23/11/2015

espelho

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas
O espelho da reflexão

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No livro
Através do espelho
(Cia. das Letras, 1998),
Jostein Gaarder,
autor de O mundo de Sofia,
transforma o tema da morte
numa história
cheia de encantamento.
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Uma menina, deitada no leito de morte, faz uma longa e surpreendente viagem através da vida. Cecília voltou do hospital para a sua casa, mas não pode sair da cama. Está cada vez mais fraca e dorme a maior parte do tempo. Ela pensa em correr lá fora. Ganhar um par de esquis, no Natal, para andar pela neve. Assim que ficar boa.

Ela não sabe que está de câncer e que vai morrer. Às vezes, sente-se nervosa, briga com a mãe que sempre lhe trata com carinho e paciência. Todos da casa são muito atenciosos com Cecília, fazem questão de ficar ao seu lado. Mas, às vezes, ela quer ficar sozinha, porque, na sua solidão, viu um menino muito estranho flutuando no peitoril da janela.

Intrigada, veio a saber que se tratava de um anjo, chamado Ariel. Mas Cecília não acreditou. Ariel se esforçava por convencê-la de que era um anjo, descido do céu. Ele sabia muitas coisas sobre as pessoas, coisas acontecidas há muito tempo com Cecília e com a sua família. Ariel conhecia até as aventuras vividas na última viagem de férias.

Ele podia flutuar, atravessar as paredes e avisar a Cecília que seu pai, daí a pouco, entraria no quarto. Quando a avó, o irmãozinho Lars, ou qualquer outra pessoa chegava, Ariel desaparecia de repente. Por isso Cecília foi admitindo a idéia de que ele era um anjo.
Falava muitas coisas sobre o céu e queria que Cecília lhe explicasse os sentimentos das mulheres, dos homens e das crianças. A menina gostava muito da companhia do novo amiguinho; e quando sua mãe ficava sentada ao lado da cama, às vezes, fingia dormir para que ela saísse e Ariel pudesse aparecer.

Foi graças a ele que Cecília pôde experimentar o par de esquis que, depois de muita insistência, ganhou de presente. À noite, quando todos dormiam e a lua cheia iluminava o monte coberto de neve, em frente à  janela do quarto, Ariel levou Cecília para um passeio. Pegou roupas quentes no armário, calçou-lhe os esquis e carregou a menina, flutuando pela janela.

Finalmente, ela pôde esquiar, correr pelos montes, descer até o rio congelado e, antes que amanhecesse, voltar para a sua cama. Encontrar forças para fazer tudo isto, quando estava doente e muito cansada, parecia um sonho, mas Cecília conversava com o anjo Ariel e, por isso, sabia que estava acordada.

Estas aventuras, vividas às escondidas, como uma fantasia proibida, eram as melhores coisas; e as mais reais vividas por ela, durante a doença. Cecília ia ficando cada vez mais fraca; passava a maior parte do tempo dormindo. Mas, quando acordava e via o pai ou a mãe ao lado da cama, sabia que quando fechava os olhos e fingia que não esta acordada, eles também iam dormir, no quarto ao lado. Era nestas horas que Ariel chegava e conversava com ela.

Cecília guardava um caderno de notas ao lado da cama, sempre à mão; uma espécie de diário, onde anotava um monte de coisas. Depois que conheceu Ariel, as conversas e as coisas que ele contava eram transformadas em anotações. Numa hora em que se sentia mais forte e a mãe saiu do quarto, ela pegou o caderno e anotou o seguinte:

“A cada segundo a natureza sacode a manga do paletó e caem algumas crianças novinhas em folha. Abracadabra! E a cada segundo muitas pessoas desaparecem também. Quando chega a hora, chega a hora, e Cecília tem que ir embora...”

E depois desta frase de sentido estranho ela escreveu ainda:

“Não é a criança que vem ao mundo, mas o mundo que vem para a criança. Nascer é receber de presente o mundo inteiro.”

Nas suas leituras e, depois, nas conversas com Ariel, Cecília descobriu que nós enxergamos o mundo como num espelho. Quando conseguimos polir este espelho e ver também o que há através dele, aparece um novo mundo, aparecem as coisas do outro lado. Ela diz que se pudéssemos polir ainda mais o espelho, de forma a alcançar a transparência absoluta, veríamos muito mais coisas. “Porém, não enxergaríamos mais a nós mesmos”.

A vida e a morte, como espaços opostos e indivisíveis, constituem o tema deste livro de Jostein Gaarder, escritor norueguês que estudou filosofia, teologia e literatura. Durante dez anos, ele foi professor em colégios da sua cidade, até que resolveu escrever um livro fazendo uma síntese da história da filosofia para seus jovens alunos. O sucesso foi imediato, com o livro traduzido para quase meia centena de países e línguas. Nasceu então o escritor de O mundo de Sofia, O dia do Curinga, Através do espelho e alguns outros.

A característica básica da obra de Gaarder, mantida também neste livro, é a de constituir textos escritos para adolescentes que alcançam enorme repercussão junto ao público adulto. A reflexão filosófica e existencial bem fundada, mas expressa numa linguagem coloquial, simples e sobretudo atraente, conquista leitores entre os mais cultos e os menos informados.

Numa síntese, diríamos que Jostein Gaarder é exatamente o inverso dos autores de livros místicos ou de auto ajuda, tipo Dr. Bolsa Família e companhia ilimitada. Enquanto esses dizem o óbvio travestido em ensinamentos profundos, Gaarder procura sondar os espaços da inteligência e da sensibilidade fingindo contar histórias para crianças.

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O espelho da reflexão. Artigo crítico sobre o livro Através do espelho de Jostein Gaarder. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 6 jul. 98, p. 7.