Fernão Mendes Pinto,
cronista de viagem ou prosador de ficção?
Cid Seixas
A revisão crítica da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto
pelos estudiosos da segunda metade do século XX teve, a princípio, a tendência
de emprestar a esse livro ainda mais deslumbramento que o olhar do viajante
experimentou. Se a escrita já sugere lances de ironia e de fina percepção dos
equívocos e desvarios da sociedade portuguesa quinhentista, estudiosos como
Rebecca Catz ou Antonio José Saraiva desentranharam das suas leituras ainda
mais vislumbres de ironia e consciência crítica.
Opondo-se à tese até então
aceita segundo a qual a Peregrinação
é uma sátira impiedosa das práticas de proveito e hipocrisia do cristianismo
português quinhentista, perfilam-se estudiosos como Aníbal Pinto de Castro, em
Portugal, e, mais recentemente, Francisco Ferreira de Lima, no Brasil.
A direção apontada por Rebecca
Catz, ao afirmar que Mendes Pinto não tinha o cristianismo como modelo, é
refutada com veemência, especialmente quando essa estudiosa, apesar da
precariedade das provas arroladas, conclui que o autor da Peregrinação era judeu e, como tal, teria desenvolvido nuances de
crítica e de ironia que somente uma leitura fina como a sua desvendaria,
séculos mais tarde. Ela acreditava ler aquilo que o autor pretendia que se
lesse.
O excesso de deslumbramento no
olhar de um ou de outro estudioso suscitou a revisão dos pontos de vista
tradicionalmente aceitos. Hoje, na esteira da refutação dos pressupostos mais
fantasiosos, especialmente os de Katz, a evidente natureza polissêmica da
escritura de Mendes Pinto é obscurecida, ou negligenciada, pelos estudos que
pretendem devolver ao texto a sua “verdadeira dimensão”. O propósito de evitar
os excessos de deslumbre exigiu uma análise pertinente e rigorosa do contexto social
quinhentista, onde a Peregrinação é
considerada principalmente como documento. O documento de viagem que sempre
pareceu aos leitores dos séculos passados.
Numa tal perspectiva, aqui
chamada de revisionista, essa obra não veria mais do que a sua época costumava
ver. Ela não seria a sátira impiedosa nem a crítica irônica dos valores religiosos
e éticos então vigentes. Aquilo que queremos ler, quando lemos o texto de
Mendes Pinto, não pertenceria a ele, mas à nossa ideologia de leitores. Ainda
segundo esse ponto de vista, a diferença de perspectiva imposta pelas idéias do
nosso século estaria interferindo no sentido da obra estudada.
Mas será que isso é
indesejável? Será que o significado de uma obra é apenas constituído pelo
momento da sua produção? E não, também, pelo da sua recepção?
O que importa numa obra
literária é a intenção do autor ou aquilo que o texto diz, mesmo sem intenção
de dizer?
A permanência e a atualidade da
Peregrinação são devidas,
principalmente, a sua falta de sinceridade. Isto é, à sua natureza ficcional,
onde os fatos vividos por um personagem real chamado Fernão Mendes Pinto, mais
os fatos sonhados e inventados, e os fatos vividos por outros viajantes, são
todos reunidos num mesmo personagem ficcional chamado também de Fernão Mendes
Pinto.
Ora, se o autor pressentia, ou
mesmo, se tinha uma certa consciência de que estava fazendo ficção – para falar
com mais propriedade de uma realidade que não cabia nos estreitos limites da
realidade estabelecida –, ele bem que poderia não ser sincero nas suas ingênuas
genuflexões diante de uma prática impiedosa que correspondia ao discurso
cristão mais piedoso da sua época.
Tratamos aqui, portanto, da
questão da intenção do autor, apesar do sentido da obra não ser um servo fiel
da sua intenção consciente. Como a crítica revisionista trabalha no nível dessa
consciência cristã do século XVI, a sua leitura da Peregrinação pode não ser a mesma do leitor comum dos nossos dias,
que estaria mais próximo do entusiasmo; mesmo do entusiasmo de Rebecca Katz.
