A invenção da noite em Jorge de Lima
O
engenho noturno ou a poesia da maturidade de Jorge de Lima abandona as
experiências modernistas e retoma as formas clássicas, como o soneto e a
fabulação da epopéia. Sabe-se também que o poeta da Invenção de Orfeu, antes de aderir ao modernismo, praticava a mais
rigorosa ourivesaria parnaso-simbolista – o que lhe valeu o título de “Príncipe
dos Poetas das Alagoas”.
Com
a adesão ao modernismo, Jorge de Lima impregnou sua poesia de sons e de ritmos
da terra, partindo depois para a viagem mística propiciada, entre outras
causas, pelo encontro com Murilo Mendes. Todos estes fatores, desde o empenho
formal até a fixação dos pés na terra e do pensamento no infinito, foram
costurados pelo pesponto flexível do modernismo, que conferiu à poesia
hermética e sedutora deste bruxo da linguagem um empenho formal desconcertante
e original no quadro da poesia brasileira.
É
esta criação insólita, difícil, quase ilegível, que vai constituir o objeto da
análise crítica de Fábio de Souza Andrade no livro O engenheiro noturno; a lírica final de Jorge de Lima, publicado
pela EDUSP. O núcleo do trabalho é a tentativa de compreensão, pelo foco da
crítica universitária, daquilo que ele chama de “linguagem órfico-hermética” na
obra produzida após 45.
A data não é
explicitamente tomada como marco por Fábio de Souza Andrade mas representa, sem
dúvida, um direcionamento da poesia e da prosa brasileiras, onde, além de João
Cabral de Melo Neto, nomes como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Josué
Montello, Adonias Filho e alguns outros são de importância constelar. Convém
sublinhar os prosadores porque comumente se fala de uma geração de 45 para
explicar as diretrizes tomados pela poesia brasileira, quando nomes expressivos
do romance publicaram, a partir desta data, obras que construíram o rigor do
engenho formal da nossa linguagem literária.
Ao restringir seu
trabalho à última fase da poesia de Jorge de Lima, Fábio de Souza Andrade
procede um criterioso rastreamento cronológico de toda obra do autor, incluindo
a prosa, sem perder de vista os aspectos biográficos, às vezes negligenciados
pela crítica em nome de uma imanência textual.
Despindo-se de preconceitos e ultrapassando os limites impostos pela
filiação do investigador a tendências críticas, o autor de O engenheiro noturno conseguiu produzir um estudo a serviço da
compreensão da obra de Jorge de Lima. E isto é importante, num momento em que a
crítica acadêmica ainda se compraz em produzir ensaios mais voltados para a
defesa e a afirmação de uma perspectiva teórica do que para a avaliação da obra
de criação.
O texto literário é
reduzido, às vezes, a mero pretexto de passeios filosóficos, compungidamente
seguidos pelos professores de teoria literária. Embora professor de Teoria da
Literatura da UNICAMP, Fábio não
se enreda nesta teia. Seu livro é uma lição dando conta de aspectos
diversificados da obra de Jorge de Lima: “O que parece saltos abruptos nas
transições estilísticas [...] chocaria menos caso fosse interpretado no
contexto de sua produção global”. É isto que o crítico se propõe a fazer,
reunindo os romances, os poemas engajados e as circunstâncias do poeta.
Assim, é possível
compreendermos a estreita relação mantida entre as manifestações e fases
aparentemente excludentes do poeta. Jorge de Lima parte de uma lírica
tradicionalmente correta e bem comportada; adere às experiências modernistas;
busca a identificação da sua voz com grupos étnicos e sociais postos à margem;
busca a transcendência do vôo e, por
fim, realiza uma síntese da experiência poética. Sua obra final pode ser lida
não somente como um diálogo com o seu próprio trajeto de criador, mas, principalmente,
com o percurso da poesia como um todo. Este caráter dialógico, intertextual da
sua obra está em perfeita harmonia com o de outros poetas essenciais da
modernidade.
Recorramos mais uma vez
às palavras do autor de O engenheiro
noturno: “A Segunda transição preparará a passagem do verso realista,
objetivo, quase desprovido de linguagem metafórica essencial, para o visualismo
complexo da fase final, que funda novas realidades a partir de ‘impactos
olho-coisa, luz-movimento’. Os fatores que desencadearão as mudanças sensíveis
que virão ligam-se à biografia do poeta.”
A partir daí, Flávio de
Souza Andrade acompanha os deslocamento de Jorge de Lima de Maceió para o Rio
de Janeiro, onde a vida literária da capital – e, na época, o maior centro
intelectual do país – propiciará um diálogo dos vislumbres do artista com a inquietação
e as buscas de outros espíritos criativos.
Num primeiro momento,
observa o crítico, a lírica de Jorge de Lima valorizou a clareza das imagens
mais fiéis à realidade, expandindo o alcance dos assuntos em direção ao
“cotidiano e o regional”. Aos poucos, esta poesia banha-se nas águas das
metáforas mais complexas até alcançar aquilo que ele chama de dicção
“parcialmente legível” do emblemático Invenção
de Orfeu .
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A invenção da noite.
Artigo crítico sobre o livro O engenheiro
noturno: A lírica final de Jorge de Lima, de Fábio de Souza Andrade. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 9 fev. 98, p. 7.
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Correspondências para
esta coluna:
R. Alberto Pondé,
147/103. 40.280-630, Salvador, Bahia