Novas
folhas do Japão
“À pista vermelha
de uma flor, vem uma
rima
e aflorissa: abelha.”
“Nos cinzeiros jazem
— antecipantes — as
cinzas
mortais dos fumantes.”
Oldegar
Vieira é um escritor cujo trajeto é marcado pela polêmica que envolve qualquer
artista inovador. Em 1932, quando muitos poetas baianos insistiam em prestar
culto a retórica bombástica e palavrosa, ele começou a publicar as suas
pequenas peças nas páginas de A TARDE, sob a acolhida de Carlos Chiacchio. Seu
primeiro livro de haicais, o clássico Folhas
de Chá, foi editado em 1940 pelos Cadernos da Hora Presente, de São Paulo,
com ilustrações de uma pintora também inovadora e contestada, mas hoje
respeitadíssima: Anita Malfatti.
Oldegar
concorria ao lado de Cecília Meireles ao prêmio da Academia Brasileira, quando
Cassiano Ricardo, enquanto membro do júri, emitiu seu parecer sobre o invento
poético do baiano.
Se,
por um lado, o então jovem Cassiano Ricardo recebia com uma ponta de ironia o
trabalho de Oldegar, visto como “divertimento” e como “exotismo”, por outro
lado, Octávio de Faria dá seu veredicto definitivo: “Um clássico”. Anos depois,
Stella Leonardos faz o elogio mais pleno que um autor de haicai poderia esperar
das Folhas de Chá: “Como Bashô
gostaria de tê-las provado”.
Para
o combativo crítico Álvaro Lins, a criação de Oldegar era uma “falsa poesia”
que “abusa de toda aquela originalidade de superfície que o movimento
modernista esgotou” e para Mário da Silva Brito, era “uma poesia pão-duro”.
Felizmente,
Oldegar persistiu na sua sovinice, no seu pão-durismo anti-verboso. Se se
deixasse vencer pelas críticas desfavoráveis seria apenas mais um dos muitos
poetas discursivos. Resistindo, tornou-se um mestre do gênero. Drummond afirma
que ele é “entre nós, sabidamente, quem melhor domina o haicai”.
Ao
contrário do que supunha este mestre da crítica, Álvaro Lins, o texto
sintético, curto e sentencioso não atinge apenas a superfície. Para mergulhar
fundo nos insondáveis mistérios do homem não é necessário o discursivismo
pleno. A modernidade nos ensina, cada vez mais, que um texto denso, sintético,
não-redundante, pode ir fundo, de modo incisivo, como um soco de luz na
escuridão. O haicai é um exercício deste poder de dizer o muito através do
pouco. Meia palavra basta ao entendedor de poesia.
Cinquenta
e quatro anos depois, Oldegar Vieira reúne sua nova produção em Gravuras no Vento. O poeta continua fiel
à velha forma que no século XVII Matsuo Bashô propôs ao mundo ocidental. Mas
seus haicais são aculturados no Brasil, falam uma língua nissei, japoneses que
são, na origem e no saber inicial, brasileiros na aclimatação e no sabor que se
associa. Seus versos rimados formados por redondilhas, maior e menor, caem como
uma luva na nossa tradição, fundindo a cultura japonesa à brasileira.
O
leitor vai encontrar, na página 31 do livro Gravuras
no vento, dois haicais de apelo social. O primeiro tem como tema o mendigo
e diz:
“Que Deus o proteja
não pede. O que pede é pão
na porta da igreja.”
O
outro, mais denso, permite dois níveis de leitura:
“Não mais florescentes,
no lixo largadas, são
flores – defloradas.”
Na
suave tradição oriental de cantar a natureza, este haicai fala apenas de flores
arrancadas do jardim que, depois de ornamentar a casa, jazem no lixo, despidas
da sua beleza natural. Num outro plano, social, evocando a miséria da nossa
terra, ou (universalmente) de qualquer lugar, o poeta em sua síntese retrata o
destino das meninas prostituídas. Apesar da sua idade primaveril “não mais florescentes”,
mas habitando a boca do lixo da cidade, onde tristes são “flores defloradas”.
Pelo
seguro domínio do verso curto e denso, aliado ao poder de síntese e
encantamento, demonstrados ao longo de mais de meio século, este novo livro de
Oldegar Vieira vinha sendo agurdado com expectativa. Afinal, entre o seu
primeiro livro de haicais, Folhas de chá,
de 1940, e este Folhas no vento,
muito tempo se passou e muitas tendências foram experimentadas pela poesia
brasileira.
Apesar
de tudo que experimentamos, a poesia de Oldegar contina viva e atual, servindo
de lição a muito pretenso poeta que anda por aí, sem saber que o muito nasce do
pouco.
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Oldegar Vieira. Gravuras no Vento (Haicais). São Paulo, Massao Ohno, 1994.
Novas folhas do Japão (crítica literária).
“Livros & Idéias”, seção do jornal A Tarde, Salvador, 26 set. 94, p.
5.