Observe-se que o critério de
objetividade presente na abordagem revisionista se, por um lado, é capaz de
recuperar e reconstituir o quadro das idéias do século XVI, por outro lado,
pode implicar uma leitura menos polissêmica, menos literária, portanto; e mais
científica. Isto é: uma leitura do ponto de vista de uma sociologia das idéias,
de uma teoria das ideologias, ou de uma sociologia do conhecimento.
Pergunto então: essa leitura
metodologicamente estruturada visando compreender a verdade do viajante não
negaria, não desconheceria, a natureza literária do texto? O texto literário
não seria, quase sempre, uma dissimulação? Por que então aceitá-lo como
confissão verdadeira?
Aquele trapacear com a
linguagem do qual o velho Barthes fala com muita propriedade não estará
excluído da Peregrinação, se ela for
lida como um texto que testemunha e dá fé de uma verdade?
O que restará desse texto – o
texto que Mendes Pinto escreveu e que nós lemos como literário – sem as suas
possíveis dissimulações?
Enfim: é legítimo analisar um
texto, considerado pela tradição como literário, a partir de critérios capazes
de descarnar os sentidos circundantes, aderentes ao sentido por acaso previsto
– ou imprevisto – pelo autor?
Desde a sua publicação, em
1614, que essa obra, deslocada do contexto documental das narrativas de
viajantes, passou a ser vista como um dos tantos relatos de viagem. Por isso, a
ingênua glosa do seu nome:
– Fernão, Mentes?
– Minto.
Fernão Mendes Pinto era tomado
como uma testemunha ocular e infiel. Mas quando nos colocamos diante de uma
escolha: continuar lendo a Peregrinação
como simples relato de viagem ou passar a lê-la como prosa de ficção, como obra
de arte verbal, portanto, os critérios de análise precisam ser revistos. E isso
faz diferença. Se aceitarmos que o Fernão Mendes Pinto que aparece como
narrador de tantas maravilhas, ao contrário de toda a expectativa dos seus
leitores dos séculos anteriores, não é o mesmo sujeito civil que escreveu o
livro, mas um personagem de ficção literária e, como queria Aristóteles,
universal, resultado de muitas experiências de muitos sujeitos, as considerações
a respeito do seu compromisso com o ideal cristão requerem outro tom de
abordagem e outro modo de compreensão.
Veja-se que no episódio da Ilha
dos Ladrões, Mendes Pinto e seus companheiros portugueses roubam uma embarcação
e depois celebram o crime agradecendo a Deus por mais uma graça. Um menino
tomado prisioneiro, um não-cristão, portanto, faz uma severa crítica àqueles
que atribuem a um milagre de Deus o bem-sucedido roubo.
Ao se incluir entre aqueles que
são censurados pelo menino, cabem aqui duas conjecturas, o personagem-narrador
Fernão Mendes Pinto seria a universalização, no sentido aristotélico, de todo
viajante, e esse menino seria a consciência crítica do autor e de todo cristão
que conseguisse ultrapassar a ética da conveniência.
Ao reunir num personagem traços
gerais, universalizando-o, portanto, o autor da Peregrinação estaria plenamente no território da ficção. É o que se
dá com Antonio de Faria, representação coletiva de todo português que empreende
a viagem e os saques dessa “cavalaria marítima” (conforme a expressão cunhada
por Francisco Ferreira de Lima e legitimada por Massaud Moisés). O destino
desse personagem seria assim uma advertência e uma crítica aos contemporâneos.
Não importa tenha existido ou não um Antonio de Faria real. O que importa é o
Antonio de Faria universal, construído pelo texto ficcional para servir de objeto
da sua crítica.
Entendido desse modo, como um
personagem de ficção que universaliza as ações de vários viajantes portugueses,
o protagonista Fernão Mendes Pinto seria também um Antonio de Faria, como
querem alguns estudiosos. Ou ainda, os personagens Fernão Mendes Pinto e
Antonio de Faria seriam desdobramentos ficcionais de um mesmo sujeito real; ou,
por outro lado, seriam uma bipartição de vários tipos e sujeitos da sociedade
da época.
