VIAGEM AO INTERIOR
O expansionismo europeu propiciado pelas viagens do século XVI foi uma ameaça para muitas civilizações. Algumas delas, fortes e curadas pela tradição, resistiram aos invasores, outras, mais abertas, foram destruídas. O Japão foi cobiçado pelos navegadores da Europa, tendo, inclusive, os portugueses ocupado um espaço significativo em meio a um povo dividido.
Foi talvez por isso que, no início do século XVII, o Japão fechou suas portas para o mundo, impondo a disciplina férrea da tradição intolerante. Fortalecido, o Estado pôde viver, logo em seguida, uma espécie de Renascimento da sua cultura.
Mesmo sem abolir a importância dos grandes senhores, os Shoguns, e das classes dominantes, mercadores, trabalhadores avulsos, enfim, os homens comuns, modificaram a sociedade, ampliando o poder participativo da população na vida das principais cidades. Edo, Osaka e Kyoto constituem importantes núcleos urbanos, onde as artes ganharam importância, através da literatura, da gravura e do teatro.
É nesta época que o tradicional Kabuki, misto de dança e teatro alcança um nível artístico incomparável. A prosa de caráter erótico seduz cada vez mais os admiradores. As formas populares de expressão conquistam foros de dignidade, especialmente os poemas coletivos, cujas instâncias eram compostas por várias pessoas, numa espécie de diálogo metafórico. É daí que surge o haicai, na sua forma atual de pequeno poema.
Bashô consegue juntar a expressão das coisas grandiosas e as formas populares, então consideradas incompatíveis, resultando daí um gênero poético que seria conhecido no mundo inteiro como a melhor síntese do espírito japonês.
No ocidente, poetas influenciados pelo haicai tornaram-se divulgadores desta forma de poesia japonesa, adaptando-a à tradição dos seus países.
A partir desta vertente, surge Oku, Viajando com Bashô, título do livro-dossiê que Carlos Verçosa reuniu no fim do ano passado e está lançado agora. Com quase seiscentas páginas, o volume é uma espécie de compêndio tropical do haicai, cujo centro é o estudo de Verçosa que trata da “Presença do haikai na poesia brasileira”. Reúne textos de Oldegar Vieira, reconhecido mestre do gênero em nosso país, Otávio Paz, poeta, crítico, grande estudioso e divulgador do haicai, e, naturalmente, de Matsuo Bashô.
Ao publicar seu alentado estudo, que vai da página 323 à 487, Carlos Verçosa quis ainda oferecer ao leitor, num mesmo livro, textos fundamentais para a compreensão do haicai, como os três ensaios de Otávio Paz dedicados ao tema, e o livro que Bashô escreveu durante sua viagem ao interior do Japão, Sendas de Oku.
É esta viagem ao interior do Japão e do homem que serve de título ao livro que agora se publica. Ela teve como peregrino um monge e poeta identificado como o grande referencial da poesia japonesa no ocidente. Como a palavra “Oku” sugere conceitos como “âmago”, “interior” etc., ela ultrapassa a referência geográfica a uma região do Japão ainda hoje considerada misteriosa e emblemática, para sugerir a grande viagem que tem servido de tema recorrente à literatura ocidental.
A ambição de Verçosa de fazer do livro Oku, Viajando com Bashô um vade mecum, ou um guia destinado aos amantes deste gênero de poesia, é que justifica a reunião, ao lado do seu estudo, de textos já publicados em nossa língua. Bem verdade que, inicialmente, o leitor se move com alguma dificuldade pelas páginas do grosso volume, perdido no labirinto dos textos. O fato da bibliografia dos diversos estudos – ou dos diversos pequenos livros que constituem o compêndio – ser reunida no fim do volume concorre para a dificuldade. Cada parte do volume poderia ser fechada com sua própria bibliografia, facilitando o trabalho do leitor. Por outro lado, as notas, às vezes, aparecem no fim de cada um dos textos, às vezes, são colocadas ao pé da página, numa dubiedade de procedimento.
Apesar destes e de outros percalços, o livro de Carlos Verçosa já nasce como uma referência obrigatória na bibliografia brasileira sobre o tema, o que é uma façanha deste poeta. De autor de haicais, ele se afirma como estudioso do gênero, produzindo uma obra ambiciosa e útil.
Sua pesquisa, suas traduções para o português dos textos incluídos no volume e, finalmente, seu estudo identificando a presença do haicai na poesia brasileira, com destaque para o papel dos escritores baianos, tornam o livro merecedor da atenção e do interesse de todos nós.
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Viagem ao interior. Artigo crítico sobre o livro Oku, Viajando com Bashô, de Carlos Verçosa. Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo, 1996. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 20 jan. 97, p. 7.
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