Dandara, uma utopia da liberdade
Dandara, de Janaína Amado, entrelaça
duas histórias para compor o universo romanesco: o destino individual de um
garimpeiro-lobisomem, que se apaixona por uma filha de escravos, e a utopia
coletiva da liberdade, vivida por um quilombo perdido em algum lugar do sertão.
O eixo em torno do qual o livro se desenvolve é o velho tema do amor
impossível, encarnado por um lobisomem e uma quilombola. Dito a frio, para quem
está de fora da trama do romance, o livro pode parecer sem grande interesse,
mas dito pela escrita de Janaína Amado, não só o pulsar da cidadela utópica de
Quibano, como também as incríveis peripécias de um lobisomem, ganham corpo e
interesse.
O
tecer da trama e o esgueirar-se da escrita ficcional são dominados por esta
escritora que faz sua estréia de forma deliciosa para o leitor. Dandara é um livro cuja leitura, uma vez
iniciada, não é interrompida, porque o leitor segue com interesse e prazer seus
descaminhos.
Mas,
em se tratando de um estréia no romance, antes de outros comentários sobre a
obra, o leitor pode querer saber quem é Janaína Amado. A autora tem vários
livros publicados na área de História, disciplina da qual é professora titular
na Universidade de Brasília. Nascida em Salvador, é filha de uma poeta pouco
conhecida, porém fascinante, Jacinta Passos, e do escritor James Amado. Tendo
seguido carreira acadêmica na área de História, Janaína fez-se doutora na
especialidade e publicou livros como Conflito
social no Brasil, pela Símbolo, em 1978; Navegar é preciso, Atual, 1989; Colombo e a América, Atual 1992; No
tempo das caravelas, Contexto, 1993; História de Goiás em documentos, Universidade Federal de Goiás, 1994; tendo a
sair o livro Passando dos limites: A
interdisciplinaridade nas ciências humanas.
O
realismo de Dandara é costurado com o fantástico, já imposto por um dos
protagonistas do livro, Pedro Lobisomem, extraído da imaginação romanesca e das
velhas lendas orais que fascinam crianças e adultos do interior do Brasil.
Desde esta escolha, Dandara começa a buscar um caminho de diálogos
intertextuais, estabelecendo falas e ressonância do imaginário brasileiro. Mas,
ao dialogar com as lendas e mitos da nossa gente, o livro abre passagem para um
outro diálogo intertextual, com versos de canções populares, personagens da
literatura etc.
No
segundo capítulo, onde tomamos contato com o universo da cidade de Iagos,
ficcionalmente situada em qualquer lugar do Brasil do século XVIII, a sua
população é constituída também por figuras humanas que são nossos velhos
conhecidos, de ler, de ouvir contar ou de assistir:
–
“De todas as ruelas que desembocam na Praça do Poeta, vinha descendo uma
multidão animada, tagarela: Manuel Verdureiro, Sargento Getúlio, o menino
Miguilim, Joana-Peito-de-Pomba, Padre Amado, Pedro Pedreiro, Dorotéia
Cajazeiras, os gêmeos Crispim e Crispiniano... O povo de Iagos, desde a véspera
trancado dentro das casas, iniciava mais um dia.”
Depois
destas aparições inesperadas, a gente fica a espreita de outros conhecidos que,
como Godot, se inscrevem na ausência. Esperamos ainda ver outras gentes, mas
elas ficam por aí, sem dar de cara. Pode-se mesmo dizer que Janaína Amado é uma
ficcionista estreante que, aqui e ali, brinca com o romance, como os veteranos
sabem brincar. Talvez a sua proximidade com a construção do texto histórico,
narrativa verdadeira, mas necessariamente bem urdida, confira a Janaína uma
certa intimidade com outras histórias.
Aqui,
recuperamos as informações sobre a autora, que, antes de seguir as trilhas da
ficção, escreveu alguns livros de investigação historiográfica.
Sem
nenhum intuito de pseudo erudição, lembro a conhecida passagem da Poética de
Aristóteles, na qual a história e a literatura são tomadas como referências
contíguas mas antagônicas. A história trata do verdadeiro, do particular,
daquilo que aconteceu. A literatura se ocupa do verossímil, do universal, do
que poderia acontecer. Os personagens da história são situados e datados,
homens que teriam existido e cujos feitos transcorreram num tempo e num lugar
determinados; enquanto os personagens poéticos, quer de um velho poema épico,
quer de um romance contemporâneo, têm seu tempo e o seu lugar situados em
qualquer ponto que a imaginação alcance.
É
precisamente isto que Janaína Amado faz no seu romance Dandara. Como historiadora, bem que poderia ir buscar no
acontecimento investigado o seu tema favorito, mas preferiu outra direção. Ao
abandonar o previsível caminho do romance histórico, preferiu romper com o
verdadeiro e construir uma verossimilhança fantástica, inverossímil portanto.
Radicaliza, assim, a dicotomia aristotélica e afirma-se como ficcionista sem
querer dever à História. Mas não pode deixar de fincar nesta experiência a sua
nova construção.
Em
outros termos, mesmo desvinculando radicalmente o seu romance da sua condição
de historiadora, Janaína Amado traz para a literatura uma bagagem incorporada
nas suas viagens pela investigação historiográfica. Se, por um lado, a
linguagem da autora, ou a tessitura do discurso, demonstra o exercício da
narrativa – que, mesmo não sendo narrativa de ficção, é uma narrativa que visa
ao estabelecimento do universo de uma história –, por outro lado, ao se fixar
numa época, o século XVIII, a autora deixa transparecer sua formação. Mas
novamente aí ela dá o salto: Dandara
não é romance de época. Assim como a cidade de Iagos se situa em qualquer lugar
do país, a ação pode transcorrer em qualquer tempo, desde que compreendido numa
faixa em que os quilombos se desenvolveram.
Janaína
Amado apaga qualquer ligação com o verdadeiro, assentando sua criação na mais
densa floresta do verossímil. No mais, é um romance capaz de prender o leitor
pelas suas peripécias, ao tempo em que revela a consciência do trabalho de
criação.
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Janaína Amado. Dandara; romance. São Paulo, Maltese, 1994.
Dandara, uma utopia da liberdade (resenha crítica). “Livros & Idéias”, seção do jornal A Tarde, Salvador, 24
out. 94, p. 5.
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