No trecho da Peregrinação em que o viajante destaca a
perfeição da justiça chinesa pelo fato dela se sustentar em juízes independentes,
bons e justos, ele conclui que pobres e ricos, ilustres ou desconhecidos são
julgados com isenção. Como o autor desse livro de viagens no país das
maravilhas pertencia à classe dos novos servos (não mais da terra e sim do
capital), esse “testemunho verdadeiro”
nos mostra como o condão do discurso ficcional realiza um desejo das classes
subalternas da Europa do século XVI.
Assim entendido, como
personagem ficcional, Fernão Mendes Pinto pode legitimamente figurar entre os
primeiros portugueses a desembarcar no Japão, não obstante o sujeito civil que
escreveu a Peregrinação não figure
entre esses. Assim ele pode sobreviver a todos os naufrágios e se fazer
presente aos mais insólitos acontecimentos. Acontecimentos cuja recorrência e
cuja dinâmica dificilmente cobririam a vida de um homem. É um excesso de fatos,
é um excesso de atos, é um excesso de real para os limites de uma única vida.
Somente recriada através da arte, da ficção, uma vida conteria tanto real.
Mas a Peregrinação tanto vem sendo lida como um verdadeiro relato de
viagem, quanto como sendo uma obra de ficção que finge fazer um relato
verdadeiro. Lida a obra como um relato (assim liam aqueles que acusavam o autor
de mentiroso), a hipótese de o texto conter ironia ou crítica à ideologia das
cruzadas transplantadas para a aventura marítima pode ser contestada.
Observe-se bem: lida a obra como um relato, a hipótese do texto conter ironia e
crítica severa à moral cristã do expansionismo pode ser contestada. Mas lida a Peregrinação como uma obra de arte
literária, todo sentido possível de ser atribuído deve ser visto como possível;
e não como impossível.
Os investigadores que procuram
o nome de Fernão Mendes Pinto entre os marinheiros portugueses que pisaram pela
primeira vez no Japão se inscrevem entre aqueles que tomam esse livro
emblemático como um mero relato de viagem, sem levar em conta a passagem do
documento à criação ficcional operada pela escritura do autor. Num momento de
constituição plena do fazer literário e de redefinição dos gêneros, como o
século XVI, um grande número de obras situa-se no território da prosa doutrinária,
conceitual, informativa etc., sendo importante observar os momentos de ruptura
entre o verdadeiro e o verossímil. Entre a prosa de formação (ou mesmo de
informação) e a prosa de ficção.
A partir de tal perspectiva,
compreende-se, inclusive, a ambivalência das situações apresentadas na Peregrinação. Mesmo sendo um cristão, um
português do século XVI, o narrador-personagem dirige a sua crítica contundente
à moral do proveito. Ao tempo em que o exemplo dado pelo outro desnuda os
vícios que condimentam a ética cristã de então, a possibilidade do proveito
justifica tais vícios e estabelece o círculo imaginário de pecado e de expiação.
Por isso, o depoimento mordaz e
irrespondível contido nas situações e diálogos da Peregrinação. Enquanto tantas outras narrativas de viagem dão
relevo à estranheza do outro, sem que isso implique o desnudamento dos vícios
do conquistador, essa obra vale-se do confronto para sublinhar o que está em
desacordo com o bom senso não apenas no outro mas, principalmente, no mesmo –
isto é, no cristão, no europeu, no português.
É verdade que o sujeito que
conta as desaventuras assume o discurso do cristão português lançado aos mares
temperados pela defesa da fé. É verdade também que a ambição é justificada pela
legitimidade do proveito decorrente das missões destinadas a expandir as
fronteiras da cristandade. E que toda conquista unia a espada à cruz.
