21/11/2015

velho crítico

LEITURA CRÍTICA ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Cid Seixas


Um velho crítico: MÁRIO CABRAL

Com Caderno de crítica, publicado em 1944, Mário Cabral conquistou o respeito de expressivos intelectuais brasileiros. Segundo Álvaro Lins, o livro revela as qualidades do escritor e a “consciência real da dignidade da crítica”. O romancista José Lins do Rego foi mais enfático, afirmando que “a tradição de crítica vigorosa de Sergipe, a tradição de Tobias, Sílvio, João Ribeiro, não se perderá com vocações como a de Mário Cabral.”
Ao inserir o autor como continuador dos caminhos críticos abertos por Tobias Barreto, Sílvio Romero e João Ribeiro, Lins do Rego estava, na verdade, assegurando para o então estreante uma reputação das mais consagradoras. A articulação dos momentos mais expressivos do pensamento regional com o trabalho do autor de Cadernos de crítica, ao mesmo tempo em que representava um desafio e uma responsabilidade, abria espaços bem mais amplos para o seu trabalho.
Nomes como Gilberto Amado, Agripino Grieco, Câmara Cascudo, Érico Veríssimo, Carlos Chiacchio e tantos outros, com suas referências, ajudaram a consolidar o prestígio deste crítico.
Nascido em 1914, em Aracaju, Mário Cabral deu vazão à sua inquietação intelectual sendo jornalista, escritor, advogado e político. Logo chegou a prefeito da capital sergipana. Depois, veio viver na Bahia, nos meados do século, na mesma década de cinqüenta em que Afrânio Coutinho publicava tanto em A Tarde quanto em outros jornais brasileiros os artigos que viriam a derrubar o prestígio da chamada crítica impressionista, de caráter essencialmente jornalístico, e estabelecer os princípios da nascente crítica universitária brasileira.
Em Salvador, Mário Cabral tornou-se diretor, redator ou simples articulista de jornais como Diário da Bahia, Diário de Notícias, Estado da Bahia e Jornal da Bahia, todos já desaparecidos, inclusive aqueles que tiveram um papel de relevância no jornalismo brasileiro, como o DN e o JB.
A troca da atividade crítica sistemática pela atividade jornalística diária retirou o nome de Cabral, surgido como um cintilante cometa, do panorama da crítica regional e nacional.
Ainda de acordo com o seu espírito inquieto e de múltiplas ações, ele passou do jornalismo à área do direito, que assegurou o seu sustento por muitos anos, tornando-se Consultor Jurídico do Estado.
Somente agora, aos oitenta e três anos, quando o viajante recupera a serenidade de não mais partir, chegar, e tornar a partir, Mário Cabral volta a percorrer os antigos caminhos e a espelhar o tempo retido na memória. Colhendo os frutos desta estação sem tempestades, ele reúne a sua crítica esparsa, perdida desde 1945 em jornais do nordeste, do sul do país e do exterior num livro que, desde já, pode ser tomado como um documento valioso da crítica regional.
Jornal da noite é o título do volume de mais de trezentas páginas em que este velho estudioso registra a sua passagem da crítica literária propriamente dita para uma crítica da cultura. Etnografia, história, folclore e teoria passam a integrar o leque de interesses deste bem formado intelectual, cujo saber foi forjado num momento frutífero do saudoso sistema de educação brasileira (hoje sepultado pelo governo neo-liberal, que, deste modo, também se libera da responsabilidade de formar e educar).
A leitura de Jornal da noite demonstra que Mário Cabral continuou fiel à velha e boa crítica impressionista, mesmo depois do arsenal teorético enxertado pela inteligência universitária ter destruído a função informativa e judicativa deste gênero de crítica.
Até os anos cinqüenta, todos os jornais de grande ou médio porte mantinham conceituadas colunas de discussão e julgamento de obras literárias. Eram as informações, a análise e as impressões passadas pelo crítico que orientavam o leitor na escolha dos livros. Havia um diálogo estreito e frutífero entre o leitor e a crítica de jornal. Esta crítica impressionista encontrava eco nas próprias impressões despertadas pelas obras no leitor, o que infelizmente não acontece com a douta crítica universitária. Muitas vezes, o texto de base universitária é mais extenso do que a própria obra que lhe serve de pretexto. Ele não mais é produzido no calor da hora, registrando os lançamentos e ousando arriscar opiniões quando a obra em questão ainda não se instalou no patamar seguro do consenso.
Por isso, a grande distância existente entre a crítica e o público de hoje. O leitor comum deseja travar um diálogo com um outro leitor, bem formado, mas despido de aparatos teóricos que possam servir de ostentação ou de intimidação a um confronto mais franco e informal.
Os profissionais da universidade, pelo costume do cachimbo, muitas vezes cedemos à tentação de permitir que o desfile da erudição ou as complexas elucubrações conceituais tornem opaca a visibilidade do panorama visado: a obra literária criticada.
Como a velha crítica impressionista ia direto àquilo que o leitor queria, ela pôde se constituir enquanto referência privilegiada. Já a nova crítica, aquela que a universidade produz, atende apenas aos oficiais do mesmo ofício. Embora seja útil e essencial para a constituição do novo cânone literário, ela não dá conta do que para mim é mais importante: o desejo do leitor.
Por isso é que a lição reunida em Jornal da noite, de Mário Cabral, serve de exemplo neste momento de resistência ou de emergência tardia da crítica impressionista.

__________________________

Um velho crítico. Artigo crítico sobre o livro Jornal da noite, de Mário Cabral. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 2 jun. 97, p. 7.

*  *  *

Correspondências para esta coluna:
Rua Alberto Pondé, 147 / 103.
CEP 40.280-630, Salvador, Ba. Fone 351-8971.