23/11/2015

romance português

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas

Romance português

   Sabemos que a teorização do saber literário, em si mesma, não constitui instrumento de prazer. O mesmo pode-se dizer do painel de degradação de uma sociedade,  dos bastidores da ditadura e da guerra colonial portuguesa. Para que todo esse material se converta em conteúdo de um romance é preciso que esteja impregnado de um "olhar inaugural". É preciso que os velhos e eternos problemas do homem, da sua solidão, seus vícios e desejos, sejam vistos desde a raiz, para que se alcance o âmago das coisas.
   Sem dúvida, tudo isso pode ser dito a respeito do livro O rio triste, de Fernando Namora. O romance se constrói a partir de uma notícia de jornal, de um fato comum, particular, sem as características universais de que trata Aristóteles. Só ao longo da narrativa, o verdadeiro e pobre cotidiano de um certo Rodrigo dos Santos Abrantes adquire o reluzente vigor do verossímil, e o seu drama particular de indivíduo único se confunde com o universal. Isto é, com a própria comédia humana.
   O fio da trama desenrola a vida de um homem que abandona a condição anônima e se converte em Alguém. Figura errante nas manchetes dos jornais. A partir deste gancho, Namora fala do seu processo criador sem resvalar para a descrição monótona. Não cede à tentação de emprestar ao texto o bordão metalingüístico que transforma a estrutura em herói, nem envereda pelos caminhos experimentais do chamado meta-romance. Ele permanece no âmbito dos recursos formais já consagrados pela ficção e insere, de modo novo, a velho teorizar. Desta forma, o livro se constrói enquanto texto experimental e renovador.
   É assim que Namora reescreve e retoca o quadro da sociedade portuguesa, dirigindo o foco para os anos 60 e abrindo flashbacks que ajudam a compreender estes anos como também outros momentos igualmente melancólicos.
   Um mosaico de gente, fatos reais, notícias verdadeiras, sonhos, delírios, fantasias, pessoas e fatos inventados, se harmoniza num texto atraente e vivo. Um mosaico que se harmoniza e redefine como um corpo novo: não mais visto como mosaico, mas como conteúdo romanesco.
   Falando-se da mutação do velho em novo, convém sublinhar um jogo especialmente sedutor na estrutura de O rio triste: o jogo do ponto de vista, ou do foco narrativo.
   Os estudiosos da literatura têm procurado traçar um quadro capaz de dar conta do modo pelo qual os acontecimentos narrados chegam ao leitor. Fala-se de foco externo objetivo, externo subjetivo; foco interno objetivo, interno subjetivo; narrativa em primeira pessoa, em segunda pessoa; narração objetiva, subjetiva etc.
   Não é propósito aqui discutir estas denominações e classificações, por mais úteis que possam ser, mas tão somente observar que no romance O rio triste, de Fernando Namora, de página para página o leitor é levado a conhecer os acontecimentos através de pontos de vista diferentes. O solo narrativo é substituído por um canto coral de vozes e registros variados.
   O livro começa com uma narrativa impessoal, onde uma terceira pessoa não implicada conta a história. Através, portanto, de um foco externo objetivo: "No dia 14 de novembro de 1965, nesta cidade de Lisboa, um homem saiu cedo de casa e já não voltou. Nesse dia e nos que se seguiram. Chamava-se, ou chama-se (pois há quem pense que o seu caso não foi suficientemente deslindado), Rodrigo dos Santos Abrantes. Um nome vulgar, se excetuarmos talvez o Rodrigo, e por isso mesmo detestado pelo próprio, que, como se verá mais adiante, projetava mudá-lo para Rodrigo Macieira – as razões também as saberemos a seu tempo."
   Já nestas palavras iniciais o narrador nos leva a esperar uma atitude subjetiva. Mas o segundo capítulo (se assim podemos chamar os blocos em que o livro é dividido) se inicia com uma narrativa em primeira pessoa, onde o narrador, descobriremos em seguida, é um escritor que não diz seu nome - que tanto pode ser Fernando, André, João, Joaquim, quanto pode não ter nome determinado; ou ter diversos nomes. Neste novo capítulo, Rodrigo, o herói por quem o leitor passa a se interessar, é abandonado à sua sorte de desaparecido e a narrativa é centrada nos tortuosos caminhos da intelectualidade portuguesa, nas conversas dos cafés, nas teias e tramas, ou nos dramas das redações de jornais durante a ditadura. Já aí estamos diante de um outro motivo constituinte do tema romanesco. O narrador se refere, com nomes verdadeiros e inventados, a intelectuais, jornais, livros, etc., falando, inclusive, de um tal André Bernardes.
   Mais adiante, somos levados a acompanhar uma narrativa feita por alguém que vem a se identificar como sendo este André Bernardes, citando seu nome vocativamente, ao desenrolar a serpentina dos seus sentimentos. Descobrimos, aos poucos, que o narrador em primeira pessoa – que no segundo capítulo do livro conta o que se passa com André Bernardes, de modo pessoal, distante, objetivo até – chama-se também André Bernardes.
   Enquanto este narrador incógnito fala de si mesmo e dos outros (inclusive de André Bernardes), nada nos leva a encontrar uma ligação entre o narrador e o outro André. Mas quando André Bernardes toma a palavra como narrador, ele se refere a acontecimentos da sua vida e envolve pessoas e episódios que proferem o desfecho ou a seqüência dos acontecimentos da vida do narrador icógnito.
   Assim, os mesmos fatos são vistos de dois ângulos diferentes. Ou de três, porque, não esqueçamos, é a narrativa impessoal que inicia o romance, projetando Abrantes. É ainda esta narrativa impessoal que alinhava os acontecimentos, ligando um motivo ao outro.
   A pluralidade de focos narrativos é enriquecida ainda mais por um artifício do autor: dar a palavra a outros personagens, especialmente os personagens femininos, para narrarem acontecimentos através de cartas, diários, etc., constituindo, muitas vezes, extensas passagens do livro. A mudança do foco implica na mudança da perspectiva de sujeitos determinados pelo gênero. Deste modo, ele quer marcar a diferença de olhar do homem e da mulher, enquanto sujeitos do universo romanesco.
   Por tudo isso, O rio triste é um romance que se constrói mediante a superposição de focos narrativos: a diversidade de pontos de vista que oferecem ao leitor uma grande panorâmica da sociedade portuguesa e das imensas veredas universais da alma humana.

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Romance português. Artigo crítico sobre o livro O rio triste, de Fernando Namora. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 13 abr. 98, p. 7.