Mas o narrador não oculta nem
minimiza os fatos que contradizem os piedosos e frágeis propósitos. A cobiça, o
desrespeito, o desamor e a deslealdade são evidenciados na sua ação e na dos
seus companheiros, em flagrante contraste com a boa fé do outro. O outro, quase
sempre, é pretexto para corrigir os costumes do mesmo.
Quando, em 1726, Jonathan
Swift, em Gulliver’s travels, se vale
dos manuscritos que lhe foram confiados por um incerto Sr. Lemuel Gulliver para
colocar a nu, para desvestir a máscara que cobria os gestos insensatos dos seus
concidadãos, ele estaria retomando uma estratégia já usada na Peregrinação de sublinhar as virtudes do
outro como forma de evidenciar os próprios defeitos.
A presença de um capitão
português, Dom Pedro de Mendes, fechando as viagens de Gulliver – e, graças ao
entendimento e aos modos desse capitão Mendes, reconduzindo Lemuel Gulliver à
convivência dos homens – seria um indício de que Swift teria lido a Peregrinação como uma sátira e uma crítica
aos vícios da cristandade. O próprio Janathan Swift, doutor em Teologia,
tornou-se cônego para não viver na miséria, e depois, deão da Catedral de São
Patrício, na Irlanda, não obstante tenha dedicado uma das suas obras ao ataque
frontal ao desregramento da vida religiosa.
Partindo de quem não via com
generosidade a espécie humana, a referência generosa a esse capitão Mendes,
feita por Swift, seria uma simples coincidência, ou fruto da identidade entre
dois autores?
Um, no século XVI, partindo de
uma narrativa de viagem real para chegar à ficção, como de fato chegou, e
outro, no século XVIII, valendo-se da ficção para criar a realidade de um
verossímil viajante inglês.
Curioso ainda é o temor que
Gulliver manifesta à Inquisição, quando da sua estadia em Lisboa. Essa
emblemática presença do capitão Mendes no desfecho das viagens do capitão
Gulliver sugere o tráfico de idéias comuns. Sugere mais ainda: analogamente, o
possível risco que o autor-personagem da Peregrinação
corria perante a Inquisição portuguesa; risco aqui traduzido no temor de Lemuel
Gulliver.
De volta ao texto de Fernão Mendes
Pinto, observe-se que o episódio ocorrido em Formosa, então conhecida como Ilha
dos Léquios, mostra como os portugueses, acusados e tornados prisioneiros, são
tratados com respeito por aqueles que o irão julgar. O governador inicia o
interrogatório pedindo desculpas pela sua obrigação de levar o processo adiante
e, movido pela compaixão, afirma que preferia estar no lugar dos prisioneiros.
O interrogatório, feito por aqueles que – conforme a ótica cristã – desconhecem
a palavra divina, é uma eloquente lição de humildade e de sentimento cristão. A
miséria dos prisioneiros portugueses compadece de tal modo os léquios que foram
recolhidas esmolas suficientes que torná-los providos “de todo o necessario em tanta abastança, que não ouue nenhum de nós
que não trouxesse de cem cruzados para cima”. (Pinto 1614, p. 131)
Libertados com generosidade e
tratados como amigos, o narrador e seus companheiros opõem a fidalguia dos
léquios, desvalidos da palavra de Cristo, à vilania dos portugueses, piedosos
cristãos: “Desta breue informação que
tenho dado destes Lequios se pode enteder, & assi o cuydo eu pelo que vy,
que com quaisquer dous mil homes se tomara e senhoreara esta ilha com todas as
mais destes acipelagos, donde resultara muyto mayor proueito q o que se tira da
India”. (Idem, p. 223)
A oposição gritante entre o
espírito elevado dos léquios e a astuta mesquinharia dos cristãos não pode ser
casual. Ao por na boca do narrador falas aparentemente “inocentes” que denunciam
a mais absoluta ausência de ética, Mendes Pinto quer, de fato, se valer da
ironia para criticar a moral da sua gente. A mesma moral que lhe constitui como
sujeito e lhe contamina. Daí, a ambivalência.
