A escrita derramada de Graciliano
– Se não te agradam sentimentos tão
excessivos, mata-me. Mas não me mates logo: mata-me devagar, deitando veneno no
que me escreves.
A letra de um tango, ou de um samba canção,
cantado por Gardel ou por Nelson Gonçalves não seria mais plangente e
dramática.
– Vê se me arranjas um colete de forças
por causa de minha loucura.
– Devo repetir-te que te amo como um
doido?
– Santo Deus! Vais chamar-me novamente
romântico. Pieguices! Mas por que imaginas que o que te escrevo é falso? Não
pensas o que disseste. Sabes perfeitamente que me tens preso – e brincas comigo
como se eu fosse um miserável animal que uma criança amarra com um fio.
(Graciliano Ramos: Cartas de Amor a
Heloísa. Ilustrações de Floriano Teixeira. Rio de Janeiro, Record, 1994.)
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A escrita seca e cortante, a frase curta e
precisa são características associadas por qualquer leitor ao nome de
Graciliano Ramos. Estes traços também são estendidos ao caráter do escritor e
do homem. Não esqueçamos que a similaridade entre o homem e o estilo da sua
narrativa de ficção foi constituída desde que o leitor do romancista tomou
conhecimento do seu relatório quando prefeito de Palmeira dos Índios.
Polarmente oposto a todo documento desta natureza, o relatório que Graciliano
apresentou em 1929 ao Governador do Estado, além de incisivo, revela um homem
cuja objetividade do dizer confunde-se com a secura mordaz. Ele não faz nenhuma
concessão ao interlocutor. Pelo contrário, provoca-o desconcertantemente.
Quando lemos as crônicas publicadas na
imprensa de Alagoas, desde a segunda década do século XX, também vamos
encontrar o mesmo sujeito resmungão. Graciliano começa sua coluna no jornal de
Palmeira dos Índios espetando o leitor; ironicamente apontando suas mazelas. Ao
invés de sussurrar ao ouvidos das leitoras, puxava suas orelhas, às vezes,
reclamando que estavam sujas. Este é o jeito de Graciliano Ramos.
* * *
Mas, no mesmo ano de 1928, ele aparece com uma escrita adocicada, feita de plumas, entrecortada por flechas, ou derramada de paixão. São as cartas escritas a Heloísa. Embora visceralmente ligadas ao mesmo estilo direto e agressivo, elas aparecem acolchoadas por almofadas de delicadezas, adocicadas pelos arrulhos amorosos do apaixonado missivista. São sete cartas de amor que o viúvo e pai de quatro filhos Graciliano, então com trinta e cinco anos, escreve à jovem Heloísa, de apenas dezoito anos.
Estas cartas têm de tudo que qualquer carta
de amor tem direito a ter. Lamúrias, afagos, fúrias ingênuas. Por isso,
iluminam o horizonte do leitor na tentativa de se situar no universo de
Graciliano Ramos. Como a sentença de Bouffon é freqüentemente aplicada ao caso
Graciliano – o estilo é o homem –, José Paulo Paes, no estudo introdutório às
sete cartas de amor, procura tornar a máxima menos estreita. O mito da secura
de Graciliano Ramos é enriquecido pelo depoimento do seu contato com o autor,
quando, em 1947, conheceu um Graciliano que durante uma tarde inteira conversou
com o jovem José Paulo Paes. Mestre Graça “vivia ali o seu lado descontraído
(...) ficava natural”.
O retrato assim retocado é menos incompleto.
Aparece uma outra face de Graciliano, como a face revelada pelas suas cartas a
Heloísa. É por isso que Paes conclui: “O escritor não é todo o homem, mas uma
de suas virtualidades. No caso Graciliano Ramos, a mais rica sem dúvida, a
julgar pela excelência e pela permanência das suas criações.”
Mas as cartas de amor, apesar de
desconcertantes para quem guarda a imagem casmurra do romancista, também estão
sincronizadas com o narrador de Caetés. Numa dessas cartas aparece o episódio
no qual um padre, amigo de Graciliano e da família de Heloísa, revela ao pai da
moça que o seu futuro genro estava escrevendo um romance. Embora só fosse
publicado em 1933, Caetés foi escrito entre 1925 e 1928, o ano em que o
autor conheceu Heloísa. E não se diga que a paixão verdadeira vivida pelo escritor
não é transposta, ou recriada, de modo diverso, porém análogo, na confidência
que o personagem João Valério nos faz da sua paixão por Luísa. O personagem do
romance escrito por Graciliano Ramos também escreve o seu romance. Há uma
importante e dissimulada relação intertextual entre as cartas e o livro de
estréia de Graciliano.
Apesar disso, podemos dizer que as cartas de
amor do autor de Vidas secas são tão surpreendentes quanto as cartas de
amor de Fernando Pessoa a Ophélia. Assim como epístolas e criação se
interpenetram em Graciliano, em Pessoa as cartas ressoam nas palavras do poeta
heterônimo Álvaro de Campos:
Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.
[...]
Mas, afinal,
só as criaturas que nunca escreveram
cartas de amor é que
são ridículas.
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Graciliano Ramos. Cartas de Amor a Heloísa; ilustrações de
Floriano Teixeira. Rio de Janeiro, Record, 1994.
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Leitura
Crítica é publicada toda
segunda-feira,
na
página 5 do segundo caderno de A TARDE.