A
Felicidade roubada
Como o processo de conhecimento humano é seletivo, todo
indivíduo não somente escolhe os objetos da sua afeição, como também submete as
coisas acolhidas a um processo de classificação. Cada objeto novo é inserido
numa classe, ou numa categoria de outros objetos tidos como similares.
Naturalmente, os conceitos previamente formados e aplicáveis
à classe são transpostos para o objeto novo. Com isso, quero dizer que o nosso
processo de conhecimento parte de pressupostos, de conceitos prévios, ou
melhor, de preconceitos.
Não fosse assim, nosso processo de orientação no mundo seria
tão aberto e ao mesmo tempo tão ingênuo como o da criança. Não disporíamos de
direções e escolhas gerais que orientam, otimizam e dão coerência às atitudes
do adulto.
Reconheço, portanto, que nosso preconceitos de estimação são
saudáveis e necessários. Mas neste processo de eficiência e pragmatismo,
corremos o risco de ver consolidados os mecanismos de orientação no mundo, de
tal modo que eles se tornem impermeáveis a tudo aquilo que anteriormente não
tenhamos visto.
É o que ocorre com o intelectual, com leitor. Seu processo
de leitura ou de escolha de obras tenta se aproximar do cânone, do estabelecido, como referência essencial. Existem obras e
autores que integram o cânone constituído pela crítica, funcionando como pontos
seguros de ancoragem.
Deste modo, preferimos ler e admirar -- antes mesmo de lidos
-- os textos mais próximos desta escolha. Mas, às vezes, nos deparamos com
autores e obras que fogem ao cânone, que permanecem no limbo ou no purgatório
da crítica mais séria e eficiente: por um cochilo do vigilante sensor
intelectual que alimentamos dentro de nós, lemos e até gostamos de obras e
autores que não devem ser lidos nem gostados.
São os best-sellers da mídia e da indústria cultural, como o
romance de Régine Deforges, O diário roubado,
publicado pela Record. Deforges é uma mistura de escritora, pintora e cineasta,
cujo trabalho dá conta das suas preferências pessoais e de seus conflitos. Para
escrever seus livros, como é o caso deste O
diário roubado, ela se vale de uma arma eficiente: a escrita jornalística.
De uma clareza capaz de envolver qualquer tipo de leitor, o texto de Régine
Deforges mais lembra uma reportagem ou uma grande notícia narrada ao público.
Raríssimas são as vezes em que ela se vale de uma metáfora ou de qualquer outra
figura capaz de fazer o leitor sentir a presença do texto intermediando a
história. É como se a história tivesse se passando diante dos nossos olhos que
o realismo ingênuo de Deforges se processa.
Além desta linguagem denotativa, pragmática e objetiva, é
evidente que ela tem algo mais: uma boa história para contar. Boas histórias
sempre fizeram o encanto de milhares de pessoas, sejam elas inteligentes ou
pouco aptas a pensar.
O livro mostra a fragilidade de uma menina de quinze anos,
diante da hostilidade das pessoas de sua cidadezinha. Léone, a personagem
central, não entende como o seu amor por uma outra garota pode provocar a ira
de tanta gente. É o que acontece quando o seu diário cai nas mãos de um rapaz
com claras tendências de inquisidor. Léone é humilhada publicamente, sem contar
com ninguém para defendê-la. Diante do escândalo, seu pai prefere permanecer
ausente, cuidando dos negócios no colônia africana. Mal vista pelos homens e
abandonada pelo pai, a menina vê os homens como seus constantes inimigos,
acirrando ainda mais o núcleo do seu conflito com a pequena cidade em que vive.
Pelos momentos de força e verdade humana contidos em muitas
passagens da narrativa, O diário roubado
deixa de ser apenas um eloqüente testemunho da crueldade das pessoas contra o
amor entre duas garotas, para ser um documento da solidão do ser humano. Um
documento forte e convincente, porque escrito com o sangue dos próprios
desastres pessoais. Com o mesmo sangue que pode escorrer das feridas de todas
as pessoas.
É este caráter documental -- jornalístico -- de narrativa
verdade que desperta a atenção do grande público para os livros de Régine
Deforges. No romantismo, com a constituição de um gênero de escrita para o público
burguês, as obras de ficção procuravam simular a condição de documento real.
Quando o autor criava uma história intrincada e cheia de peripécias, arranjava
um forma de convencer o leitor de que aqueles fatos aconteceram com alguém e
que ele, o autor, era apenas a pessoa que encontrou o manuscrito contando a
história verdadeira dos protagonistas.
A fórmula é velha, portanto, e o público burguês é o mesmo.
Daí o sucesso deste tipo de narrativa. Se Deforges fosse uma contadora de
histórias que soubesse trabalhar a textura da escrita, estendendo ao meio, isto
é, às palavras, a força da sua mensagem, estaríamos diante de uma artista plena
e senhora do seu ofício. Mas nas prateleiras das estantes há lugar para muitas
escritas...
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A
felicidade roubada. Artigo crítico sobre o livro O diário roubado, de Régine Deforges. Rio de Janeiro, Record, 1997.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 12 mai. 97, p. 7.
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