A arte
como construção do real
O conceito de transgressão aplicado à literatura
perde o sentido quando a tradição moderna e a pós-modernidade reduzem o alcance
da ruptura operada pela arte às formas da
expressão. Perde-se de vista o fato essencial de que a literatura
transgride os limites do mundo estabelecido para construir nuances alternativas
da realidade.
Na
segunda metade do século XX, com o bem sucedido resultado do pensamento
estruturalista que conferiu às ciências da cultura um rigor equivalente aos
estudos das áreas tecnológicas e da natureza, verificou-se uma hipertrofia da
valorização dos aspectos formais das artes, descurando-se do seu conteúdo.
Enquanto se procurava compreender como as formas
da expressão construíam novas abordagens artísticas, esquecia-se que são as
formas do conteúdo as responsáveis
pela ampliação dos limites do nosso mundo. Se as ciências ampliam os horizontes
do homem pelas suas descobertas, as artes empreendem rupturas extraordinárias
no modo de ver e compreender a realidade. Como a realidade humana se opõe à
animal pela intervenção do simbólico, compreendendo aí todas as instituições
abstratas da cultura, a linguagem não apenas expressa a realidade, mas fundamentalmente
determina e constitui esta mesma realidade.
As vanguardas literárias que transitaram da
modernidade para a contemporaneidade se caracterizam pela subversão dos códigos expressivos da obra de arte,
onde a renovação não se processa para melhor captar, ou construir, o mundo,
mais para melhor impressioná-lo. Interessadas numa expressão nova, a qualquer
custo, elas correm o risco de esquecer que a expressão é expressão de alguma
coisa. Foi o que o século XX assistiu: um empenho no sentido de buscar novos
caminhos expressivos para uma arte que não se revigorou na sua essência, no seu
modo de afrontar o mundo.
Se esse empenho, por um lado, é positivo, se a
nova dicção é a única forma de captar as novas formações impostas pelo
admirável mundo novo, o exercício mecânico da busca desse arsenal de novidades
quase sempre está atrelado a uma fácil e cômoda posição estética, onde a
riqueza do guarda-roupa e a atualidade do traje tentam ocultar o envelhecimento
do corpo.
Há alguma coisa nova que justifique o conceito
de pós-modernidade? Ou o que se diz a respeito já foi dito sobre a modernidade?
Não pensando nada de novo, a indigência
intelectual pensa uma nova forma de pensar o pensamento. É possível definir a
pós-modernidade apenas como tal: um maneirismo da modernidade; uma
potencialização de traços na cultura moderna. Deslocaríamos a ênfase da procura
de temas e questões para uma espécie de tautologia ou para um conjunto de
caixas vazias que conteriam outras caixas vazias: o pensamento pensando-se –
redundante – a si mesmo.
Assim florescem, em canteiros de acrílico, as
velhas vanguardas, que ostentam uma aparente revolução estética mas, sob o
arranjo feérico dos significantes, não trazem nenhuma forma revolucionária para
o plano das significações.
O discurso
enfeitado com o qual os caudais da arte pretendem impressionar um público
carente de receber as mesmas idéias e os mesmos conceitos com um novo rótulo
colorido, é um exemplo dessa compreensão da literatura.
Esse tipo de produção artística está a serviço
de um singular mecanismo que permite ao público que rejeita uma determinada
articulação do mundo, responsável pelo seu descontentamento, a reconciliação
com os padrões adversos, mediante uma simples circulação de significantes. O
que quer dizer que a mudança das aparências ajuda a manter o satatus quo.
Rompendo com o significante, não mais preciso
romper com aquilo que ele oculta e recalca: o significado. Compreendida a
partir desses padrões, a arte é uma forma de sublimação, e não de atuação
destinada a modificar o mundo.
