27/10/2015

Alberto Caeiro

CAEIRO E O LUGAR DE FORA DA CULTURA

Cid Seixas

Enquanto sujeito da cultura, Fernando Pessoa atribui a Alberto Caeiro a tarefa de superar os limites do contrato social que legitima o simbólico, concebendo aquele que seria, na sua ótica, “o único poeta da natureza”. Personagem nascido nas folhas e cadernos guardados na arca, Caeiro habita o cimo do outeiro como Guardador de Rebanhos e Mestre de uma outra humanidade, criada com a substância do universos pessoano. O mesmo contexto de modernidade que produziu o processo de criação poética de Fernando Pessoa levou Heidegger à célebre identificação da linguagem como morada do ser.

Como então dar voz a um sábio que harmoniza o homem com a natureza através da negação da língua e do simbólico? Como dar ouvidos à fala que se nega a si mesma?
Caeiro é um poeta que só poderia existir como ficção ou como heterônimo de um poeta comprometido – “como um novelo enrolado por dentro” – com as teias da cultura. Somente o envolvimento extenuante com o simbólico poderia dar consistência à negação do simbólico contida nos poemas de Alberto Caeiro.

Tocando os limites do aquém e do além, da falta e do excesso, o mestre de si mesmo é a própria encarnação da essência da poesia: atingir a pureza ou a ingenuidade primitiva através do ultrapasse do simbólico.

A aparição de um poeta como Caeiro na densa floresta de símbolos do cosmo pessoano é como uma tocha de fogo soprada pelo vento no canavial dos sentidos. Antes de ser o mestre, Caeiro não seria o estraga-festa? – não fosse o meta-simbólico?

Compreendido como negação da cultura e do simbólico, lugar de silêncio da linguagem, Caeiro quebraria o encanto do mundo instaurado por Pessoa, revelando o seu non sense, e propondo a inutilidade da própria escrita heteronímica. Assim compreendido, o chamado Mestre não seria um poeta, mas uma contradição capaz de provocar uma fenda na dialética da construção estruturada pelo projetista do engenheiro Álvaro de Campos: um incerto senhor Fernando; Antônio, também; nascido na atônita casa dos Nogueira Pessoa.


A estrutura do conhecimento é levada à condição de tema nuclear da obra de Fernando Pessoa: as mais diversas formas de conhecimento, desde a ciência à arte e ao mito, constituem aspectos contemplados pelo pensamento pessoano, tecido pelo confronto de universos que vão da pragmática tecnológica aos ensinamentos da doutrina secreta. O mundo clássico e o moderno, a vida urbana e a rural, a objetividade e a subjetividade, a descrença e a fé, o realismo aristotélico e o idealismo platônico estão harmonicamente contidos no caos e no cosmo do texto do poeta.

Longe de constituir um conjunto unitário e orgânico, o pensamento de Fernando Pessoa pode ser comparado a um sistema aberto, nos moldes propostos pela física. Constelar e aberto, pode cambiar elementos com os seus subsistemas constituintes, definindo-se pela tensão entre a unidade metafísica e a diversidade orgânica.

A fragmentação, a fratura e o falso são as tônicas do verdadeiro. Síntese exemplar da modernidade e desconstrutor que prenuncia a pós-modernidade, Fernando Pessoa é essencialmente um intelectual da cultura, uma presa da civilização, a se debater nas teias do simbólico.

Filósofos e linguistas concordam com a inversão da crença segundo a qual somos nós que falamos e dominamos a língua. Depositária da história e do momento, lugar de encontro do individual e do coletivo, é a língua que nos fala e domina. Para Wartburg, quando a criança aprende a falar, está também aprendendo a conhecer o espírito objetivo depositado na língua. Toda vez que surge uma nova vida humana, o espírito coletivo que vive na língua transforma e modela esse indivíduo. Mesmo quando ele procura se expressar de modo pessoal, obedece aos contornos das palavras postas à disposição dos membros da comunidade lingüística a que pertence.

*     *     *

O testamento poético de Alberto Caeiro — se assim posso rotular o poema sem título identificado pelo verso inicial “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia” — este testamento poético serve de apresentação e de despedida do pastor de idéias:

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas 
  a da minha nascença
             e a da minha morte.

Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar,
          porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas
             diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento
          seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
                                                        [OP, 237]

Se o homem, criação da cultura, constitui o seu mundo pela soma de experiências cognitivas, sentimentos e desejos de obscuros objetos; o animal, criatura da natureza, recebe um mundo já constituído, através dos sentidos da visão, da audição, do olfato, do tato e do gosto.

Distanciado da apreensão direta das coisas, o prisioneiro da cultura submete seus sentidos e sua experiência primeira ao vento ancestral da razão: o pensamento simbólico. Entre mim e o mundo que a natureza criou, um outro mundo se entrepõe: o mundo da cultura, síntese de experiências coletivas e individuais anteriores, que empresta suas fôrmas para que eu molde minha percepção.


