22/11/2015

arquitetura do fragmentário

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

arquitetura dO fragmentário

            Quando as tropas de Napoleão tentavam submeter os reinos da Europa, causando humilhação e pânico, as exóticas terras do continente Americano deixaram de ser uma aventura para se tornar um chamado paradisíaco. A família real portuguesa abandonou o pequeno reino para se instalar na Colônia. No início do século XIX, o imaginário romântico pintava a exuberante natureza das terras inexploradas como lugar edênico.
É para este país das maravilhas que seguiu uma princesa da Áustria, Dona Leopoldina, Arquiduquesa da Casa de Habsburg, filha do czar Francisco I. Apesar de enfraquecido e espremido entre a espada de Napoleão e a “amizade” dos ingleses, o reino de Portugal tinha uma colônia quase tão vasta quanto a Rússia, dizia-se em Viena. Era conveniente fortalecer esta coroa, através do casamento de uma Habsburg com o príncipe herdeiro Pedro de Orleans e Bragança.
Dona Leopoldina desembarca no Rio de Janeiro com uma delegação formada por diplomatas, naturalistas, músicos, pintores, botânicos; enfim, uma pequena e expressiva mostra do que era a Áustria: o império das ciências e das artes. Desde que lhe foi enviado um retrato do pretendente, a sonhadora Leopoldina se apaixonou pela beleza do jovem príncipe. No primeiro encontro, a sensualidade do esposo e a exuberante espontaneidade daquela gente deixaram-na aturdida.
            O livro de Gloria Kaiser, Dona Leopoldina. Uma Habsburg no trono brasileiro, fica a meio caminho entre a biografia e o romance histórico. E esta indecisão é o seu defeito maior. A autora quer resgatar o que há de verdade interior (não a verdade factual) na vida da Princesa da Áustria e Imperatriz do Brasil. O epílogo do livro assume a objetividade de um estudo, enquanto os seis capítulos fragmentam o impacto ficcional do tempo psicológico que rege a narrativa. Conduzido por cortes bruscos de tempo e lugar, o leitor começa a assumir a lógica da ficção, quando as transcrições documentais, substituindo o diálogo, remetem a uma outra lógica – cartesiana. Numa passagem temos a narrativa, a apresentação dos fatos, em outra temos discussão de idéias. O texto oscila entre a função poética da linguagem e a reflexão científica.
De repente, não mais se tem certeza dos fatos: verdadeiros, inverossímeis? Algumas transcrições, de documentos ou de inventos da memória, sugerem a pesquisa histórica; outras, o descompromisso da fantasia.
            Uma assustada Leopoldina, perdida na floresta e protegendo as filhas do aguaceiro e da noite, é salva pelos índios. Adiante, a princesa sozinha, desce do cavalo e se senta na calçada, por onde passam escravos, vendedores e outra gente comum. Na página vinte, uma cena folclórica para o olhar do turista:
            “Ela achou Madame Goufferteau imediatamente; a praça da igreja está cheia de mães-de-santo. Os grupos de meninas cochicham e riem baixinho; trocam-se amuletos, vendem-se ervas e condimentos. Em troca de um brinco roubado da patroa qualquer uma dispõe-se a perguntar os endereços à Zeladora de Santos, Ialorixá. Uma missa negra ou branca é muito cara, as Mães-de-Santo ficam sentadas, escondidas atrás de rolos de fumaça, queimam madeiras e ervas amaldiçoando, espantando maus espíritos, abençoando pessoas. Todas as pragas, desejos e amuletos prometem paixões desenfreadas — do mesmo modo é com os santos. Leopoldina achava que aquilo só existia em livros.”
            Mesmo a autora explicando ao leitor que baseada em “pesquisas meticulosas, esta vida [a vida de D. Leopoldina] só pode ser explicada de modo criativo”, a questão não se resolve. Esta criatividade, às vezes, apresenta-se ingênua demais para o material histórico que serve de base.  Se, por um lado, Gloria Kaiser consegue pintar em muitas cenas do livro um retrato da sua Leopoldina, a figura de mulher inteligente e sensível perdida num meio grosseiro, por outro lado, o retrato é desfocado. As tintas de algumas cenas do afresco se confundem ou se perdem nos esboços mal resolvidos. A sensação do leitor é de que há uma nítida incompatibilidade entre ficção e pesquisa no texto deste livro.
            Em certos momentos, quando o relato fica confuso, o livro lembra um conjunto rico e desordenado de material bruto à espera de uma linha capaz de unir os pontos e fazer aparecer o bordado.
            Faltaria à autora o domínio do discurso de ficção ou seu ambicioso projeto levaria demasiadamente longe o teor fragmentário da narrativa pós-moderna? Em algumas propostas da pós-modernidade, as propriedades de síntese e compreensão conclusiva ficam suspensas. A fragmentação do sentido já presente na literatura moderna, ressurge como marca de identidade. Mas a segunda hipótese não é reforçada pelo texto do livro, que sugere a condição de um trabalho por concluir.

______________________

Arquitetura do fragmentário. Artigo crítico sobre o livro Dona Leopoldina. Uma habsgurg no trono brasileiro, de Gloria Kaiser. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 15 set. 97, p. 7.

*  *  *

Correspondências para esta coluna:
R. Alberto Pondé, 147/103. CEP 40.280-630,
Salvador, Ba. Fone 351-8971