23/11/2015

conversa de chifre

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Conversa de chifre enroscado

            Houve tempo em que as aventuras do país grapiúna eram escritas à lâmina de fação na mata virgem. As enxadas nas roças de cacau traçavam o destino de um cultura. A riqueza parecia não ter fim, até que a bruxa varreu os ventos da pujança.
            Destruída a economia cacaueira, abandonadas as léguas da promissão, as antigas aventuras vividas precisam continuar vivas. É assim que surge uma nova vertente literária renovando o filão aberto na literatura brasileira por Jorge Amado e Adonias Filho. Eles foram os narradores da construção de um mundo novo, do desbravamento das terras do sem fim. Mas este mundo teima em viver, através da escrita de homens e mulheres que têm o umbigo enterrado numa cova de cacau.
            Euclides Neto é um mateiro que aprendeu os caminhos do mundo pelos caminhos da roça. Estudou na cidade grande, viajou civilizações, percorreu os compêndios das leis, mas voltou logo para sua gente, onde saberes ancestrais o aguardavam. É neste espaço, ou melhor, ampliando este espaço, que ele constrói a sua obra de escritor. Os romances Berimbau, Vida Morta, Os Magros, O Patrão, Comercinho do Poço Fundo, Os Genros, Machombongo e A Enxada (são oito) dão testemunho das muitas coisas que ele tem para contar.
            Como o seu texto de contador de histórias é uma roça de cacaueiros resistente às vassouras-de-bruxa da crítica, ele pode ser abordado pela crítica; pode ter seus defeitos postos à luz da razão, porque as boas qualidades da escrita respondem aos eventuais defeitos.
            Muito se fala da humildade e da modéstia deste escritor. Numa província de escreventes empenachados, Euclides Neto não desdenha de uma opinião contrária, mas procura descobrir nela um desafio para novos vôos.
            Quando, numa destas leituras críticas, procurei levantar aspectos discutíveis no processo de cons­trução do romance Os Magros (ver o artigo “Vozes sufocadas”, incluído no livro Triste Bahia) em vez de sentir-se ofendido, Euclides Neto estabeleceu um diálogo criativo e respondeu à provocação com a fábula redentora de A Enxada. Neste romance, carregado de otimismo, ele procurou compensar o pessimismo demasiadamente esquemático de Os Magros.
            Como a questão dá panos para manga, incluí o estudo crítico da obra do autor num projeto de pesquisa desenvolvido nos Cursos de Pós-Graduação em Letras da UFBA. O primeiro trabalho de vulto sobre seus romances vem sendo realizado pelo jornalista Elieser Cesar, a quem propus tomar Os Magros como eixo da sua dissertação de mestrado.
            Mas peço licença ao leitor para hoje dar notícia de um outro Euclides Neto: o lexicógrafo. Num livrinho útil e pioneiro, ele reúne palavras e expressões correntes na região sul da Bahia. Como sabe que a televisão, com o prestígio da linguagem enlatada, mais dia menos dia, empobrecerá a língua falada no Brasil, quer deixar em letra impressa os inventos e usos da gente da terra. De um lado, as novelas e programas de TV impõem a linguagem dos estúdios aos falantes das mais diversas realidades. Do outro lado, as rádios FM tomam por locutor um papagaio de fala pasteurizada, desprovido de qualquer marca regional. No milênio que está próximo, o que restará da língua e da cultura tão ricas e diversificadas destes brasis? Em lugar do português surgirá, talvez, o televisês, ou o comuniquês; o dialeto predador da midia  – o exterminador do futuro.
            Era preciso, portanto, que alguém iniciasse, no país do cacau, a tarefa de preservar o que hoje está virando peça de museu: o jeito, a fala da gente. Não se espante: o que você acabou de ouvir da boca do tabaréu, do homem da terra, já é coisa do passado, conversa de cifre enroscado. Na rede navega a nova linguagem.
Dicionareco das roças de cacau e arredores é o título do trabalho de sondagem, publicado pelo Editus, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz (que, com todo respeito à Santa Cruz, bem poderia se chamar Universidade Estadual Grapiúna).
Como o artista abre caminhos e antecipa os movimentos da tropa, sem ser especialista, Euclides Neto está dando de lambugem (ver o Dicionareco) aos professores de lingüística do português da UESC o chute inicial de possíveis trabalhos acadêmicos. Daqui a vinte, trinta, cinqüenta anos, pesquisadores do dialeto grapiúna tomarão este livrinho como vade mecum, como testemunho autorizado de uma época.
           Por enquanto, o Dicionareco das roças de cacau e arredores  serve de guia para a leitura dos escritores da região, especialmente para nós, admiradores da escrita mateira, de-picado-a-largo de seo Ocride.

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Conversa de chifre enroscado. Artigo crítico sobre o livro Dicionareco das roças de cacau e arredores, de Euclides Neto. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 2 fev. 98, p. 7.

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Correspondências para esta coluna:
R. Alberto Pondé, 147/103. 40.280-630, Salvador, Bahia