Ao pintar o
quadro com tintas carregadas e finalizar a pintura louvando a Deus pelo
ocorrido, quando o ocorrido desafia a bondade divina, não estaria Mendes Pinto
satirizando?
Para Francisco Ferreira de
Lima, um dos mais abalizados representantes dessa nova corrente de releitura da
Peregrinação, a frequência com que o
narrador apela a “Cristo”, a “Jesus”, a “Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao “filho
de Deus que morreu na Cruz” neutraliza a presença de ironia. Seu argumente
parte do pressuposto segundo o qual, sendo um bom cristão, o autor não
assumiria um discurso de arremedo dos cacoetes da sua época. (Lima, 1988, p.
89)
Pode-se, contrariamente,
afirmar que tal frequência, inclusive nas situações mais absurdas e descabidas,
confirma a ironia. A repetição, a constância, a recorrência, a redundância é
uma forma de caricatura. E a caricatura do procedimento do cristão português
realça suas contradições e dá sustentação à ironia.
É evidente que Mendes Pinto
– quer seja cristão novo, ou não –
incorpora a ética cristã do proveito; mas o seu texto é um contundente libelo
contra essa mesma ética.
O que se vê nas viagens, ou se
imagina e inventa, tem por fim criticar e tentar melhorar a realidade do mundo
português, do mundo cristão. Assim, as virtudes dos gentios – percebidas até
mesmo por um protagonista que se pinta como tão insensível quanto aqueles a
quem critica – as virtudes dos gentios são, em si mesmas, uma crítica ao
comportamento europeu. Obviamente, a crítica é ao mau cristão, ou seja, como
convém emendar: a todos os portugueses da época que empreenderam a aventura da
conquista. Restringir a crítica seria crer que o universo dos criticáveis
também fosse restrito.
Há uma passagem na Peregrinação onde o pretexto seria a
crítica à religião do outro. Vejamos: “Desta
sua cegueyra & incredulidade lhe nacen os grandes desatinos, & a grande
confusão de superstições que tem entre sy”. Façamos um corte e vejamos
outra passagem do texto, mais adiante, onde entre tais desatinos e superstições
destacam-se as – usemos uma expressão em alta – propinas “que dão aos seus sacerdotes, porque [ou: para que estes] lhes segurem grandes bes nesta vida, &
na outra riquezas de ouro infinitas, os quais sacerdotes lhe dão para isso hus
escritos como letras de cambio”. (Pinto 1614, p. 251)
A coincidência com os hábitos
cristãos e, especialmente, com a venda de indulgência pela igreja de Roma impõe
ao leitor alguma reflexão em torno da ironia.
Há, de fato, um parentesco
entre a escritura de Fernão Mendes Pinto e a de Jonathan Swift. Esse último,
mesmo vivendo da atividade religiosa, não deixa de ver as mazelas da sua grei.
Dizer que a Peregrinação está em perfeita sintonia
com o cristianismo do século XVI, como querem alguns estudiosos
(revisionistas), é reduzir essa escrita literária, polissêmica e aberta à
atualização do possível leitor de qualquer tempo, a mera condição de um “diário
de bordo”.
Conforme se sabe, o texto de
Mendes Pinto foi escrito muitos anos depois das suas viagens, não obstante o
relato, rico em pormenores e sugestivo de emoções recém-vividas, dê a impressão
que muitas passagens foram escritas ao calor dos acontecimentos. Esse poder de
sugestão é típico do texto literário, onde a ficcionalidade constrói os
detalhes, onde a realidade do sujeito preenche o vazio – ou a ausência – da
realidade objetiva.
Mas se a Peregrinação não contém “cousa
algu)a contra a
nossa santa Fé”, conforme a leitura
do censor do Santo Ofício – esse sim perfeitamente integrado ao sistema de
valores do cristianismo do século XVI e incapaz, portanto, de ler as evidências
dos fatos –, se a Peregrinação não
contém nada contra as convicções e os interesses dito cristãos da época, por
que Mendes Pinto temia? Se é que temia. O temor, em tais circunstâncias sugere
que se veja mais do que o censor alcançava – ao ver.
