Os
ossos da noiva
Charles Kiefer, autor de obras como Caminhando na chuva (já em 12ª edição), Valsa para Bruno Stein (5ª
ed.), O pêndulo do relógio (7ª) e do mais recente Borges que amava Estela e outros duplos, publicou no ano passado
pela Mercado Aberto Os ossos da noiva.
Pau-d’Arco, pequena cidade de colonização alemã, é o cenário
da história deste escritor gaúcho. A presença do negro José Cármio, elegante e
bem educado representante comercial, já é motivo de estranhamento. Mesmo
Gustavo Brechen, bem sucedido comerciante, que apreciava as qualidades do
vendedor ambulante, não entendia como um negro pobre e baixinho fosse uma
pessoa tão cativante.
Nas intermináveis partidas de xadrez com Thiago Lamprecht, o
velho Brechen avaliava as qualidades do negro. Mal suspeitava que sua filha
Circe ficou igualmente impressionada, a ponto de vir a se casar com José
Cármio. Logo ela, moça de inteligência e qualidades que se sobrepunham aos
pequenos horizontes de Pau-d’Arco, pensavam alguns.
Uma tradição cultivada pelos moradores da cidade desde os
anos quarenta, ou muito antes, talvez, era o Baile dos Noivados, onde os pares,
felizes, compartilhavam com a sociedade de Pau-d’Arco a alegria das valsas. O
alfaiate João Felício assim resumiu a um certo Charles, sobrinho de Circe e
narrador da história, os acontecimentos daquela noite: “O clube não proibia a
entrada de gente de cor no salão, apenas na pista de dança, para evitar que as
mulheres brancas fossem molestadas. O erro de Dona Circe foi insistir com José
Cármio para que dançasse. Tu sabes como ela era teimosa e determinada. A
simples proibição a excitava, tornava o desafio mais interessante. Tua tia não
era mulher para a nossa cidade”.
Quando ela puxou José Cármio para o meio do salão, os casais
abandonaram a pista: “Tua tia e o negro tentavam sair da roda, furar o cerco,
mas não conseguiam. Qualquer outra mulher teria chorado, mas ela encarou-os de
frente (...). Como as águas do Jordão, o círculo se abriu, os antigos colegas
de infância, os pretendentes preteridos, as supostas amigas, gente da mesma cor
e da mesma religião, outros que sequer a conheciam, formaram um corredor
polonês. E então com passos contidos, ela parecia estar numa passarela, dona
Circe atravessou o muro da vergonha de mãos dadas com José Cármio, sorrindo.”
Quando os preparativos do casamento envolviam toda a família
Bhechen, resignadamente satisfeita com a união, ocorre a inexplicável morte do
noivo.
Até aqui a trama do livro se aproxima das muitas obras que
retratam amores impossíveis. De fato, este é o centro da narrativa. Ocorre que
Charles Kiefer não é um escritor romântico caudatário, mas o narrador poderoso
e bem formado. Assim ele pode, sem correr nenhum risco, usar ingredientes
diversos para compor uma obra forte e atual, onde o preconceito, os costumes de
uma cidade de “gringos” e os mais densos sentimentos humanos estão plasmados na
narrativa precisa e bem urdida.
São focos e situações superpostas que se entrecruzam na
urdidura do livro para ir formando o conjunto arquitetônico traçado e fielmente
seguido. Aqui não são os personagens ou a narrativa que conduzem o narrador. É
o projeto, a engenharia das tramas, que assegura a execução de cada ponto e de
cada traço. O resultado é obtido por flashbacks, monólogos e focos de narrativa
a passear pelo diversificado cenário, como luzes que descobrem num canto do
palco pedaços de um tempo morto.
A narrativa começa com o monólogo rememorativo: “Tia,
suponho que hoje, quando deste o último ponto na toalha de crochê, antes de
espetares a agulha no restante do novelo, suspiraste aliviada.”
A partir daí acompanhamos a vida de solteira da
protagonista, a mesma Circe dos dias de José Cármio. O sobrinho a rememorar os
fatos presenciados e ouvidos de dizeres. Passamos dos pontos de agulha de uma solitária
senhora, das “finíssimas peças de frivolité”
à tessitura de uma obra conduzida por mãos destras e pacientes: “Tia, estou
tentando escrever um romance sobre a tua vida. Creio que este sempre foi o teu
desejo.” Assim, personagem e narrador se confundem nas suas urdiduras, nos
mesmos arremates de tecidos diversos. Do crochê e do texto, da costura e da
escrita. Em outro momento, ao identificar o narrador como sendo um incerto Charles,
enquanto “dividia uma cerveja com o Osmar Kiefer”, o leitor é arremessado de
dentro da narrativa para a capa do livro, onde aparecem nome e sobrenome do
autor. É como se realidade e ficção andassem juntas, reproduzindo no texto a
composição fragmentária de peças de bordado que, somente ao se juntarem,
permitem visualizar o mosaico.
Este emaranhado de pontos e arremates também nos leva ao
título do livro. Ao provar o paletó com que iria ao Baile dos noivos, José
Cármio se interessa pelos livros espalhados na alfaiataria de João Felício. E
este; perguntou. Os ossos da noiva;
responde o alfaiate, uma história de amor e preconceito. “Para não deixar a
filha casar com um negro, o pai manda matar o noivo. Depois, enterram o sujeito
dentro do automóvel da família, para que pareça roubo seguido de fuga. A pobre
fica à espera do amado durante décadas.”
Lembradas algumas pequenas peças que constituem esta
narrativa, resta-nos apenas deixar ao leitor o prazer de reuni-las. Prazer que,
seguramente, será proporcionado pela leitura deste romance de Charles Kiefer.
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Os
ossos da noiva. Artigo crítico sobre o livro Os ossos da noiva, de Charles Kiefer. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 24 mar. 97,
p. 7.
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