22/11/2015

samuel johnson

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Samuel Johnson: crítica e ficção

            A História de Rasselas, Príncipe da Abissínia é uma novela ou, mais rigorosamente, um narrativa de fundo moral, do crítico e poeta inglês do século XVIII Samuel Johnson, publicada no Brasil pela Imago. Escrita em circunstâncias bastante especiais, a obra foi concebida e entregue ao editor em apenas uma semana, com o objetivo de obter recursos para pagar os funerais da mãe do autor.
            Apesar da insólita gênese, o livro vem merecendo tanto novas reedições quanto a atenção dos leitores. Para isso contribuem as reflexões moralizantes de Johnson, associadas à curiosidade européia pela vida e pelo pensamento do oriente. Escrita no chamado século das luzes, A História de Rasselas, Príncipe da Abissínia traz muito do gosto da prosa doutrinária do século anterior. Sendo essencialmente crítico, Johnson faz sua única incursão pela prosa de ficção mesclando um enredo simples com diálogos e discussões destinados à elevação e ao entretenimento do leitor.
            O início da narrativa ainda traz um certo ritmo e a criação de situações que indicam se tratar de um romance ou de uma novela, mas Johnson logo se satisfaz com as conversas instigantes de personagens inteligentes e cultos, frustrando assim o desenvolvimento da trama apenas esboçada. O nosso crítico não consegue contar uma história cheia de vida, embora escreva um livro capaz de ser lido com interesse. A trama esboçada é muito simples e, sem o desdobramento em peripécias ou motivos outros, termina sendo pobre para uma novela. Daria, no máximo, para um conto, que contém apenas um núcleo temático.
Depois de encontrar um gancho ficcional para introduzir suas discussão, Johnson se deu por satisfeito. A história se resume à inquietação do príncipe Rasselas, que vive num vale isolado e seguro, destinado a servir de morada aos filhos dos reis. Protegidos das lutas e misérias do mundo, os príncipes são confinados a uma vida luxuosa e sem problemas, inscientes das guerras, da fome e demais tragédias que atormentam os homens.
            O vale feliz, como era chamado, tinha apenas plantas e animais inofensivos e capazes de tornar a existência mais venturosa naquela região banhada por um lago e protegida por montanhas intransponíveis. Uma espécie de paraíso artificial, as únicas entradas eram uma cachoeira gigantesca, por onde escapavam as águas nascidas no lago (intransponível, portanto), e uma caverna ao pé da montanha.
            Mas como uma vida venturosa e sem incertezas também conduz à infelicidade, Rasselas procura descobrir um meio de fugir do vale feliz e obter a inquieta felicidade de conhecer o mundo. Nós, leitores, compartilhamos com ele o desejo e a expectativa das aventuras que um mundo desconhecido oferece. Mas Johnson confina demasiadamente os seus personagens a aventuras espirituais. Eles são excessivamente castos para se depararem com o turbilhão de acontecimentos do mundo. A exemplo do construtor do vale feliz, o autor também cria um mundo parcial, formado por questionamentos existenciais e reflexões filosóficas cabíveis em conversas amenas.
            Quanto à trama propriamente dita, encontrada pelo nosso autor, ela tem muito pouco de original. Todos conhecemos a história de Buda, um príncipe criado distante do sofrimento do seu povo... Ou de São Francisco de Assis, filho de rico mercador que desconhecia a miséria daqueles que faziam a sua riqueza... A história do Príncipe da Abissínia quase nada acrescenta a estas duas histórias. Se a invenção de Johnson escasseia, sua reflexão reluz.
            É evidente que o ficcionista pode se valer de uma história anterior, mas o seu engenho e a sua arte precisam dar nova feição às velhas faces. Eis a criação.
            Quando o Príncipe Rasselas consegue escapar do vale feliz e começa a percorrer o mundo, somos nós, leitores, que nos sentimos prisioneiros de um mundo limitado, urdido pelo autor. Nada de emoções fortes nem de acontecimentos que denunciem a degradação do homem. Assim como os personagens, estamos protegidos pela prosa edificante de Samuel Johnson.
            Mas a arte da ficção não conhece tais limites e caminha pelos insondáveis precipícios da alma, o que faz a sua riqueza e permite a sua revelação de fruto proibido. Por isso é que esta narrativa de Samuel Johnson se afigura como uma novela interrompida.
            Se um romance, um conto ou uma novela precisam de uma história cheia de aventuras, a viagem intelectual satisfaz a muitos leitores. Assim é que a literatura abandona as peripécias contadas ao Sultão por Scherazade, como única forma de se manter viva, para abrigar no bojo da trama as reflexões conceituais e as inquietações que constituíam a matéria da lírica. A tensão de Scherazade para manter a sua vida, através de peripécias e histórias bem contadas, é uma perfeita metáfora da tensão da narrativa ficcional para se manter viva.
            Nascidos do gênero épico, o conto, a novela e o romance queriam desfraldar os acontecimentos, enquanto o poema continha as indagações da lírica. Hoje, pouco se lê poesia, e estas indagações do espírito migram para a narrativa, que narra menos do que reflete.
            O gancho ficcional de uma história apenas esboçada não assegura ao texto um passaporte para transpor os limites da doutrina e alcançar as terras do sem fim da criação. Os textos de Platão também se valem do mesmo artifício — e continuamos diante de um filosófo.
            Com Johnson, estamos diante do crítico e do poeta. O hábito do monge aparece na sua prosa de ficção. Aí o ponto fraco da sua novela. Muitos pensadores e críticos são demasiadamente presos à razão e à reflexão para conseguirem mergulhar por inteiro no desatino da criação — “leitura de relâmpago cifrado, que decifrado, nada mais existe”, conforme os versos de Drummond.

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Samuel Johnson: crítica e ficção. Artigo crítico sobre o livro A história de Rasselas, príncipe da Abissínia,  de Samuel Johnson. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 12 jan. 98, p. 7.


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Correspondências para esta coluna:
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