21/11/2015

Maniqueismo

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

maniqueísmo ou partido

A tradução brasileira de O visconde partido ao meio, de Italo Calvino, lançada o ano passado pela Companhia das Letras, chega até nós quarenta e quatro anos depois do livro ser publicado na Itália. O fato é explicável porque somente há poucos anos o autor alcançou renome internacional e conseqüente audiência no Brasil.
Apesar de até então esquecido ou desconhecido do público brasileiro, este pequeno romance é um dos melhores livros do autor. Ele tem lugar de destaque por um fato singular: é uma obra comprometida com o prazer do leitor. O intuito de divertir prepondera sobre o ético, o social etc., sem abrir mão destes outros objetivos porventura presentes numa obra de arte. A questão é velha: muitos escritores e alguns leitores sisudos insistem no caráter pragmático da arte, como se ele tivesse que cumprir uma função social altamente elevada. Como se o artista devesse se investir nas funções de pontífice e proclamar novas verdades.
Todo artista tende a supervalorizar a natureza da sua própria arte, como se ela fosse a atividade mais importante já concebida pelo homem, e alguns insistem nesta paranóia de grandeza a ponto de se julgarem responsáveis pela condução ética de todo o povo.
Alguns artistas foram mais humildes, como Gil Vicente, por exemplo, no caso na cultura de língua portuguesa. Vivendo o momento de inquietação intelectual que construiu o renascimento, ou a transição do mundo medieval para o mundo moderno, ele sabia que o seu teatro deveria primeiramente agradar o público, divertir a nobreza. Conseguido este objetivo, ele poderia tentar vôos mais audaciosos: ridendo castigat mores. A ambição de corrigir os costumes estava disfarçada na alegria do riso. Daí a sua eficácia.
A propósito deste livro, O visconde partido ao meio, Calvino escreveu um profissão de fé que convém repetir e lembrar sempre que possível: “Penso que o divertimento seja uma coisa séria.”
A partir das lutas entre cristãos e turcos, no século XVII, o autor constrói a trama do livro, centrada na figura de um nobre senhor de terras e gentes. O visconde Medrado di Terralba, improvisado cavaleiro, arremete contra os forças inimigas e quase é estilhaçado por um tiro de canhão. Uma parte do visconde é recolhida ao hospital da tropa e, miraculosamente, consegue sobreviver com um só braço, uma só perna, meia boca e um único olho. Os médicos, todos contentes: que maravilha de caso.
Para os moradores de Terralba, a mutilação do senhor foi um fato desastroso. O lado ruim do visconde é que ficou vivo e voltou aos seus domínios. O visconde partido ao meio cavalgava espalhando pânico e terror pelos vales e penhascos, até que os camponeses se viram confusos com as contradições de Medrado. Ora se divertia com crueldades, ora fazia o bem de modo surpreendentemente generoso. Seria a outra parte do visconde – a boa – que estava de volta?
As peripécias dos dois senhores de Terralba dividem os moradores do lugar e divertem o leitor. Divertem, a partir de considerações éticas, políticas, práticas, que necessariamente precedem o riso provocado. Se a nossa cultura, a cultura cristã, se sustenta numa forma de maniqueísmo onde só um lado do homem prevalece, na história contada por Calvino o cavaleiro cristão volta da guerra aos turcos literalmente partido ao meio. Com o artifício, nosso mundo fragmentário é exposto de forma exemplar. Nossa crença em que o homem é a imagem e semelhança de deus, com suas virtudes e qualidades, termina construindo uma outra espécie de homens, onde cabem os vícios e defeitos; são os maus, à semelhança do diabo. Assim o homem desconhece a si mesmo e, para ter paz, deixa de ver a face obscura do seu ser. Ignorada, ela é mais livre para fluir.
Nossa cultura religiosa e moral divide os homens e os demiurgos em divinos e diabólicos, em bons e maus, enquanto a natureza nos faz a partir do conflito de forças opostas. É deste conflito e da consciência social que nasce a escolha, a fixação em uma das margens do rio. A fábula de Calvino cria uma bipartição mais insólita ainda do que esta, assegurando a dicotomia maniqueísta através da divisão física do personagem e expondo aos nossos olhos as insólitas construções a que chamamos realidade.

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Maniqueísmo ou partido. Artigo crítico sobre o livro O visconde partido ao meio, de Italo Calvino. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 24 fev. 97, p. 7.

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