22/11/2015

invenção da noite

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

A invenção da noite em Jorge de Lima

            O engenho noturno ou a poesia da maturidade de Jorge de Lima abandona as experiências modernistas e retoma as formas clássicas, como o soneto e a fabulação da epopéia. Sabe-se também que o poeta da Invenção de Orfeu, antes de aderir ao modernismo, praticava a mais rigorosa ourivesaria parnaso-simbolista – o que lhe valeu o título de “Príncipe dos Poetas das Alagoas”.
            Com a adesão ao modernismo, Jorge de Lima impregnou sua poesia de sons e de ritmos da terra, partindo depois para a viagem mística propiciada, entre outras causas, pelo encontro com Murilo Mendes. Todos estes fatores, desde o empenho formal até a fixação dos pés na terra e do pensamento no infinito, foram costurados pelo pesponto flexível do modernismo, que conferiu à poesia hermética e sedutora deste bruxo da linguagem um empenho formal desconcertante e original no quadro da poesia brasileira.
            É esta criação insólita, difícil, quase ilegível, que vai constituir o objeto da análise crítica de Fábio de Souza Andrade no livro O engenheiro noturno; a lírica final de Jorge de Lima, publicado pela EDUSP. O núcleo do trabalho é a tentativa de compreensão, pelo foco da crítica universitária, daquilo que ele chama de “linguagem órfico-hermética” na obra produzida após 45.
A data não é explicitamente tomada como marco por Fábio de Souza Andrade mas representa, sem dúvida, um direcionamento da poesia e da prosa brasileiras, onde, além de João Cabral de Melo Neto, nomes como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Josué Montello, Adonias Filho e alguns outros são de importância constelar. Convém sublinhar os prosadores porque comumente se fala de uma geração de 45 para explicar as diretrizes tomados pela poesia brasileira, quando nomes expressivos do romance publicaram, a partir desta data, obras que construíram o rigor do engenho formal da nossa linguagem literária.
Ao restringir seu trabalho à última fase da poesia de Jorge de Lima, Fábio de Souza Andrade procede um criterioso rastreamento cronológico de toda obra do autor, incluindo a prosa, sem perder de vista os aspectos biográficos, às vezes negligenciados pela crítica em nome de uma imanência textual.  Despindo-se de preconceitos e ultrapassando os limites impostos pela filiação do investigador a tendências críticas, o autor de O engenheiro noturno conseguiu produzir um estudo a serviço da compreensão da obra de Jorge de Lima. E isto é importante, num momento em que a crítica acadêmica ainda se compraz em produzir ensaios mais voltados para a defesa e a afirmação de uma perspectiva teórica do que para a avaliação da obra de criação.
O texto literário é reduzido, às vezes, a mero pretexto de passeios filosóficos, compungidamente seguidos pelos professores de teoria literária. Embora professor de Teoria da Literatura da UNICAMP, Fábio não se enreda nesta teia. Seu livro é uma lição dando conta de aspectos diversificados da obra de Jorge de Lima: “O que parece saltos abruptos nas transições estilísticas [...] chocaria menos caso fosse interpretado no contexto de sua produção global”. É isto que o crítico se propõe a fazer, reunindo os romances, os poemas engajados e as circunstâncias do poeta.
Assim, é possível compreendermos a estreita relação mantida entre as manifestações e fases aparentemente excludentes do poeta. Jorge de Lima parte de uma lírica tradicionalmente correta e bem comportada; adere às experiências modernistas; busca a identificação da sua voz com grupos étnicos e sociais postos à margem; busca a transcendência do vôo  e, por fim, realiza uma síntese da experiência poética. Sua obra final pode ser lida não somente como um diálogo com o seu próprio trajeto de criador, mas, principalmente, com o percurso da poesia como um todo. Este caráter dialógico, intertextual da sua obra está em perfeita harmonia com o de outros poetas essenciais da modernidade.
Recorramos mais uma vez às palavras do autor de O engenheiro noturno: “A Segunda transição preparará a passagem do verso realista, objetivo, quase desprovido de linguagem metafórica essencial, para o visualismo complexo da fase final, que funda novas realidades a partir de ‘impactos olho-coisa, luz-movimento’. Os fatores que desencadearão as mudanças sensíveis que virão ligam-se à biografia do poeta.”
A partir daí, Flávio de Souza Andrade acompanha os deslocamento de Jorge de Lima de Maceió para o Rio de Janeiro, onde a vida literária da capital – e, na época, o maior centro intelectual do país – propiciará um diálogo dos vislumbres do artista com a inquietação e as buscas de outros espíritos criativos.
Num primeiro momento, observa o crítico, a lírica de Jorge de Lima valorizou a clareza das imagens mais fiéis à realidade, expandindo o alcance dos assuntos em direção ao “cotidiano e o regional”. Aos poucos, esta poesia banha-se nas águas das metáforas mais complexas até alcançar aquilo que ele chama de dicção “parcialmente legível” do emblemático Invenção de Orfeu .

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A invenção da noite. Artigo crítico sobre o livro O engenheiro noturno: A lírica final de Jorge de Lima, de Fábio de Souza Andrade. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 9 fev. 98, p. 7.

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Correspondências para esta coluna:
R. Alberto Pondé, 147/103. 40.280-630, Salvador, Bahia