Quando os valores religiosos
entram em cena na Peregrinação, o
narrador-personagem procura se manter imune ao encantamento e à sedução do
desconhecido. Nessas circunstâncias, o ouvidor atento não ouve, o voyer
contumaz não vê.
Para fugir ao rigor da censura
ou ao sistema de terror instaurado pela Igreja, o texto da Peregrinação assume o discurso piedoso mais absurdo, justificando
todas as atrocidades em nome de Cristo, do mesmo modo que faziam os
inquisidores. Dessa forma, o narrador cerca-se de cacoetes clericais, usando o
nome de Deus a toda hora e evitando críticas diretas aos hábitos portugueses.
São as evidências e os fatos
objetivados que substituem a crítica aparente, como faz, na atualidade, o
chamado jornalismo objetivo. Mesmo sem comentar a notícia, a mídia seleciona
fatos que conduzem o leitor a um determinado posicionamento. O jornalismo
‘objetivo’ apenas edita o dito.
A crítica velada, disfarçada
pela cuidadosa escolha dos episódios mostrados, tanto é usada nos nossos dias
quanto foi experimentada no século XVI por Fernão Mendes Pinto. Afinal de
contas, é a arte, a literatura, que descobre novos modos de dizer o indizível,
ou aquilo que não pode ser dito.
Quando a crítica aparece na Peregrinação, ela é alegorizada em forma
de crítica ao outro, ao gentio. Ou aparece em forma de louvor ao contra-senso,
quando depois de roubar pessoas indefesas, os portugueses agradecem à graça de
Deus, pela proteção.
É a exposição crua dos fatos,
vistos sem constrangimento, e contrapostos às piedosas expressões de beatice,
que funciona como crítica; uma crítica que não aparece nas palavras do texto mas
eclode no ato da leitura.
Excluída a possível natureza
contestatória do livro, como querem os revisionistas, continuaria inexplicado o
longo tempo decorrido entre a finalização do texto e sua impressão. Somente
vinte anos depois da morte do autor a obra veio a lume.
O temor de Mendes Pinto à
repercussão da sua obra ganha sentido a partir daí, da sua consciência crítica,
consciência dos recursos usados pela sua escritura. Lida a Peregrinação como um canto de louvor sincero ao cristianismo do
século XVI, o autor não teria motivos de temor ao Santo Ofício. Mas ele temia;
é o que os fatos indicam. Desta forma, a presença da ironia, da avaliação
judicativa, ou mesmo da paródia como forma de crítica ao parodiado, continua
como proposta sustentável. E fascinante.
REFERÊNCIAS
CATZ,
Rebeca. A sátira social de Fernão Mendes Pinto. Lisboa, Prelo, 1978.
CATZ,
Rebecca, Fernão Mendes Pinto: Sátira e Anti-Cruzada na Peregrinação, 1.ª
ed.,
Lisboa,
Biblioteca Breve, 1981.
CATZ,
Rebecca, «A Peregrinação é um livro de filosofia moral e religiosa», in Jornal
de Letras Artes e Ideias, nº 63, de 19 de Julho a 1 de Agosto de 1983.
LIMA,
Francisco Ferreira de. O outro livro das maravilhas. A Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998.
PINTO, Fernão Mendes
(1614). Peregrinação. Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983.
(Baseada na Edição de Adolfo Casais Monteiro, 1952-1953.)
PINTO,
Fernão Mendes, Peregrinação (cotejada com a 1.ª edição de 1614, leitura
atualizada, introdução e anotações de Neves Águas), Lisboa, Publicações
Europa-América, 1996.
REBELO,
Luís de Sousa. “Prefácio”. In: CATZ, Rebeca. A sátira social de Fernão
Mendes Pinto. Lisboa: Prelo, 1978.
SARAIVA,
Antônio José. Fernão Mendes Pinto. Europa-América, 1971 (Col. Obras de
A. J. S., 5).
(Artigo inédito.)
(Artigo inédito.)