A força da palavra no livro ou no
jornal
Betty Milan, a romancista de A paixão de Lia, O papagaio e o doutor, ou a ensaísta conhecida por uma meia dúzia
de livros polêmicos, sem esquecer da tradutora e da cronista, registra suas
incursões por um velho gênero jornalístico: a entrevista.
Neste livro ela reúne vinte e uma
entrevistas publicadas de fevereiro de 92 a agosto de 96 na Folha de São Paulo e no Estado, com escritores, filósofos e
psicanalistas de várias partes do mundo.
Já se disse que a matéria
jornalística desaparece no dia da sua publicação. À noite ela já está caduca.
Como Betty Milan não é uma profissional da imprensa, ela realiza as suas
entrevistas sem se prender às regras básicas do jornal: usa tão somente a sua
inteligência. O resultado é um texto que, sem afrontar os objetivos da
cobertura jornalística, inscreve-se como um momento de reflexão, ou melhor: de
diálogo entre interlocutores privilegiados.
Suas entrevistas reclamam, portanto,
serem resgatadas da página de jornal que, no dia seguinte, vai para o lixo.
Elas continuam falando como documento duradouro ou como constelação de idéias
de um momento da história do homem: o nosso tempo; que para alguns deve ser
chamado de modernidade, para outros, de pós-modernidade.
Todos conhecemos a resistência de
alguns intelectuais a concederem entrevistas, alegando que a ligeireza e o foco
da reportagem anulam os pontos essenciais do dito, elegendo como prioridade
aspectos acidentais que, ampliados, transformam o que foi dito no que não foi
dito.
Drummond ou Guimarães Rosa, para
citarmos dois escritores brasileiros, não davam entrevistas. O primeiro, desde
que trocou as funções de chefe de redação de um jornal de esquerda pela de
cronista. O segundo, por considerar que o entrevistador sempre pergunta o
óbvio. Como a pauta propõe um roteiro mais ou menos padronizado, o repórter da
geral, encarregado de entrevistar uma personalidade literária famosa, sai com o
mesmo objetivo do dia a dia: rastrear fatos que sejam notícia. Quase nunca o
repórter não-especializado conhece o pensamento do entrevistado. A urgência da
sua tarefa não permite que ele leia alguns livros de um escritor antes de
entrevistá-lo. Deste modo, pergunta aquilo que os outros já sabem.
Daí a generalização feita por alguns
monstros sagrados, colocando num mesmo patamar a entrevista feita por um
estagiário, por um “foca”, como se dizia nos meus tempos de repórter, e o
diálogo com o jornalista especializado, ou mesmo com o entrevistador free-lancer.
Betty Milan pertence a última
categoria, a do entrevistador free-lancer.
Trata-se de uma intelectual inquieta e bem formada (além de bem informada) que
brinda o leitor de jornal com entrevistas que são diálogos inteligentes e, por
isso mesmo, capazes de extrair o máximo de alguns minutos de conversa.
Otávio Paz, Jacques Derrida, Edouard
Glissant, Michel Serres, Catherine Millot, Alain Didier-Weill, Hélène Cixous,
Atrick Grainville, François Weyergans, Alicia Ortiz, Alain Emmanuel Dreuilhe,
François Giroud, Hector Bianciotti, Françoise Sagan, Michèle Sarde, Jean Dórmesson,
Tajar Ben Jelloun, Alvaro Mutis, Cathalie Sarraute, Dominique Fernandez e
Jean-Claude Carrière encontram em Betty Milan uma interlocutora arguta, sempre
pronta a ouvir o esperado e o inesperado.
Sua entrevista com Derrida é uma
verdadeira “guerra” de cavalheiros (e damas), um xadrez, pela força da palavra.
O filósofo acredita que nada pode ser dito na circunstancialidade do jornal, no
turbilhão dos segundos que reclamam a pressa. É como se ele pensasse de fora do
tempo, sem as imposições do tempo. Submetido à ordem de Cronos seu pensamento
reluta, se rebela e trava; suas palavras se esgotam. A entrevistadora recua,
avança, propõe. Conhecendo as manhas da impotência – e as do poder – ela
desiste, insiste, e por fim registra o entrecortado e vivo diálogo com o
entrevistado.
A questão da mestiçagem, a aids, o
budismo, Marx, a escuta psicanalítica, a literatura, a liberdade são temas
presentes nas entrevistas. Clarice Lispector tem destaque nas falas da romancista
Hélène Cixous, figura de destaque no nouveau
roman, e da psicanalista Antoinette Fouque, uma das criadoras das Éditions
des Femmes.
Na introdução deste livro de escuta,
Betty Milan faz uma verdadeira síntese da metodologia da entrevista, revelando
o sutil expediente de passar daquilo que o entrevistado quer dizer, isto é, do
assunto do seu interesse, àquilo que o entrevistador quer saber. Por fim, ela
estabelece um paralelo opositivo entre a sua estratégia e a do jornalista,
situando a diferença da escritura precisamente no interesse pela palavra do
outro. Em outros termos, na escuta.
É ela quem diz:
– “O mundo repetitivo da mídia só dá
a palavra ao outro para editar invariavelmente da mesma maneira, e é por isso,
contrário ao escritor, que recorre ao verbo precisamente para fazer o mundo
variar.”
Enfim, o livro de Betty Milan é um almanaque de variedades,
onde as idéias e a força da palavra espreitam o leitor.
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A força da palavra no livro ou no jornal. Artigo
crítico sobre o livro A força da palavra,
de Betty Milan. Rio de Janeiro, Record, 1996, 208 p. Coluna “Leitura Crítica”
do jornal A Tarde, Salvador, 4 nov.
96, p. 7.
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