19/11/2015

Poesia do decano

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

A poesia do decano

Bráulio de Abreu, aos noventa e três anos de idade, é o decano dos poetas baianos. Como nos tempos de antanho se dizia que antiguidade é posto, o decanato da poesia é a láurea deste velho remanescente de um dos muitos movimentos e grupos literários que enriqueceram a inquieta Bahia no início do século.
Bráulio de Abreu e Nonato Marques são os dois últimos sobreviventes do grupo responsável pela publicação da revista Samba, surgida em 1928. Declaradamente modernista, mas essencialmente conservadora, com traços parnasianos, a revista trazia no seu primeiro número um editorial de Alves Ribeiro fazendo apologia do modernismo. Como, mesmo assim, o espírito moderno não baixasse nos colaboradores de Samba, o terceiro número, datado de fevereiro de 1929, trazia a proibição de receber poemas em forma de soneto. (!)
Como uma escola literária não se caracteriza apenas através das fôrmas, mas, principalmente, a partir da substância das suas idéias, apesar do título da revista estar em consonância com os vários modernismos regionais surgidos nos fins da década de vinte, o grupo idealizador de Samba continuou embebido nas convicções parnasianas e ornamentais da literatura palavrosa então em voga.
É sintomático o fato de um dos seus destacados integrantes, Nonato Marques, ter abandonado a designação natural que identificava o grupo com a revista, para sugerir a expressão “os poetas da Baixinha”. Assim, aquele que se tornou o responsável pela divulgação e pela fixação histórica da contribuição dos seus companheiros, preferiu uma designação menos comprometida com a inquietação modernista da época.
Era em torno das mesas do “Café Progresso”, na Baixa dos Sapateiros, que se reunia o grupo formado por Elpídio Bastos, Deocleciano Martins, Nonato Marques, Oto Bittencourt Sobrinho, Souza Aguiar, Bráulio de Abreu, Alves Ribeiro, Clodoaldo Milton, Antonio Donatti, Pereira Reis Jr., Egberto Ribeiro, Anfilófio Brito, Queiroz Júnior, Zaluar de Carvalho, Raimundo Penafort, Ângelo Gomes da Costa, Aníbal Rocha e Samuel de Brito Silva (o Guarda 85). Quando o poeta satírico Pinheiro Viegas passou a integrar a confraria, a convite de Nonato Marques, o centro constelar do grupo deslocou-se da figura do Guarda 85 para o irreverente Viegas. Segundo Cid Mascarenhas, em palestra proferida no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Pinheiro Viegas “com seus epigramas venenosos e comentários chistosos, verdadeiras verrinas, foi afastando os componentes da então coesa turma”.
Na mesma época, um outro grupo formava a chamada elite intelectual da cidade. Os jovens Pinto de Aguiar, Hélio Simões, Carvalho Filho e Eurico Alves, com o apoio do crítico Carlos Chiacchio, fundaram a revista Arco & Flexa. Por vinculações sociais e intelectuais, os integrantes deste pequeno núcleo mantinham laços de amizade com Godofredo Filho, Afrânio Coutinho, Eugênio Gomes, Jorge Amado e outros jovens baianos de então.
Os “poetas da Baixinha” continuaram à margem destes bem sucedidos jovens. Como constata Nonato Marques, nenhum deles entrou para a Academia, instituição que funciona como uma espécie de termômetro da elite intelectual.
Bráulio de Abreu só foi notado ocasionalmente. Primeiro, por Arthur de Salles, que, segundo o já citado Cid Mascarenhas, teria lhe dito, após ouvir a declamação de alguns poemas: “A sua obra está à altura da minha”.
Mas foi somente em 1980, quando Antonio Loureiro de Souza, no seu discurso de recepção ao acadêmico Clóvis Lima, leu um soneto de Bráulio de Abreu, que o mundo acadêmico tomou conhecimento da poesia deste velho alfaiate. Renato Berbert de Castro convidou-o para uma das célebres tertúlias da sua casa. Lá, Bráulio leu sonetos para o anfitrião e seus convidados Hélio Simões, Jorge Calmon, Jayme de Sá Menezes, José Silveira, Erthos Albino de Souza, Thales de Azevedo, Carlos Eduardo da Rocha, Luis Henrique Dias Tavares, José Calasans e Loureiro de Souza.
Com a aprovação dos presentes, Berbert de Castro encarregou o professor Loureiro de reunir os poemas de Bráulio de Abreu num livro a ser publicado pelo Conselho Estadual de Cultura. Antonio Loureiro não só organizou o livro como escreveu uma longa introdução. Dezesseis anos depois o trabalho continuava inédito, tendo agora a Fundação João Fernandes da Cunha propiciado a sua publicação.
Alma profana é portanto o livro de estréia deste veterano da poesia baiana, que somente aos 93 anos de idade chega ao público. Bem verdade que ele não é inédito. Aparece em jornais e revistas, em estudos literários e principalmente em antologias como Apóstolos do sonho, onde doze sonetistas como Clóvis Lima, Ivan Americano, João Muniz, Carlos Benjamin Viveiros e Nathan Coutinho comparecem com doze peças cada um; Coletânea de poetas baianos, organizada por Aluísio de Carvalho Filho; Os mais belos sonetos brasileiros etc.
Neste livro, Alma profana, de Bráulio de Abreu está reunida uma parte substancial da sua produção, onde o soneto de inspiração parnasiana deixa, às vezes, escorrer da fôrma o “sentimento do mundo” manifestado pelo decano dos poetas baianos. É precisamente nos instantes em que a versificação é sobrepujada por um halo de vida que a poesia se deixa plasmar em raios de luz.

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A poesia do decano. Artigo crítico sobre o livro Alma profana, de Bráulio de Abreu. Salvador, Fundação João Fernandes da Cunha, 1996, 192 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 11 nov. 96, p. 7.

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