De terras e lágrimas
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Um
menino
que
viveu
os
primeiros
momentos
do avanço
da besta alemã sobre o mundo,
mais
de meio século depois
contou a história vivida
e
gravada
no próprio corpo.
no próprio corpo.
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Um menino judeu, nascido
dias antes da invasão da Bélgica pelas tropas alemães, testemunha, sem
compreender os fatos ao seu redor, que culminariam na guerra de extermínio de
um povo e numa das mais dramáticas experiências vividas pela humanidade.
Embora a sua história
seja igual a de milhares de pessoas que viveram as mesmas conseqüências do ódio
e da intolerância, o livro resultante desta experiência comum a toda uma raça
inscreve-se como documento único e inconfundível.
O seu autor, A. S.
Scheinowitz, vive há muitos anos na Bahia, onde constituiu família e trabalha
como sociólogo, empenhado no estudo e na compreensão da constituição
urbanística da mais antiga cidade brasileira. Tendo completado sua formação
universitária na Seção de Ciências Econômicas e Sociais da Escola de Altos
Estudos, é doutor em sociologia pela Universidade de Paris.
Pertencendo a um povo
que, mesmo na diáspora manteve a sua identidade, Scheinowitz aliou o método do
pesquisador acadêmico às recordações da infância, transformando o livro que, a
princípio é a história de uma família, numa tentativa de compreensão dos fatos
que envolveram a II Guerra Mundial.
Ao se valer da memória e
da reconstituição de tudo aquilo que constitui a complexidade deste gênero de
narrativa, a autobiografia, o autor reconhece que em certos momentos é o homem
que fala e, em outros, é o menino que ensina e dita a escrita ao adulto.
A escrita memorialística
sempre obedeceu a este processo dialógico, percorrendo os limites que separam a
literatura da história. Mas A. S. Scheinowitz não se propôs a fazer
autobiografia. Como cientista social e pesquisador habituado a rastrear pistas
e documentos, ele partiu das sugestões autobiográficas para a realização de uma
trabalho de investigação e procura de explicação para os fatos.
Deste modo, os
acontecimentos particulares, gravados na lembrança do menino, apesar da forte
carga emotiva detonada por cada um deles, foram tomados como objeto de estudo.
Por longos e pacientes anos, o investigador percorreu cidades da Europa,
refazendo o roteiro de uma família. Relatos, livros, registros, depoimentos de
sobreviventes, tudo que servisse de testemunho foi pacientemente reunido e
selecionado.
Somente assim, A. S.
Scheinowitz conseguiu passar dos fantasmas pessoais à constatação história dos
acontecimentos. Tudo aquilo que era objeto da memória e das lembranças
familiares foi esquadrinhado, revirado, submetido à luzes do método de
identificação ditado pela pesquisa.
Em certos momentos ele
chega a minúcias e detalhes que, pela particularidade, escapam à ciência e só
se impõem pela interposição da subjetividade. É o que ocorre com a primeira
situação apresentada pelo livro, numa bem oportuna sugestão de narrativa literária.
Embora não pretendesse fazer literatura, o material
ditado pela memória, impôs certos recursos perpassados pela subjetividade que
são estranhados à rigorosa arquitetura do discurso científico.
Uma conhecida canção francesa ou belga, dos anos da
guerra, que ganha atualidade nos nossos dias, introduz o discurso: "Tudo
vai bem, tudo vai muito bem, é preciso que eu vos diga. Tudo vai bem, mas seus
animais de criação morreram, seus bens se perderam, seus parentes se
suicidaram. Fora isso, tudo vai bem".
A ironia da canção, transposta de um momento para outro,
ilustra a ótica das vítimas de guerra. Apesar dos conflitos, o mundo continua;
os que não foram atingidos ostentam o seu alívio e a sua felicidade. As
tragédias particulares de muitos não são suficientes para interromper a irônico
curso da vida: "Tout va très bien madame la marquise, / tout va très bien,
il faut pourtant que je vous dise..."
Embalados pelos sons
desta canção, os personagens referenciais do livro, Max e Lisa, pais do pequeno
Arnold, saem do cinema. Ora, esta cena inicial da narrativa, que lembra um
recurso literário de introdução dos acontecimentos, é, de fato, uma cena real.
E, desde aí, a compulsão investigativa do autor do livro se faz sentir. A
partir de jornais da época, A. S. Scheinowitz identificou até mesmo o filme que
estava passando, quando seus pais viviam um dos últimos momentos de tranquila
ilusão.
Com este episódio é possível dar uma mostra do longo
trabalho de levantamento feito pelo autor. Se até mesmo detalhes pessoais não
foram descuidados, o mesmo critério confere valor às suas conclusões sobre o
papel dos franceses, como bem comportados agentes no cumprimento das tarefas
sujas que lhes foram reservadas pelos nazistas. O capítulo "Os caçadores
são franceses" é o ponto de partida do libelo de Scheinowitz sobre o
envolvimento da França no processo de aniquilamento dos judeus.
Publicado na Bélgica, e ainda inédito em português, o
livro De terre e de larmes, de A. S.
Scheinowitz será lançado às 18:30 de amanhã, no Museu Geológico da Bahia, como
parte dos eventos do XIII Congresso Brasileiro de Professores de Francês.
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De terras e lágrimas.
Artigo crítico sobre o livro De terre e
des armes, de A. S. Scheinowitz. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 3 ago. 98, p. 7.