Um Mecenas Pós-Moderno
O cidadão comum, que vive estes tempos de depois das
conquistas modernas, não sabe ao certo que nome dar ao seu momento. Leu ou
ouviu dizer que desde os fins do século passado alguns sujeitos mais apressados
inauguraram a modernidade. Assiste a uma vertiginosa desconstrução de práticas
e valores, sucessivamente substituídas por outras que já nascem prestes a
desaparecer.
Por outro lado, quase atordoado, descobre que uns poucos
homens que acharam o mapa da mina vivem o conforto e as conquistas sonhadas
para o futuro, enquanto a maioria tem um nível de vida muito parecido com o dos
camponeses ou dos vilões (aqueles que viviam nas vilas) da Idade Média. A
formação e as informações do grande contingente de assalariados do fim do
milênio também estão mais próximas do homem do século XV do que dos bem
informados protagonistas da aldeia global.
Nos castelos do neo-liberalismo vivem os senhores do tempo.
Nas glebas da velocidade, os vilões da História. Veja-se que vilão aqui ganhou
o sentido de anti-mocinho dos filmes de Hollywood.
De um lado, a grande massa continua fermentando os
condimentos conservados desde os tempos medievais; do outro, a pós-modernidade
bate à porta dos escolhidos e diz coisas que pouca gente consegue entender. É
neste quadro que surgem as conquistas da cibernética, as maravilhas da
eletrônica, as navegações virtuais por ondas de
energia.
Falando no cão, ele aparece. Um nordestino do Ceará, de
Pernambuco, da Bahia, um cidadão da aldeia global residente nos endereços da
internet, um tal compadre Chico Feitosa, anda fazendo feitos e façanhas que
Deus duvidava. Primeiro viveu sua vidinha até os cinqüenta anos cuidando de
negócios de gado e gente, tocaiando os caloteiros de impostos com sua caneta de
fiscal de rendas. Canetava daqui, canetava dali, até que descobriu que da sua
pena não saiam apenas números, cifras, processos do leão. Surpreso, já homem
feito, passado dos cinqüenta, viu a poesia espiando por entre as dobras de uma
folha. Uma poesia estranha, esquisita, cheia de exaltações, novidades, falas
verbosas que nem sertanejo animado em festa de velório.
Assim nasceram os primeiros poemas de Soares Feitosa, um
poeta já feito -- do seu jeito --, desconcertante e astucioso, cheio de
armadilhas, presepadas, saberes antigos e novos. Com jeitão de nordestino,
cabeça chata, cearense dos bons, surpreende o leitor com viagens eruditas pelos
domínios dos gregos, latinos e ladinos.
Enquanto o feiticeiro preparava o caldo no seu imenso
caldeirão, fazia bruxarias modernas nas telas de um computador. Este mesmo
Soares Feitosa é o criador do Jornal de
Poesia, um sítio onde o leitor encontra as obras completas de vários poetas
essenciais de língua portuguesa, além de poemas de gente pouco conhecida. De
início, qualquer um pode ler o que quiser sem pagar uma pataca. Copiar milhares
de versos de Castro Alves, Pessoa, Camões, Drummond. Mas, depois, ele cobra em
moeda alta: amizade, estima, dois dedos de prosa, seja lá o que for. Dinheiro
não entra.
Mas quem paga tudo isso? A Universidade, a Fundação Cultural
do Estado? O governo federal? Xô, Satanás! Feitosa faz seu feito sozinho. Ou
melhor, com a colaboração do leitor-navegador que, ao aportar nas páginas do Jornal de Poesia, aproveita e manda
versos da sua predileção que lá não foram encontrados. Aquele poema de Joaquim
Cardozo ou aquela ode picante de um incerto Bocage.
No mais, é o poeta de feitos e feitiços que se encarrega do
resto. Que paga alguém para scannear
textos, compra computadores, programas, periféricos. O problema é que os
Mecenas do mundo já morreram todos. Por descuido de alguém, esqueceram de
mandar avisar ao compadre Chico Feitosa, lá nas terras do Ceará. Ele então
assentou praça na Bahia e fundou seu Jornal
de Poesia, pagando tudo do bolso, ou do banco onde guarda seus trocados e
inteiros.
Surge assim um Mecenas da Pós-Modernidade, navegando pelos
mares da internet, aportando em cidades distantes e levando a poesia de língua
portuguesa à China, ao Japão, Europa, França, Bahia.
Enquanto divulga a poesia dos seus próximos e distantes, dos
antepassados, Soares Feitosa constrói a própria obra. O livro Psi, a penúltima, lançado este ano pelas Edições Papel em
Branco, é uma seleção do muito que ele vem produzindo. Sua escrita jorra lavas
ameaçadoras de um vulcão que, depois de cinqüenta anos, abre a boca cheia de
chamas como um dragão de palavras.
As lavas, rochas e pedras de fogo que Soares Feitosa atira
na poesia brasileira são de fato ameaçadoras. Elas mudam os caminhos,
atravancam uns e pavimentam outros. Enfim, a lira esquisita deste poeta põe em
suspenso os nossos conceitos de poesia. Será mesmo poesia? Ou será prosa? Este
discurso verboso, suculento, é cheio de pedras preciosas, cascalhos, espinhos,
mandacarus e atoleiros. É uma serra frondosa, pelada, onde há muito o que garimpar.
O leitor precisa ter peito de garimpeiro para descer seus precipícios, explorar
suas tocas, grutas, ribeiras.
Não é uma poesia pronta, acabada. É uma escrita buliçosa. Um
texto em processo. Leio seu livro como se estivesse em meio a um canteiro de
obras, ou a um grande arranha-céu em construção, onde um balde de brita, uma
viga, uma tábua podem a qualquer hora acertar minha cabeça, me deixar zonzo.
Daí a dificuldade de uma abordagem crítica deste liqüidificador de linguagem
que mistura o lírico, o épico e o dramático. Que tem cheiro de terra, raízes e
matos do sertão nordestino. A surpresa maior é que de um galho de umbuzeiro, na
poesia de Feitosa, não surgem apenas sombra e umbus; surgem frutos vindos da
velha Grécia, cascas, caroços e polpas de erudição. Tem de tudo, basta ter
tempo e vagar para colher.
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Um
mecenas pós-moderno. Artigo crítico sobre o livro Psi, a penúltima, de Soares Feitosa. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 19 mai. 97,
p. 7.
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