A questão dos preconceitos raciais e sexistas
nos dias de hoje constitui um significativo exemplo de como as pessoas preferem
interditar expressões, palavras e formas de dizer, deixando intocado o cerne da
questão: os velhos modos de constituir os valores do mundo. Observe-se que a
palavra “niger” para designar as pessoas da raça negra já foi considerada
ofensiva, utilizando-se a palavra “black” que, contraditoriamente, teria a
mesma raiz da palavra “branco”, em português.
Aqui tocamos num ponto crítico: a verdadeira
arte engajada não é aquela que abraça o discurso partidário e funciona segundo
os mecanismo acima descritos, mas aquela capaz de reescrever a consciência do
homem e de rearticular a realidade. Enfim, a arte engajada com o homem é aquela
que se inscreve no espaço de transgressão. Desse modo, a narrativa de Guimarães
Rosa, que era visto pela esquerda escravizada como um escritor reacionário, é
muito mais revolucionária do que os panfletos em forma de romances, escritos
pelos escritores obedientes ao velho Partido Comunista. Que Stalin o tenha à sua
mão direita, lá no colorido e esfuziante céu do Kremlin. Amém!
Não se insiste com a necessária ênfase que a
literatura (bem como a invenção artísica em todas as suas expressões) não é uma
forma de representação da realidade, mas uma forma de conhecimento e construção
da realidade. A maioria dos críticos e historiadores literários continua
tratando da obra de arte em geral, e da literária em particular, como forma de
representação de alguma coisa preexistente.
Vista como mera representação, é evidente que a
arte não teria nenhum compromisso com a sociedade, senão o de retratá-la
fielmente, como querem os politiqueiros e os poderosos.
Contrária ao papel, que já lhe atribuíram, de
enfeitar o mundo com seus recursos graciosos (e do qual a chamada “ciência do
belo” é uma defensora inocente), a arte pretende conquistar para o homem uma
nova dimensão do mundo. Do mesmo modo que a
língua é uma forma de conhecimento – uma forma que não se limita a
reproduzir o mundo para o espírito, mas se caracteriza principalmente por
captar, perceber e construir o mundo dentro de uma dimensão humana – a arte em
geral e a literatura em particular são também formas de conhecimento. Se o conhecimento através da língua está
atrelado e comprometido com as circunstâncias, pela própria condição de
contrato social que funda a língua, a arte pode conhecer o universo sem
respeitar essas limitações.
O papel da língua seria comparável ao atribuído
pela colonização portuguesa às entradas,
no processo de posse do território brasileiro, enquanto o da arte mantém
analogia com a função das bandeiras.
As primeiras, enquanto expedições exploratórias oficiais, limitadas às
fronteiras estabelecidas, e as segundas enquanto investidas clandestinas e
consentidas, necessárias à ordem e ao sistema oficiais; que só assim se ampliam
para servir ao ser humano.
As obras literárias destinadas a uma maior
permanência são aquelas que não se deixam aprisionar pela visão consagrada e
estabelecida das relações predominantes no momento histórico em que são
produzidas; são aquelas que entram em choque com os critérios petreamente
universais, sublinhando a condição parcial, não-absoluta, do fazer humano. Se a
maior parte das instituições sociais se sustenta na conservação dos valores, a
arte encontra sua utilidade no questionamento e na desestabilização destes
valores, sobre os quais se edifica. Aí está a sua função prática e a sua tarefa
política: ir além do provincianismo que se crê universal.
A cultura, como sistema de tensão entre forças
dinâmicas, de um lado, e de estasgnação e repouso, do outro, confere à arte o
privilégio de destruir as suas bases (tanto as bases da cultura, quanto as
bases da própria arte, que se confundem), como mecanismo de construção
estética. Nessa perspectiva, longe de ser a ciência do belo, a estética seria a
ciência que estuda o conhecimento necessário para a reconstrução das relações
do homem com o mundo: a ciência da transgressão.
A arte se constrói a partir da desagregação das
formas estabelecidas, impondo a sua arquitetura imaginária como novo modelo do
real.
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A
Arte como Construção do Real. Artigo sobre a arte enquanto forma de
conhecimento. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 31 mar. 97, p. 7.
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