Samuel Johnson: crítica e ficção
A História de Rasselas, Príncipe da
Abissínia é uma novela ou, mais rigorosamente, um narrativa de fundo moral,
do crítico e poeta inglês do século XVIII Samuel Johnson, publicada no Brasil
pela Imago. Escrita em circunstâncias bastante especiais, a obra foi concebida
e entregue ao editor em apenas uma semana, com o objetivo de obter recursos para
pagar os funerais da mãe do autor.
Apesar
da insólita gênese, o livro vem merecendo tanto novas reedições quanto a
atenção dos leitores. Para isso contribuem as reflexões moralizantes de
Johnson, associadas à curiosidade européia pela vida e pelo pensamento do
oriente. Escrita no chamado século das luzes, A História de Rasselas, Príncipe da Abissínia traz muito do gosto
da prosa doutrinária do século anterior. Sendo essencialmente crítico, Johnson
faz sua única incursão pela prosa de ficção mesclando um enredo simples com
diálogos e discussões destinados à elevação e ao entretenimento do leitor.
O
início da narrativa ainda traz um certo ritmo e a criação de situações que
indicam se tratar de um romance ou de uma novela, mas Johnson logo se satisfaz
com as conversas instigantes de personagens inteligentes e cultos, frustrando
assim o desenvolvimento da trama apenas esboçada. O nosso crítico não consegue
contar uma história cheia de vida, embora escreva um livro capaz de ser lido
com interesse. A trama esboçada é muito simples e, sem o desdobramento em
peripécias ou motivos outros, termina sendo pobre para uma novela. Daria, no
máximo, para um conto, que contém apenas um núcleo temático.
Depois de encontrar um
gancho ficcional para introduzir suas discussão, Johnson se deu por satisfeito.
A história se resume à inquietação do príncipe Rasselas, que vive num vale
isolado e seguro, destinado a servir de morada aos filhos dos reis. Protegidos
das lutas e misérias do mundo, os príncipes são confinados a uma vida luxuosa e
sem problemas, inscientes das guerras, da fome e demais tragédias que
atormentam os homens.
O
vale feliz, como era chamado, tinha apenas plantas e animais inofensivos e
capazes de tornar a existência mais venturosa naquela região banhada por um
lago e protegida por montanhas intransponíveis. Uma espécie de paraíso
artificial, as únicas entradas eram uma cachoeira gigantesca, por onde
escapavam as águas nascidas no lago (intransponível, portanto), e uma caverna
ao pé da montanha.
Mas
como uma vida venturosa e sem incertezas também conduz à infelicidade, Rasselas
procura descobrir um meio de fugir do vale feliz e obter a inquieta felicidade
de conhecer o mundo. Nós, leitores, compartilhamos com ele o desejo e a
expectativa das aventuras que um mundo desconhecido oferece. Mas Johnson
confina demasiadamente os seus personagens a aventuras espirituais. Eles são
excessivamente castos para se depararem com o turbilhão de acontecimentos do
mundo. A exemplo do construtor do vale feliz, o autor também cria um mundo
parcial, formado por questionamentos existenciais e reflexões filosóficas
cabíveis em conversas amenas.
Quanto
à trama propriamente dita, encontrada pelo nosso autor, ela tem muito pouco de
original. Todos conhecemos a história de Buda, um príncipe criado distante do
sofrimento do seu povo... Ou de São Francisco de Assis, filho de rico mercador
que desconhecia a miséria daqueles que faziam a sua riqueza... A história do
Príncipe da Abissínia quase nada acrescenta a estas duas histórias. Se a
invenção de Johnson escasseia, sua reflexão reluz.
É
evidente que o ficcionista pode se valer de uma história anterior, mas o seu
engenho e a sua arte precisam dar nova feição às velhas faces. Eis a criação.
Quando
o Príncipe Rasselas consegue escapar do vale feliz e começa a percorrer o
mundo, somos nós, leitores, que nos sentimos prisioneiros de um mundo limitado,
urdido pelo autor. Nada de emoções fortes nem de acontecimentos que denunciem a
degradação do homem. Assim como os personagens, estamos protegidos pela prosa
edificante de Samuel Johnson.
Mas
a arte da ficção não conhece tais limites e caminha pelos insondáveis
precipícios da alma, o que faz a sua riqueza e permite a sua revelação de fruto
proibido. Por isso é que esta narrativa de Samuel Johnson se afigura como uma
novela interrompida.
Se
um romance, um conto ou uma novela precisam de uma história cheia de aventuras,
a viagem intelectual satisfaz a muitos leitores. Assim é que a literatura
abandona as peripécias contadas ao Sultão por Scherazade, como única forma de
se manter viva, para abrigar no bojo da trama as reflexões conceituais e as
inquietações que constituíam a matéria da lírica. A tensão de Scherazade para
manter a sua vida, através de peripécias e histórias bem contadas, é uma
perfeita metáfora da tensão da narrativa ficcional para se manter viva.
Nascidos
do gênero épico, o conto, a novela e o romance queriam desfraldar os
acontecimentos, enquanto o poema continha as indagações da lírica. Hoje, pouco
se lê poesia, e estas indagações do espírito migram para a narrativa, que narra
menos do que reflete.
O
gancho ficcional de uma história apenas esboçada não assegura ao texto um
passaporte para transpor os limites da doutrina e alcançar as terras do sem fim
da criação. Os textos de Platão também se valem do mesmo artifício — e
continuamos diante de um filosófo.
Com
Johnson, estamos diante do crítico e do poeta. O hábito do monge aparece na sua
prosa de ficção. Aí o ponto fraco da sua novela. Muitos pensadores e críticos
são demasiadamente presos à razão e à reflexão para conseguirem mergulhar por
inteiro no desatino da criação — “leitura de relâmpago cifrado, que decifrado,
nada mais existe”, conforme os versos de Drummond.
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Samuel Johnson: crítica
e ficção. Artigo crítico sobre o livro A
história de Rasselas, príncipe da Abissínia, de Samuel Johnson. Coluna “Leitura Crítica”
do jornal A Tarde, Salvador, 12 jan.
98, p. 7.
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Correspondências para
esta coluna:
R. Alberto Pondé,
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