22/11/2015

testemunha de canudos

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Uma Testemunha da Guerra de Canudos

            Quando a última expedição reunia milhares de soldados para destruir a cidadela sertaneja de Canudos, cerca de vinte estudantes se apresentaram como voluntários para trabalhar nos hospitais de campanha. O grupo era formado por acadêmicos mais adiantados e até mesmo por calouros empenhados em demonstrar bravura e apoio à república.
            Alvim Martins Horcades, estudante dos cursos de farmácia e de medicina, foi um daqueles que, voluntariamente, desempenhou a profissão escolhida, sem interesse outro senão o de minimizar o sofrimento de quem padecia. Testemunha dos fatos, ao regressar a Salvador, publicou uma série de artigos no Jornal de Notícias.
            Interrompida a publicação dos relatos baseados nas notas de campanha, por divergência entre a editoria do jornal e o improvisado repórter, Martins Horcades reuniu suas anotações no livro Descrição de uma viagem a Canudos. Ele explica que suspendeu a publicação dos textos no jornal para “fazê-lo em um opúsculo, onde pudesse com a responsabilidade do meu nome e máxima liberdade (...) explanar (...) o que vi e narrar com toda lealdade o que presenciei.”
             A observação inicial do livro já chama atenção do leitor para o testemunho deste personagem, naquilo que traz de polêmico. Horcades não se furta a emitir opinião, interpretar o que viu e criticar alguns protagonistas de episódios finais da luta.
            Este caráter não pacífico do texto, sujeito a dissidendos, depõe a seu favor. Sabemos que após uma guerra, o que se quer contar é apenas aquilo que convém aos vencedores. Qualquer detalhe, por mais singelo que seja, que não engrosse as fileiras do louvor e do reforço ao senso comum é considerado destoante. Mas são precisamente estes detalhes, considerados excrescências do calor da hora, que ajudam a posteridade a resgatar a verdade histórica.
            Por este viés, começa-se a ler com interesse a Descrição de uma viagem a Canudos, e compreende-se a conveniência da sua republicação, graças a um trabalho de co-edição feito pela Egba e pela Edufba. A Empresa Gráfica da Bahia e a Editora da Ufba associam-se convenientemente às comemorações dos cem anos da Guerra de Canudos. O que falta nesta edição fac-similar do trabalho de Martins Horcades é uma introdução, ou até mesmo uma simples nota na orelha do livro, situando o texto. Não se compreende porque a Universidade, com tantos pesquisadores capazes de iluminar a nossa leitura, preferiu deixar as orelhas do volume em branco.
            Que o leitor não se impressione desfavoravelmente diante das primeiras páginas do livro, onde o autor, pouco experiente em relatos desta natureza, gasta tempo em considerações sem maior interesse. Louvações, modestas desculpas, preâmbulos desnecessários... e a confissão: “Devo ser o primeiro a notar o nenhum valor literário do meu trabalho, mas ao mesmo tempo empenho-me em salientar o muito valor que encerra no fundo.”
            Num tempo em que se confundia tudo que era escrito com literatura, esta observação não deixa de ser pertinente. Ainda hoje, muita gente quer exigir de um documento histórico, de um trabalho investigativo ou de um relato testemunhal as mesmas qualidades indispensáveis ao texto literário. O bom senso de Horcades vale como exemplo.
            A sua imodéstia, assegurando a importância do material reunido, é cabível. Seu relato mostra uma das muitas vozes dominantes, as vozes daqueles que chamavam a população sertaneja de fanática, mas não viam o fanatismo e a histeria coletiva de uma república incipiente.
            O principal argumento da repressão a Canudos foi a sua identificação com um foco de resistência monárquica financiado pelo estrangeiro. Os mais lúcidos cidadãos, pródigos em identificar o fanatismo e a ignorância dos jagunços, não foram capazes de perceber que um bando de sertanejos isolados do mundo mal sabia quem foi o Imperador nem o quem era a tal de República.
            Os expedicionários ficaramm surpresos e, ao mesmo tempo indignados, com a solidariedade da população sertaneja para com a gente de Canudos. Eles não sabiam da existência destes dois brasis. O nosso, de homens das cidades, que bem ou mal vivemos e esperamos o amanhã. E o deles, dos contingentes de excluídos que, ontem nos sertões e hoje nas favelas, entram em guerra com o Brasil dos que ainda têm o que comer.
            Horcades conta-nos o episódio da boiada conduzida para o centro das operações. Ela deveria alimentar as tropas, mas como muitas das outras provisões sofreram desvios mirabolantes. O gado estoura,  se espalha, se perde. Quando os vaqueiros, que antes serviam às tropas, foram vistos ao lado da vencida população de Canudos, tanto os soldados quando o nosso Martins Horcades sentiram o desprezo e o ódio atribuído aos traidores da pátria. Que pátria? A dos bem alimentados ou a dos famintos?
Mal sabiam que traidores foram aqueles que não se juntaram aos seis iguais, na hora derradeira da miséria e da humilhação.
Martins Horcades vê com olhos honestos e sinceros. Mas vê com olhos daqueles que foram destruir as casas de uma gente simples e sem mais nada além da sua favela sertaneja.

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Uma testemunha da guerra de canudos. Artigo crítico sobre o livro Descrição de uma viagem a Canudos, de Alvim Martins Horcades. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 25 ago. 97, p. 7.

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