A marcha do extermínio
Um menino judeu tornou-se partisan
na Ucrânia. De guerrilheiro comunista, fez-se treinador militar de grupos
sionistas de estrema direita. Seguindo o exemplo do pai, abraçou a causa
nascente de fundação de um estado judeu. Pela sua formação ideológica, admirava
o Hoshomer Hatzair, movimento sionista juvenil socialista. Sobrevivente de
guerra, tornou-se brasileiro, empresário, autor de artigos sobre economia e
presidente de banco. Por mais de cinqüenta anos sua boca emudeceu sobre o que
viu e viveu.
Mulheres e homens, além de crianças e velhos, que mal podiam andar,
iniciaram uma marcha forçada, em junho de 1941. Uma serpente humana de mais de
três quilômetros ia aos poucos se desfazendo pelos caminhos. Aqueles que não
conseguiam acompanhar a marcha eram fuzilados.
Ao serem expulsos de suas casas, foram avisados que caminhariam por uma
semana até alcançar o destino. Mas sempre que chegavam aos arredores de uma
cidade eram forçados a voltar, ou a marchar em nova direção. Além da fome e da
sede padeciam a alucinante condição de joguetes. Mandados de um lado para
outro, vagavam entre a morte e o desespero. Durante quatro meses de alucinações
ou de teimosia, farrapos de roupas e de criaturas deixaram pedaços pelas
estradas.
O menino que conseguiu sobreviver à marcha e vir ao encontro dos seus
parentes no Brasil, venceu o silêncio e conseguiu contar a vivência traumática
na longa coluna “patrulhada e conduzida
por soldados distribuídos em, vários jipes, portando metralhadoras. Além deles,
havia 200 ou 300 homens, muitos deles nossos conhecidos em Secureni, que
voluntariamente tinham-se juntado ao exército nazista. Levavam armas e
chicotes, que brandiam e usavam com presteza para estimular a marcha contínua
da coluna. O calor já era insuportável, mas não tínhamos alternativa senão
andar, andar sempre, andar sem parar.”
Episódios de brutalidade e intolerância racial que exterminaram seis
milhões de judeus foram trazidos à tona pelos sobreviventes e seus familiares.
A história e a literatura, o teatro e o cinema registraram momentos dramáticos,
mas, de repente, emergem das sombras fatos desconhecidos e inimagináveis. Além
dos pelotões de fuzilamento, das câmaras de gás, das valas mortuárias cavadas
pelas próprias vítimas, os nazistas utilizaram um outro método de extermínio: a
marcha forçada por dias, semanas, meses, até o aniquilamento total.
O livro
de Michael Stivelman, A marcha,
lançado em março pela Nova Fronteira, desponta como um testemunho surpreendente
e capaz de despertar a solidariedade de milhares de leitores. Judeus e não
judeus. Nestas páginas emocionantes, narradas com clareza e minuciosa precisão
de quem traz consigo os acontecimentos ainda vivos, são expostas as misérias e
as grandezas da humanidade. É o ser humano, para além da nacionalidade ou da
raça, que se constitui protagonista do livro.
O
vilão é o ódio racial, a falta de solidariedade. Michael Stivelman não escreveu
estas duzentas e poucas páginas para destilar ressentimentos, nem para dividir
os homens em raças e credos. Sue intuito é registar a existência de homens que
sabem odiar e homens quer sabem amar. Apesar da tragédia que destruiu parte da
sua família, o menino, órfão de pai, responsável pela mãe doente, conseguiu
identificar a bondade e a grandeza do ser humano.
Por
mais de uma vez, o pequeno Michael e sua mãe foram socorridos por desconhecidos
de outras terras, outras raças e outras religiões. Cristãos, comunistas, enfim,
seres humanos. O livro A marcha tem o
mérito de representar o testemunho de um judeu submetido ao julgo nazista que,
ao despertar do pesadelo, continua capaz de ver o mundo com olhos claros e limpos.
As humilhações, terrores e misérias não venceram as qualidades de ser humano
trazidas dentro de si.
Quando
as tropas nazistas da Romênia subjugaram a Bessarábia, hoje república da
Maldova, dezenas de comunidades judaicas foram aniquiladas. A riqueza e a
prosperidade de milhares de judeus despertaram o ressentimento dos vizinhos
pobres que, estimulados pelos nazistas, se transformaram em inimigos
impiedosos.
Até
mesmo o melhor amigo de Michael, seu companheiro Alex, exclamou aos berros: ”Judeu sujo! Some já daqui, vá embora, senão
vou matar você! Vocês judeus são piores que cobras venenosas e devem ser
exterminados. Viva o nosso grande líder Hitler! Heil Hitler!”
No fim
da guerra, as tropas soviéticas retomam o controle da região. Muitos judeus
ocupavam postos de comando no exército vermelho e Michael pôde, finalmente, se
vingar de Alex. O pai do seu ex-amigo, engajado ao exército nazista, foi preso
pelos soviéticos. É nesta passagem que se dá a redenção do menino Michel, ao
abrir mão da vingança sobre o pai de Alex.
Seu
gesto é possível graças ao exemplo de um personagem admirável, talvez a figura
mais forte e marcante que salta das páginas do livro: o major Volódia
Stivelman, comissário chefe do serviço de inteligência da URSS.
E o
leitor se pergunta: Como um soldado investido de funções policialescas, em
plena guerra, manteve intocados seus sentimentos de justiça e de respeito ao
outro? O poder não alterou sua grandeza humana. Os inimigos mataram seus
filhos, mulher, parentes; mas Volódia não se deixou dominar pelo ódio. Ele foi
o mestre e pai afetivo do menino órfão. Ele é também a personagem cuja voz ecoa
nos melhores momentos do narrador de A
marcha.
O
exemplo da personagem impõe a diretriz ao pensamento que dá sustentação ao
livro. Daí a sua importância, o seu lugar de documento humano que ultrapassa as
circunstâncias pessoais de Michael Stivelman e se inscreve como advertência
contra o ódio e a discriminação.
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A marcha do extermínio.
Artigo crítico sobre o livro A marcha,
de Michael Stivelman. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 6 abr. 98, p. 7.