O poeta, como o menino, sente-se nascido, a cada momento, para a eterna novidade do mundo. No texto poético, conhecer não é classificar, nem submeter o desconhecido às categorias do já visto. A frase de Pedro Kilkerry aqui se aplica: "Olhos novos para o novo".

Os olhos precisam estar limpos da poeira do tempo para que possam ver que 'as coisas são reais e todas diferentes umas das outras'. Tal compreensão, segundo Caeiro, se dá com os olhos e não com o pensamento, porque este tenderia a achá-las iguais. É a isso que se chama de olhar inaugural, que o guardador de rebanhos soube tão bem redescobrir. Uma frase contém toda plenitude de uma vida; a vida de Alberto Caeiro: "Vi como um danado." O olhar seria o sentido maior; avesso do pensamento.

Nesta poesia sem metáforas e sem figuras de pensamento que não sejam símiles – comparações evidentes à primeira vista – o olhar não seria uma grande figura? A metáfora maior, primordial, portanto?

Ver seria, então, uma espécie de metáfora obsessiva do plácido Mestre da paz. E eu me pergunto: seria possível tal turbilhão de pensamentos na voz do silêncio? Uma poesia aparentemente primitiva e simples esconderia sua sedução imagística sob o manto diáfano de um sistema metafórico?

Da tranquila paisagem sem figuras, Caeiro tange seu rebanho de nuvens, como se estivesse respondendo às indagações, sem nada responder – apontando noutra direção o dedo do olhar:

O que nós vemos das coisas são as coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
                            [OP, 217].

Neste poema de "O guardador de rebanhos", a recusa de todo objeto vicário ou de todo signo, entendido enquanto coisa que está em lugar de outra coisa, implica, necessariamente, na recusa do pensamento simbólico: aquele que se dá através da linguagem – a mais complexa formulação da ausência.

Traçando o espaço do homem por entre as linhas dos cinco sentidos, Caeiro rejeita o sexto sentido conquistado: o sentido simbólico, responsável pela apreensão da ausência e pela sua conversão vicária. Na poesia do mestre, a presença faz fronteira com os limites do olhar.

Se o homem amplia o espaço que lhe foi reservado pela condição animal, os novos limites perdem enquanto ganham. A realidade humana vai além do que o pentágono dos sentidos alcança; mas, por medo de se perder, lança âncoras sobre o nada em que se amarra. Cada cultura estabelece os limites do real através de um processo de convenção implícita. Neste espaço de convenção vestimos as máscaras disponíveis no guarda-roupa de segunda mão das épocas. O mundo dos homens ultrapassa a materialidade do mundo animal, mas, ao substituir o visível pelo imaginário, desvia o olhar do que ainda não foi visto, perdendo a direção do objeto pleno. Outros objetos serão construídos, muitos, milhares, gastando esforços e energia suficientes para descobrir os recônditos da natureza. Objetos cheios de vida que se convertem na nossa vida; incapazes, porém, de capturar o obscuro objeto do desejo.


Ultrapassamos o universo animal. Tornamo-nos criadores; como se deuses fôssemos. Rompemos a fronteira da presença para encontrar vozes e sentidos na ausência. Mas não lançamos o olhar além dos limites da convenção social, do velho mundo herdado dos ancestrais. Com o saber recebido, recebemos também não-saberes, dissabores: vendas para os olhos e desvios para os caminhos tangenciais. Só no sonho ou no verso legitimamos o risco, a contravenção do estabelecido. O percurso do olhar é traçado pelos objetivos da civilização, e não pelo movimento do objeto.

Caeiro recusa tal prisão – a submissão das percepções do homem às diretrizes da cultura –, propondo o retorno à dimensão primitiva das coisas.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
                                                    [OP, 217].

O mesmo mestre da simplicidade admite o quanto complexo seria desnudar a alma, pendurando num cabide as vestes que a cultura cingiu ao corpo diáfano. Despidas as vestimentas que o vento dá corpo, o que sobraria desta alma humana que a cultura veste para que seja vista – e exista?

Sobraria, talvez, o vácuo, o vazio. O nada desnudo.

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
                            [OP, 72]

Desvestida a alma dos vínculos com a cultura, veríamos diante dos nossos olhos esta mesma alma desnuda se desmanchar, não ficando nada que não fosse a veste, vazia.

Mas o poeta da natureza continua cantando; fazendo da sua arte um monumento de impugnação contra a própria arte; valendo-se da fala para dizer o silêncio; falando a língua dos homens para anunciar a falência da fala, enquanto linguagem.

Fernando Pessoa procura, ao encarnar o mestre Alberto Caeiro, o lugar de fora da cultura. Sabemos, com os antropólogos, que a cultura tem muitos lugares, os existentes e os inventados por esta ficção inverossímil chamada cotidiano.

A cultura é a ubiquidade. Mesmo tendo muitos lugares, ela talvez não tenha o lugar de fora da cultura. O silêncio absoluto.