22/11/2015

mundo em fragmentos

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Um mundo em fragmentos

            A obra de Hermilo Borba Filho, escritor pernambucano dos mais conceituados, é pouco conhecida fora do seu estado natal, embora o nome do autor seja bastante respeitado. Companheiro de aventuras intelectuais de Ariano Suassuna, Hermilo é responsável pelo trabalho coletivo de construção de uma dramaturgia regional e, principalmente, de uma consciência estética comprometida com a cultura popular. O movimento Armorial — com resultados criativos na literatura, na música e em outras artes — está intimamente afinado com o pensamento artístico de Hermilo.
            Estes fatos levaram o nome do autor a merecer consideração, tanto entre seus pares, quanto junto a um pequeno público. Mas sua obra continua de difícil acesso, já que alguns livros circularam quase que somente em Pernambuco. Em boa hora a Mercado Aberto, de Porto Alegre, resolveu reeditar alguns romances deste autor. Inicialmente lançou Margem das lembranças e, em seguida, A porteira do mundo, ambos em segunda edição.
           
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            A porteira do mundo é um romance que entrelaça fatos biográficos e memória com a vida política do país, a partir dos seus reflexos no Recife. O Estado Novo, as restrições à liberdade, a Segunda Guerra Mundial com grupamentos de soldados americanos sediados em Pernambuco, servem de fundo à história pessoal do autor reescrita como ficção. Ou associada a fatos ficcionais. Hermilo junta memória e ficção neste romance, entrelaçando com fatos imaginários fatos da sua vida e da sua geração. O Teatro do Estudante de Pernambuco e o Teatro Popular do Nordeste, para quem conhece a história destes importan­tes movimentos artísticos, estão presentes nas peripécias do romance e do seu protago­nista.
            O título do livro nos remete, plurivocamente, ao abrir-se de situações e especialmente às designações populares para as partes do corpo feminino. No interior de cidades da Bahia, o útero é chamado de “a dona do corpo” e, em situações de parto, a porteira do corpo abre o mundo para a criança.
            O leitor lê A porteira do mundo com um pé no mundo real e outro no imaginário. Como se estivesse sempre indo e voltando pela mesma porteira. A narrativa de Hermilo é de um escritor que sabe buscar sua expressão com propriedade, mas o uso alegórico da linguagem nem sempre é bem resolvido.
            Ao passar da narrativa comprometida com o realismo social, que a vida política do narrador impõe, para a narrativa alegórica com uma intencional busca do fantástico, o texto parece menos convincente. Alguns narradores habitam naturalmente o fantástico, outros passam para esta categoria de estranhamento com um certo esforço, com sensível prejuízo ao fluxo narrativo.
            Se um Gabriel García Márquez caminha naturalmente, pisando os caminhos cruzados do fantástico ou do maravilhoso com a realidade mais comezinha, o mesmo não ocorre com alguns escritores brasileiros que se aventuram por esta importante vertente da narrativa do nosso continente.
            Parágrafos extensos, ocupando, às vezes, algumas páginas estão dispersos nos capítulos do livro, criando um pouco de monotonia. Mas, em seguida, a agilidade da narrativa de Hermilo Borba Filho segura o leitor para não soltá-lo mais. Alguns episódios fragmentários que constituem a arquitetura da obra são especialmente divertidos. Uns pela natureza das situações narradas, outros claramente pelo modo de narrar. É aí que mais nitidamente se conhece o escritor maduro e senhor do seu ofício.
            Em muitos escritores os bons momentos de leitura vêm como se por acaso, ao sabor dos fatos relatados, em outros, estes momentos são construídos com a consciência de um técnico que estrutura o seu projeto.
            Diferentemente das atividades exatas, a arte surge tanto do saber fazer, da técnica mais apurada, ou do artesanato, quanto de inexplicáveis clarões de consciência, por entre o obscuro caminho inconsciente. Assim, um iniciante consegue escrever um bom livro, mesmo que lhe falte o domínio da arte literária. É o que alguns chamam de talento artístico, de sensibilidade. Leitura de relâmpago cifrado que decifrado, nada existe, conforme o sentido que aqui se destorce das palavras de Drummond. Mas escritores como Hermilo Borba Filho são oficiais do seu ofício. O saber fazer e a imaginação se conjugam para passar do artesanato à arte. Do fazer bem feito à imaginação luminosa.

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Um mundo em fragmentos. Artigo crítico sobre o livro A porteira do mundo, de Hermilo Borba Filho. Romance. Porto Alegre, Mercado Aberto. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 8 set. 97, p. 7.

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