26/10/2015

Novas folhas do Japão

Novas folhas do Japão

“À pista vermelha
de uma flor, vem uma rima
e aflorissa: abelha.”
  
“Nos cinzeiros jazem
— antecipantes — as cinzas
mortais dos fumantes.”

            Oldegar Vieira é um escritor cujo trajeto é marcado pela polêmica que envolve qualquer artista inovador. Em 1932, quando muitos poetas baianos insistiam em prestar culto a retórica bombástica e palavrosa, ele começou a publicar as suas pequenas peças nas páginas de A TARDE, sob a acolhida de Carlos Chiacchio. Seu primeiro livro de haicais, o clássico Folhas de Chá, foi editado em 1940 pelos Cadernos da Hora Presente, de São Paulo, com ilustrações de uma pintora também inovadora e contestada, mas hoje respeitadíssima: Anita Malfatti.
            Oldegar concorria ao lado de Cecília Meireles ao prêmio da Academia Brasileira, quando Cassiano Ricardo, enquanto membro do júri, emitiu seu parecer sobre o invento poético do baiano.
            Se, por um lado, o então jovem Cassiano Ricardo recebia com uma ponta de ironia o trabalho de Oldegar, visto como “divertimento” e como “exotismo”, por outro lado, Octávio de Faria dá seu veredicto definitivo: “Um clássico”. Anos depois, Stella Leonardos faz o elogio mais pleno que um autor de haicai poderia esperar das Folhas de Chá: “Como Bashô gostaria de tê-las pro­vado”.
            Para o combativo crítico Álvaro Lins, a criação de Oldegar era uma “falsa poesia” que “abusa de toda aquela originalidade de superfície que o movimento modernista esgotou” e para Mário da Silva Brito, era “uma poesia pão-duro”.
            Felizmente, Oldegar persistiu na sua sovinice, no seu pão-durismo anti-verboso. Se se deixasse vencer pelas críticas desfavoráveis seria apenas mais um dos muitos poetas discursivos. Resis­tindo, tornou-se um mestre do gênero. Drummond afirma que ele é “entre nós, sabidamente, quem melhor domina o haicai”.
            Ao contrário do que supunha este mestre da crítica, Álvaro Lins, o texto sintético, curto e sentencioso não atinge apenas a superfície. Para mergulhar fundo nos insondáveis mistérios do homem não é necessário o discursivismo pleno. A modernidade nos ensina, cada vez mais, que um texto denso, sintético, não-redundante, pode ir fundo, de modo incisivo, como um soco de luz na escuridão. O haicai é um exercício deste poder de dizer o muito através do pouco. Meia palavra basta ao entendedor de poesia.
            Cinquenta e quatro anos depois, Oldegar Vieira reúne sua nova produção em Gravuras no Vento. O poeta continua fiel à velha forma que no século XVII Matsuo Bashô propôs ao mundo ocidental. Mas seus haicais são aculturados no Brasil, falam uma língua nissei, japoneses que são, na origem e no saber inicial, brasileiros na aclimatação e no sabor que se associa. Seus versos rimados formados por redondilhas, maior e menor, caem como uma luva na nossa tradição, fundindo a cultura japonesa à brasileira.
            O leitor vai encontrar, na página 31 do livro Gravuras no vento, dois haicais de apelo social. O primeiro tem como tema o mendigo e diz:

“Que Deus o proteja
não pede. O que pede é pão
na porta da igreja.”

            O outro, mais denso, permite dois níveis de leitura:

“Não mais florescentes,
no lixo largadas, são
flores – defloradas.”

            Na suave tradição oriental de cantar a natureza, este haicai fala apenas de flores arrancadas do jardim que, depois de ornamentar a casa, jazem no lixo, despidas da sua beleza natural. Num outro plano, social, evocando a miséria da nossa terra, ou (universalmente) de qualquer lugar, o poeta em sua síntese retrata o destino das meninas prostituídas. Apesar da sua idade primaveril “não mais florescentes”, mas habitando a boca do lixo da cidade, onde tristes são “flores defloradas”.
            Pelo seguro domínio do verso curto e denso, aliado ao poder de síntese e encantamento, demonstrados ao longo de mais de meio século, este novo livro de Oldegar Vieira vinha sendo agurdado com expectativa. Afinal, entre o seu primeiro livro de haicais, Folhas de chá, de 1940, e este Folhas no vento, muito tempo se passou e muitas tendências foram experimentadas pela poesia brasileira.
            Apesar de tudo que experimentamos, a poesia de Oldegar contina viva e atual, servindo de lição a muito pretenso poeta que anda por aí, sem saber que o muito nasce do pouco.

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Oldegar Vieira. Gravuras no Vento (Haicais). São Paulo, Massao Ohno, 1994.

Novas folhas do Japão (crítica literária). “Livros & Idéias”, seção do jornal A Tarde, Salvador, 26 set. 94, p. 5.