no século passado no interior baiano.