O sonho acabou
Orfandade de um ideal, romance de estréia de Raymundo A. C. Pinto quer registrar
a perplexidade e o aniquilamento de homens e mulheres empenhados na construção
de uma sociedade ideal, quando da desmontagem da União Soviética e dos mecanismos
repressivos com os quais se esperava conquistar a verdadeira democracia.
Ao sepultar um monumental aparelho de estado fundado na
idéia de que os fins justificam os meios, muitos ex-comunistas sepultaram,
juntamente ao meios ilegítimos, os fins mais justos e naturais: uma verdadeira
igualdade de direito. Para muitos: o sonho acabou.
A ação da narrativa se dá em Salvador, durante os anos que
vão da queda do muro de Berlim, primeiro grande efeito de desintegração do
império vermelho, até a destruição total do poderio soviético. O registro dos
fatos históricos, através do noticiário dos jornais, acompanha a crise
ideológica dos personagens e a sintomática intolerância de muitas facções da
esquerda, como forma de ignorar o avanço da praxis dita neo-liberal.
Em meio a todo um mundo utópico em crise, uma clássica
história de amor impossível, nesta versão tropical de romeus e julietas
caboclos, protagonizados por um sindicalista e uma filha de banqueiro. Em
contrapartida, uma simulação de sequestro, envolvendo um bem sucedido delegado
de polícia, em meio a uma trama bem urdida, incluindo violência policial,
arbitrariedade, corrupção e envolvimento de jovens com traficantes de drogas.
Ação é o que não falta para prender o leitor deste romance nas teias do
acontecido.
Com isso, saímos das páginas de Orfandade de um ideal certos de que Raymundo A. C. Pinto sabe
contar uma história. Outro dado positivo é que o livro mantém a curiosidade e a
atenção do leitor despertas por todas as páginas, assegurando a condição básica
da empatia. É evidente que o fato de se tratar de um romancista estreante deixa
no texto as marcas da iniciação, mas estas marcas, tendo o autor a determinação
e a disciplina de um oficial que leve a sério seu novo ofício, poderão ser
apagadas.
Comecemos, então, por levantar um ou outro aspecto do livro
que pode ser revisto e amadurecido.
A partir do título e dos textos de contracapa, o leitor
espera que os conflitos de natureza ideológica sejam mais explorados, o que
daria ao romance um lugar de destaque em meio à literatura do fim do século,
registrando o aniquilamento de um sonho de felicidade pela voracidade do lobo.
O novo lobo do homem: o pensamento neo-liberal.
Em lugar de construir em meio ao enredo do romance uma trama
destinada a plasmar o momento de orfandade vivido pelos obreiros da utopia
marxista, o autor permite que os acontecimentos políticos terminem apenas
servindo de pano de fundo. O título, sem força poética, por ser demasiadamente
comum e um tanto marcado pela grandiloquência dos dramalhões sentimentais, não
é um bom indício para o leitor mais exigente. A ironia, o despistamento, a não
obviedade na busca de um título valorizariam mais o trabalho. Veja-se que, a
guisa de exemplo, pegamos uma expressão emblemática usada pela geração dos Beatles,
“o sonho acabou”, e usamos para intitular este artigo. Tal título diz o que o
autor do livro mostra, servindo para nossa crítica. Um tanto irônico e contendo
o diálogo intertextual com ideais análogos de felicidade capitalista, o título
brinca e sugere. Mas é apenas um exemplo circunstancial, passemos adiante.
Um dos maiores desafios para o narrador inexperiente é a
construção dos diálogos, a passagem do ponto de vista do sujeito que conta a
história para as perspectivas dos sujeitos que agem e falam. Quase sempre, a
linguagem, os valores e vícios do cachimbo do narrador se repetem nas falas dos
personagens, como se estivéssemos diante de um grande monólogo.
Construir diálogos vivos e capazes de transmitir a ação
romanesca é a pedra de toque do texto maduro, enquanto os aprendizes recorrem
mais à descrição, à dissertação e à narração. Raymundo A. C. Pinto já traz
consigo a virtude de saber sustentar a ação do texto no jogo dos diálogos.
Falta a eles, apenas, um pouco mais de trabalho dialógico, de saber sair do
universo do autor para o pequeno mundo dos sujeitos da narrativa. O construtor
de um personagem precisa ser habitado por ele, ceder seu corpo e seu cérebro
para que a criatura de papel sinta e pense através do provisório habitat.
Quando isto não acontece, pode-se ver no texto em questão,
os diálogos soam ora ingênuos ora inverossímeis. É o que ocorre na página 79,
quando Igor, “filho de pai burguês”, cooptado por Carlos para o Partidão,
sistematiza numa fala as suas contradições. Aí o diálogo não é, verdadeiramente
usado como diálogo, mas como pretexto do autor expressar suas reflexões.
Há situações na obra em que os acontecimentos aparecem
acompanhados pelo julgamento ético ou por outra forma de reflexão, como se o
autor quisesse conferir mais “profundidade” ao texto. Mas, sabemos, a ação é
quase sempre irrefletida, principalmente quando ditada pelas causas não
conscientes. As pessoas não falam e agem fazendo um defesa da sua ação. Isso
acontece, apenas, em situações especiais, quando se quer persuadir, como no
júri, por exemplo.
O autor deste livro, convém inserir um dado biográfico, é um
profissional do Direito, um juiz, para quem a lógica da enunciação confere
legitimidade ao enunciado. Na ficção as regras são outras. Às vezes são as
mesmas regras da vida desregrada que valem para um personagem, com sua
ilogicidade e suas irrefletidas razões.
Mas insistamos, um pouco mais, na natureza judicativa do
discurso ficcional de Raymundo A. C. Pinto. Há um gordo parágrafo na página 192
em que o narrador, em vez de narrar, interpreta os fatos. Ora, num ensaio, num
texto de crítica como este não precisamos de máscaras para dizer o que
pensamos. Simplesmente dizemos e expomos nossas razões, quer sejam aceitáveis
ou não. Num texto ficcional, o processo é bem mais sutil, exige bem mais
argúcia. Temos que dizer o que pensamos fingindo dizer outra coisa, dissimulando.
O texto literário é bem mais complexo, bem mais difícil de conceber do que o
texto crítico, óbvio, quase didático na sua logicidade.
Em outras palavras: o autor pode escrever um romance
simplesmente para convencer alguém de alguma coisa, mas esse livro só parecerá
verossímil na sua trama se tais objetivos não se mostrarem. É o que faz Camilo
Castelo Branco, em Amor de Perdição.
Às vésperas de ser julgado por crime de adultério, o autor produz, numa meia
dúzia de dias, uma história de amor impossível que, para os seus juízes,
pareceria apenas uma das tantas histórias românticas destinadas a comover.
Analisado o texto com cuidado, observa-se que ali estão disfarçados todos os
argumentos passionais da defesa. Como tais argumentos não resistem à razão,
eles são camuflados e percebidos de modo subliminar.
Dissimular, fingir, despistar não são defeitos, mas
virtudes, quando postos na balança da ficção.
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O sonho acabou. Artigo crítico sobre o livro Orfandade de um ideal, de Raymundo C.
Pinto. Romance. Rio de Janeiro, Corpo da Letra, 110 p. Coluna “Leitura Crítica”
do jornal A Tarde, Salvador, 23 dez.
96, p. 7.
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