26/10/2015

Graciliano Ramos

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

A escrita derramada de Graciliano

Se não te agradam sentimentos tão excessivos, mata-me. Mas não me mates logo: mata-me devagar, deitando veneno no que me escreves.
A letra de um tango, ou de um samba canção, cantado por Gardel ou por Nelson Gonçalves não seria mais plangente e dramática.
Vê se me arranjas um colete de forças por causa de minha loucura.
Devo repetir-te que te amo como um doido?
Santo Deus! Vais chamar-me novamente romântico. Pieguices! Mas por que imaginas que o que te escrevo é falso? Não pensas o que disseste. Sabes perfeitamente que me tens preso – e brincas comigo como se eu fosse um miserável animal que uma criança amarra com um fio.
(Graciliano Ramos: Cartas de Amor a Heloísa. Ilustrações de Floriano Teixeira. Rio de Janeiro, Record, 1994.)

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A escrita seca e cortante, a frase curta e precisa são características associadas por qualquer leitor ao nome de Graciliano Ramos. Estes traços também são estendidos ao caráter do escritor e do homem. Não esqueçamos que a similaridade entre o homem e o estilo da sua narrativa de ficção foi constituída desde que o leitor do romancista tomou conhecimento do seu relatório quando prefeito de Palmeira dos Índios. Polarmente oposto a todo documento desta natureza, o relatório que Graciliano apresentou em 1929 ao Governador do Estado, além de incisivo, revela um homem cuja objetividade do dizer confunde-se com a secura mordaz. Ele não faz nenhuma concessão ao interlocutor. Pelo contrário, provoca-o desconcertantemente.
Quando lemos as crônicas publicadas na imprensa de Alagoas, desde a segunda década do século XX, também vamos encontrar o mesmo sujeito resmungão. Graciliano começa sua coluna no jornal de Palmeira dos Índios espetando o leitor; ironicamente apontando suas mazelas. Ao invés de sussurrar ao ouvidos das leitoras, puxava suas orelhas, às vezes, reclamando que estavam sujas. Este é o jeito de Graciliano Ramos.

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Mas, no mesmo ano de 1928, ele aparece com uma escrita adocicada, feita de plumas, entrecortada por flechas, ou derramada de paixão. São as cartas escritas a Heloísa. Embora visceralmente ligadas ao mesmo estilo direto e agressivo, elas aparecem acolchoadas por almofadas de delicadezas, adocicadas pelos arrulhos amorosos do apaixonado missivista. São sete cartas de amor que o viúvo e pai de quatro filhos Graciliano, então com trinta e cinco anos, escreve à jovem Heloísa, de apenas dezoito anos.
Estas cartas têm de tudo que qualquer carta de amor tem direito a ter. Lamúrias, afagos, fúrias ingênuas. Por isso, iluminam o horizonte do leitor na tentativa de se situar no universo de Graciliano Ramos. Como a sentença de Bouffon é freqüentemente aplicada ao caso Graciliano – o estilo é o homem –, José Paulo Paes, no estudo introdutório às sete cartas de amor, procura tornar a máxima menos estreita. O mito da secura de Graciliano Ramos é enriquecido pelo depoimento do seu contato com o autor, quando, em 1947, conheceu um Graciliano que durante uma tarde inteira conversou com o jovem José Paulo Paes. Mestre Graça “vivia ali o seu lado descontraído (...) ficava natural”.
O retrato assim retocado é menos incompleto. Aparece uma outra face de Graciliano, como a face revelada pelas suas cartas a Heloísa. É por isso que Paes conclui: “O escritor não é todo o homem, mas uma de suas virtualidades. No caso Graciliano Ramos, a mais rica sem dúvida, a julgar pela excelência e pela permanência das suas criações.”
Mas as cartas de amor, apesar de desconcertantes para quem guarda a imagem casmurra do romancista, também estão sincronizadas com o narrador de Caetés. Numa dessas cartas aparece o episódio no qual um padre, amigo de Graciliano e da família de Heloísa, revela ao pai da moça que o seu futuro genro estava escrevendo um romance. Embora só fosse publicado em 1933, Caetés foi escrito entre 1925 e 1928, o ano em que o autor conheceu Heloísa. E não se diga que a paixão verdadeira vivida pelo escritor não é transposta, ou recriada, de modo diverso, porém análogo, na confidência que o personagem João Valério nos faz da sua paixão por Luísa. O personagem do romance escrito por Graciliano Ramos também escreve o seu romance. Há uma importante e dissimulada relação intertextual entre as cartas e o livro de estréia de Graciliano.
Apesar disso, podemos dizer que as cartas de amor do autor de Vidas secas são tão surpreendentes quanto as cartas de amor de Fernando Pessoa a Ophélia. Assim como epístolas e criação se interpenetram em Graciliano, em Pessoa as cartas ressoam nas palavras do poeta heterônimo Álvaro de Campos:

Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.
[...]

Mas, afinal,
só as criaturas que nunca escreveram
cartas de amor  é que são ridículas.

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Graciliano Ramos. Cartas de Amor a Heloísa; ilustrações de Floriano Teixeira. Rio de Janeiro, Record, 1994.

A escrita derramada de Graciliano (artigo de crítica literária). Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 26 dez. 94, p. 5.

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Leitura Crítica é publicada toda segunda-feira,
na página 5 do segundo caderno de A TARDE.