Um
contista esquecido
Há textos que são escritos para o
prazer do leitor. Eles divertem e seduzem, submetendo o seu projeto literário e
o universo conceitual do autor à exigência primeira de agradar e divertir.
Embora alguns estudiosos vejam nesta escrita uma forma de arte menor, porque
descomprometida com a sacralização do estético, outros preferem o prazer do
texto.
No princípio, a arte não queria ser
uma donzela intocável, mas uma dançarina alegre e sedutora. Assim, ela se
tornou parte da vida, sem querer substituir a vida. O seu valor residia em ser
uma forma de abandonar os caminhos menos satisfatórios como possibilidade de
abrir veredas mais confortáveis.
Mas, ao buscar novas expressões e
possibilidades, a arte se voltou contra o seu objetivo inicial de alegrar. Já
no Renascimento, ela tinha um compromisso com a educação moral da humanidade.
O Romantismo cedeu ao gosto burguês,
mas a modernidade que se instaura a partir de então retoma as exigências
renascentistas, acrescentando outras diretrizes.
Ao texto alegre e brincalhão se opõe
o texto que inquieta, desloca, provoca a reação do leitor, sustentando a sua
eficácia no desconforto; se pondo a serviço do desprazer, da inquietação, como
forma de reação ao estabelecido.
Tal é a prática de Breno Accioly.
Quando a literatura no Brasil assumiu um compromisso com a denúncia das chagas
sociais, este contista alagoano estendeu a denúncia ao que Freud chamou de
mal-estar na cultura. Os fantasmas interiores ganharam voz e corpo para
inquietar o leitor.
A prática
tanto pode ser uma nova forma de atuação, quanto uma forma de escapismo através
dos recônditos do sujeito, como convinha ao gosto romântico.
A crítica
costuma apontar Breno Accioly como um contista que conferiu uma dimensão
dostoievskiana a este tipo de narrativa no Brasil. Tristão de Athayde, no seu
rodapé de crítica saudou a aparição do autor afirmando que “nunca vimos, até
hoje, no Brasil, tão bem expresso, literariamente, esse terrível campo de
transição entre a luz da consciência e a outra luz da insanidade, como nestes
contos por vezes repugnantes.”
Tendo
publicado um romance e quatro livros de contos, sendo o primeiro em 1944 e o
último quatro anos antes da sua morte, que se deu em 1966, este contista estranho
e poderoso foi reeditado algumas vezes. Esta quarta edição que a Civilização
Brasileira faz de João Urso atesta a
procura dos seus textos por novos leitores, apesar de Breno Accioly ser hoje,
no panorama da literatura brasileira, um desconhecido para o grande público.
João Urso é o livro fundamental do
autor, aqui estão seus melhores contos. A angústia e a revolta constituem
personagens cuja dimensão psíquica responde às patologias mais inquietantes.
Por isso, apesar da narrativa seca e precisa, os contos são lidos num clima
sufocante, onde o ar é rarefeito e o tempo parece parar. Uma leitura densa e
entrecortada de paradas íngremes, cercadas por pedras agudas. Para definir o fenômeno, Vinícius de Morais
disse que “Breno Accioly veio abrir sobre as águas claras do conto brasileiro
as comportas de sua alma tumultuosa que habita nas trevas mais fundas e
sórdidas do ser.”
No universo
sombrio dos dez contos de João Urso,
o abandono, o medo e a disformidade da alma firmam uma narrativa pessoal e de
relativa originalidade. As fraquezas do espírito e a consciência dos limites
fazem dos personagens figuras trágicas e apagadas, como o menino João Urso,
cuja risada desvairada assusta e torna o personagem repugnante para o
mundo. Neste universo terrível, surge
como um vento benfazejo o conto “Natal de seu Hermídio”, narrado em primeira
pessoa e constituindo uma crônica rememorativa da infância. Mas mesmo aí,
aparece o estranho e o indizível, nos recônditos da alma do personagem central,
o taciturno seu Hermídio, fabricante de mundos fantasiosos que encantavam o
menino e fechavam seus olhos para tudo o mais.
A cidade de
Sant’ Ana do Ipanema é a Macondo de Breno Accioly. Aí têm lugar quase todas as
suas narrativas. Seus homens e mulheres, suas casas e ruas constituem a
paisagem do contista. José Lins do Rego disse que Breno Accioly é “uma
verdadeira força poética que se debruça sobre o homem para sondar-lhe as
profundezas. Os casos de seus contos são mistura de confissão e de terríveis
análises que ele pratica, quase que sem saber. Se eu fosse um técnico em
psicologia profunda muito teria que sondar nestas criaturas que aparecem no seu
livro. Digo que me espanta este poder tremendo de revelar o estranho da
natureza. As próprias coisas que o rodeiam são carregadas de uma pesada forma.
Há uma tristeza sinistra nas suas narrativas.”
Mais não
digo.
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Um
contista esquecido. Artigo crítico sobre o livro João Urso, de Bruno Accioly. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 16 jun. 97, p. 7.
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