23/11/2015

bolsa vida

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

A bolsa ou a vida

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Armadilha para Mkamba,
de Ivan Sant’Anna,
é um romance
que prende o leitor
a partir do suspense financeiro,
dos ganhos e perdas
nas bolsas.
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Livros de suspense, envolvendo crimes, situações perigosas ou fenômenos desconhecidos, costumam atrair milhares de leitores. O ruim destas obras é o texto, ou a narrativa, quase sempre cheio de lugares-comuns.

As situações são concebidas e realizadas às pressas para atender a um tipo de leitor intelectualmente ingênuo e despreparado. Mas isto não quer dizer que a fórmula seja aplicável tão somente a produtos “made in Paraguai”, destinados a consumidores que não distinguem o original da contrafação. Que não vêem diferença entre um uísque fabricado em Foz do Iguaçu e um destilado na Escócia.

Em linguagem óbvia, este é o problema dos livros destinados ao sucesso fácil junto ao grande público. Mas convém insistir que, há bastante tempo, escritores de qualidade utilizam os recursos “industriais” da cultura de massa como base amplificadora da recepção do texto, sem que a obra caia nos lugares comuns do kitsch.

É o caso de Armadilha para Mkamba, de Ivan Sant’ Anna, publicado pela Rocco.

Se há vinte ou trinta anos atrás, o consenso dos leitores cultos deixava de fora da boa literatura recursos e soluções consagrados pela cultura de massa, com o crescimento das estratos pouco escolarizados, o apelo a faixas mais largas do público deixou de ser um defeito para se transformar numa virtude.

O fenômeno é perfeitamente compreensível e legítimo. Ao longo da sua história, a literatura passou por períodos distintos, chamados de movimentos ou de estilos de época, em que novas gerações abominavam o gosto da geração anterior e impunham outros padrões de julgamento.

O Romantismo, estilo de época que dominou o século XIX, foi uma resposta da arte ao gosto duvidoso (segundo os padrões clássicos) de uma nova classe social, a burguesia. O comerciante, preocupado com os negócios e com o lucro, não tinha tempo para os requintes formais da literatura neoclássica. Conhecer a tradição ocidental, como forma de melhor compreender o texto lido, era algo que não fazia parte das preocupações do novo público. Daí, a literatura romântica apelar para a emoção, em lugar da razão.

O neo-liberalismo econômico, em substituição ao ideal de um estado paradisíaco e supridor das necessidades do sujeito, repõe o homem na mesma situação dos seus antepassados, quando a acumulação individual de riquezas passou a ser o ideal supremo. A única garantia de uma vida digna.
Como, então, exigir deste homem consagrado ao lucro o cultivo de uma sensibilidade aplicável não apenas à realidade vivida, mas também às projeções e ficções de uma outra realidade?

Caberia ao artista projetar o seu vôo e esperar que os outros lhe sigam, ou condicionar o trajeto às limitações dos possíveis companheiros de aventura?

Há algum tempo, criadores e estudiosos da literatura responderam à questão. Umberto Eco, no inovador tratado de estética Apocalípticos e integrados, escrito em parte nos anos sessenta, reúne os fundamentos da sua futura obra de ficção.

Partindo de lugar diverso e fundamentos outros, Ivan Sant’ Anna trocou a bem sucedida profissão de especulador nas bolsas norte-americanas pela construção de situações imaginárias. Sua intimidade com os segredos do mercado de capitais, antes empregada em situações geradoras de tensão, é agora utilizada para produzir obras destinadas ao deleite do público.

Em Armadilha para Mkamba ele projeta o foco narrativo sobre três cenários diferenciados.
Uma frágil república africana, recém-democratizada, cuja moeda pode ser derrubada por um megaespeculador, enquanto o presidente se divide entre os humores do FMI e a tentativa de reeleição. Embora esta republiqueta comandada pelos operadores do mercado internacional possa lembrar a triste realidade brasileira, o romance trata mesmo é de um país imaginário da África. Qualquer semelhança é obra da globalização.

O segundo ponto iluminado pelo foco narrativo é o escritório do bilionário Peter Page, em Londres, onde alguns dos melhores traders do mercado ditam a flutuação das bolsas.

O terceiro é uma pequena cidade entre os Estados Unidos e o Canadá, onde uma operadora independente se refugiou. Na solidão da sua casa, Laura Gibson divide o tempo entre lances geniais que constituíram sua reputação de trader e as generosas doações a obras de preservação ambiental.
Os pontos de tensão se situam nas investidas de Page para destruir a moeda de Mkamba e na romântica solidariedade de Laura ao país africano. De um lado, em Londres, Page faz a moeda despencar, do outro, Laura investe na sua estabilidade.

Mas não imagine o leitor que todos nós, alheios aos movimentos da bolsa, fiquemos indiferentes à trama do romance de Ivan Sant’Anna. Outros ingredientes completam o quadro e asseguram o prazer da leitura.

O interesse e o envolvimento do leitor vão crescendo, página após página, como o saldo de um bom jogador de apostas numa rodada protegida pela sorte. À proporção que o saldo cresce, o leitor-jogador não consegue abandonar o jogo. Cada lance é definitivo, a atenção flutua pelas páginas até o inesperado final do livro. Além da surpresa reservada para os últimos lances, Ivan Sant’Anna faz sua obra crescer, ao propor uma reflexão sobre os destinos dos pequenos países. A velha idéia de democracia é sepultada no território da globalização. Deslendo o título de um antigo livro de Drummond, convém lembrar a advertência do assaltante: a bolsa ou a vida.

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A bolsa ou a vida. Artigo crítico sobre o livro Armadilha para Mkamba de Ivan Sant' Anna. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 29 jun. 98, p. 7.