Narrativa de viagem
Embora apontado por Rubens Borba de Moraes como
um dos nossos melhores livros de viagem, um volume publicado em 1883 teve o
mesmo destino de centenas de livros que caíram no esquecimento. Não fosse o
autor avô do escritor Mário de Andrade, talvez a sua obra ainda estivesse
perdida entre publicações menores.
Borba de Moraes publicou, em 1979, o livro Lembranças de Mário de Andrade, contendo
sete cartas; e, na introdução, dedicou algumas considerações ao autor destes Apontamentos de viagem. As referências
elogiosas despertaram a atenção de Antônio Cândido que considera Rubens Borba
de Moraes como a maior autoridade em literatura de viagens no Brasil. Foram
estas circunstâncias que permitiram aos estudiosos da literatura brasileira o
acesso fácil ao livro de J. A. Leite Morais, editado pela Companhia das Letras,
com estudo introdutório, cronologia e notas de Antônio Cândido.
Mas não se trata de leitura destinada apenas aos
especialistas. O livro constitui fonte de informação e, sobretudo, de prazer,
pela narrativa ágil e viva do autor, pelo domínio da escrita, exercitada sem os
arroubos emocionais dos retardatários românticos. Diria mesmo que o texto
ultrapassa as marcas que se tornaram índices caricaturais do Século XIX e se
inscreve com notável atualidade entre a nossa melhor prosa. Não esqueçamos que
os bacharéis do século passado se compraziam com os arroubos de uma sintaxe
alambicada, onde o tonitroar da retórica florida ou os ingênuos queixumes
substituíam o encanto da sugestão e do bem dizer.
Leite Moraes era um homem do século XIX,
bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo. Viveu o momento em que o
epicentro dos acontecimentos culturais do país se deslocava para a florescente
província do café. A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco dividia com
a do Recife a condição de eixo agregador das mais destacadas expressões do
romantismo brasileiro e dos momentos subseqüentes. Entre estes bacharéis
surgiram tanto os nossos melhores escritores quanto os nossos mais intragáveis
beletristas. Seu livro tinha tudo para não passar de um pedante relato de
bacharel: nomeado presidente da província de Goiás, começou suas anotações
quando partiu de Araraquara, a cavalo, atravessando cerrados, rios e pântanos.
Ocupou o governo de fevereiro a dezembro de 1881, quando resolveu retornar para
apresentar sua demissão aos conselheiros do Império. Sentindo-se sem condições
de empreender a longa viagem à cavalo de Goiás até São Paulo, arriscou-se numa
desconhecida aventura: seguir pelo rio Araguaia e descer o Tocantins até
alcançar o Pará. Em Belém, tomaria um confortável navio que, em pouco tempo, o
conduziria à Corte, no Rio de Janeiro.
Mas a viagem até Belém seria um desafio ao
desconhecido. Mal sabia das aventuras e perigos pelos intermináveis rios, onde
as corredeiras e redemoinhos representavam um perigo ainda maior que os animais
selvagens e as tribos hostis. A bordo de um bote movido por alguns remeiros
conheceu um outro Brasil, onde a natureza e suas criaturas, em estado
surpreendentemente selvagem, se opunham aos confortos e exigências da decantada
civilização.
O livro de Leite Moraes insere-se com interesse
e destacada qualidade na tradição da chamada literatura de viagem de Língua
Portuguesa, que a partir do século XVI passa a representar um filão
simultaneamente popular e enriquecedor. Com as descobertas marítimas, os
relatos de viagem passaram a representar não apenas um vigoroso antepassado do
moderno jornalismo, com suas “reportagens” sobre povos e costumes
desconhecidos, mas um elo com a velha tradição literária que remonta à odisséia
dos navegantes imortalizados por Homero. A narrativa de viagem não apenas se
situa nos primórdios da literatura ocidental, como inaugura a ponte que vai da
criação escrita à prática jornalística.
Se foi um gênero importante no Renascimento, no
Romantismo ele se tornou igualmente notável. As narrativas de viagem do século
XIX foram atreladas ao espírito nacionalista e destinadas ao conhecimento ou à
exaltação dos valores nacionais. As Viagens
na minha terra, de Garret, por exemplo, trazem no título o espírito que
norteava a reinvenção de um gênero da renascença, valorizado de novo pelo
ufanismo nativista. Numa outra vertente, a necessidade de escapismo e de fuga
do homem romântico conduziu a caminhos que ultrapassam as fronteiras do seu
povo, abandonando a nova modalidade de viagem.
Apontamentos
de viagem (de São Paulo à Capital de Goiás, desta à do Pará, pelos rios
Araguaia e Tocantins, e do Pará à Corte. Considerações administrativas e
políticas, pelo dr. J. A. Leite Moraes, ex-presidente de Goiás) é um livro que,
felizmente, traz poucas considerações administrativas e muito de encanto e
prazer. Não que o subtítulo seja enganoso. Leite Morais, de fato, se desincumbe
das suas considerações políticas e administrativas, mas o estilo da sua escrita
é tão leve, tão preciso e, ao mesmo tempo, com tal poder de sugestão que afasta
de nós a impressão de um texto sentencioso ou de um mero relatório pragmático.
Com o mesmo encanto da fantasia e da ficção, o
autor nos põe diante da realidade do Brasil no século XIX. Realidade múltipla e
polar; de um lado a vida urbana, do outro, o desconhecido mundo selvagem. Um
Brasil ignorado pelos moradores das grandes cidades, pleno de aventuras,
paisagens exuberantes e desafios ao corpo e ao espírito. Um país inexplorado e
cheio de prodígios.
Literatura de viagem da melhor qualidade. É o mínimo que se pode dizer
destes Apontamentos de viagem de
Leite Moraes.
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Narrativa de viagem.
Artigo crítico sobre o livro Apontamentos
de viagem, de J. A. Leite de Moraes. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 30 mar. 98, p. 7.