O conto como gênero lírico
Hotel
Solidão, de João Carrascoza, é antes de tudo um livro polêmico. Capaz de
despertar o entusiasmo de uma classe de leitores e de frustrar a outros mais
afeitos ao ritmo inquieto de uma história contada por Scherazade para encantar
o Sultão.
Os leitores que mais se deliciam com
a escrita bem tecida de Carrascoza são aqueles sensíveis ao encanto da
descrição de paisagens interiores e exteriores, a partir do olhar do sujeito
poético.
Já o leitor que quer o conto, a
história, como narrativa de uma ação agilmente desenvolvida, se frustra diante
de alguns dos textos de Hotel Solidão.
Neste seu livro, que obteve o
primeiro prêmio do XIV Concurso Nacional de Contos do Paraná, Carrascoza é um
lírico a fiar seu complexo tecido, no qual a descrição se espraia por páginas e
páginas de apurada técnica verbal. Mas alguns leitores são como o velho Sultão,
a quem Scherazade tinha que contar uma história cuja ação não sucumbisse ao
encanto das palavras. Só assim, o fio da trama estaria ligado à atenção do
senhor do seu destino; aquele que era o seu público e a sua salvação.
Para este tipo de leitor o melhor do
livro é quando Carrascoza tem uma história para contar, uma narrativa que
resista à reelaboração pela lembrança do leitor.
Sabemos que, na atualidade, o conto
tem buscado outras soluções que não aquelas que o constituíram enquanto gênero.
Nos seu primórdios, o conto deriva
do gênero épico, das narrativas em que o destino e as peripécias do herói
constituíam o fio do texto.
Hoje, contistas e novelistas
brasileiros —
fiquemos na nossa literatura — desde Clarice Lispector, caminham no sentido de aproximar o
conto do gênero lírico. Isto se dá quando o lírico prepondera sobre o épico,
criando um desequilíbrio que impõe uma nova conceituação.
Não é o lírico o responsável pelas
reflexões do sujeito sobre as pessoas, as coisas e os acontecimentos enquanto
objetos? Neste gênero, o jogo da linguagem constrói a realidade transfigurada.
É isso que vemos nos oito textos do
livro de Carrascoza. É por isso que os cito como “textos”; e não como “contos”.
Se quiser, o leitor poderá ver o texto inicial do livro, “Caçador de vidro”,
como uma crônica, gênero no qual o lírico encontra ampla acolhida,
especialmente quando praticado por um Rubem Braga ou por um Carlos Drummond de
Andrade.
Mesmo em outros textos, como “Uma
tentativa”, o leitor percorre, pelo menos, as sete primeiras páginas com a
impressão de que está diante de uma crônica. Só depois, a ação e a
representação se fazem presentes, dividindo o espaço com a descrição ou a
reflexão do olhar do sujeito.
Creio que são as mesmas virtudes de escritor
de Antonio A. Carrascoza que se tornam as responsáveis pelos pontos de
desequilíbrio do seu trabalho. Ele aposta demasiadamente na sua escritura, às
vezes, desdenhando do poder de uma trama bem urdida. Assim como as peripécias
das histórias inventadas por Schezarade nasciam da tensão diante da morte, o
melhor do conto nasce de uma tensão análoga. Isso o nosso autor bem o sabe, e
bem o disse. Os melhores momentos do seu livro são aqueles que promovem o
equilíbrio entre estes elementos: quando o tecer do fio lírico entretece o
diálogo e a ação; quando Carrascoza procura se utilizar de todos os recursos,
sem permitir que a sobreposição de um sobre o outro redunde em maneirismo.
Uma tentação comum a alguns
criadores cujo texto exercita o jogo construtivo da linguagem é ser seduzido
pelo próprio engenho de inventos. Mira-se incessantemente no mesmo espelho que
Narciso guarda como o bem mais precioso. A sua própria maneira de escrever é
erigida à condição demiúrgica de meio, princípio e fim.
É a isto que chamo de maneirismo dos
modernos criadores. Maneirismo este que, em alguns momentos, ofuscou a escrita
de João Cabral de Melo Neto, depois do poeta ter se transformado em referência
obrigatória da construção exata e do rigor da nossa poesia.
Guimarães Rosa se encanta com o seu
próprio estilo. Aí, o encanto se perde pelo excesso. O momento raro e preciso é
arrastado à condição de exercício redundante, eco reverberante ou
neo-barroquismo.
Não é sem causa que o crítico (e
poeta concreto) português Ernesto de Melo e Castro chama de neo-barroco o
estilo perseguido pelos escritores empenhados em novos caminhos expressivos.
Esta expressão cai como uma luva quando atravessamos as longas páginas
descritivas de João Carrascoza, onde a adjetivação cerca e contorna os substantivos
e onde a circularidade da escrita volteia em torno do invento.
Este espichar a escrita às vezes
cansa o leitor, especialmente quando as suas considerações se avizinham da
obviedade. Ao comentar o nome de um personagem, ele acrescenta: ”Ângelo lhe vai
melhor que os outros. Não que tenha semelhança com um anjo, raiz de seu nome,
sabe-se lá quanto viaja uma palavra até dar um nome como fruto”. Se não
insistisse na redundância, intercalando a frase explicativa — “raiz de seu nome” — o silêncio falaria mais
do que as palavras desnecessárias.
Mas as qualidades de escritor de
Carrascoza são evidentes no seu livro. Os exemplos são muitos, quer quando a
narrativa é iluminada pela metanarrativa, ou quando a intertextualidade brinca
com suas palavras.
Apesar de ser um escritor
relativamente novo, em processo de afirmação, ele caminha livremente pelos
labirintos da escrita. Quando permeia o diálogo com o discurso indireto livre,
diverte-se registrando o fato; suspendendo por um breve momento o fluxo do
texto para mais uma vez inserir apartes metalinguísticos.
No conto “Mapa apagado”, Prudêncio
dialoga com os peões que encontra na madrugada. O leitor acompanha a sua
história quando é surpreendido pela mudança de tom. Dialogando, Prudêncio nos
diz parte do que queremos saber. Em seguida, o narrador suspende a cena
construída, para dar lugar à observação: “Ouçam sua voz, em discurso indireto,
antes que predomine nos ecos da pradaria o alvoroço dos pássaros.”
É ainda no conto “Mapa apagado”,
quando Carrascoza promove o encaixamento de uma trama ou de uma situação
narrativa na outra, que ele melhor afirma a sua condição de escritor. Em outras
palavras: quando há uma história, ou quando a intensidade da narrativa não é
apagada pelas reflexões da inteligência, o prazer do leitor se completa.
Não sei se o caminho de João
Carrascoza é de fato o conto, narrativa necessariamente breve e ágil, ou se as
exigências do seu estilo desembocarão no romance, vasto oceano capaz de
harmonizar grandes correntezas. De qualquer forma, seguindo um caminho ou
outro, o leitor não o perderá de vista, porque tem diante de si um escritor de
talento.
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João
A. Carrascoza. Hotel Solidão; Contos.
São Paulo, Scritta, 1994.
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