Hermilo: mundo em fragmentos
A obra de
Hermilo Borba Filho, escritor pernambucano dos mais conceituados, é pouco
conhecida fora do seu estado natal, embora o nome do autor seja bastante
respeitado. Companheiro de aventuras intelectuais de Ariano Suassuna, Hermilo é
responsável pelo trabalho coletivo de construção de uma dramaturgia regional e,
principalmente, de uma consciência estética comprometida com a cultura popular.
O movimento Armorial – com resultados criativos na literatura, na música e em
outras artes – está intimamente afinado com o pensamento artístico de Hermilo.
Estes fatos
levaram o nome do autor a merecer consideração, tanto entre seus pares, quanto
junto a um pequeno público. Mas sua obra continua de difícil acesso, já que
alguns livros circularam quase que somente em Pernambuco. Em boa hora a Mercado
Aberto, de Porto Alegre, resolveu reeditar alguns romances deste autor.
Inicialmente lançou Margem das lembranças
e, em seguida, A porteira do mundo,
ambos em segunda edição.
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A porteira do mundo é um romance que
entrelaça fatos biográficos e memória com a vida política do país, a partir dos
seus reflexos no Recife. O Estado Novo, as restrições à liberdade, a Segunda
Guerra Mundial com grupamentos de soldados americanos sediados em Pernambuco,
servem de fundo à história pessoal do autor reescrita como ficção. Ou associada
a fatos ficcionais. Hermilo junta memória e ficção neste romance, entrelaçando
com fatos imaginários fatos da sua vida e da sua geração. O Teatro do Estudante
de Pernambuco e o Teatro Popular do Nordeste, para quem conhece a história
destes importantes movimentos artísticos, estão presentes nas peripécias do
romance e do seu protagonista.
O título do
livro nos remete, plurivocamente, ao abrir-se de situações e especialmente às
designações populares para as partes do corpo feminino. No interior de cidades
da Bahia, o útero é chamado de “a dona do corpo” e, em situações de parto, a
porteira do corpo abre o mundo para a criança.
O leitor lê
A porteira do mundo com um pé no
mundo real e outro no imaginário. Como se estivesse sempre indo e voltando pela
mesma porteira. A narrativa de Hermilo é de um escritor que sabe buscar sua
expressão com propriedade, mas o uso alegórico da linguagem nem sempre é bem
resolvido.
Ao passar
da narrativa comprometida com o realismo social, que a vida política do
narrador impõe, para a narrativa alegórica com uma intencional busca do
fantástico, o texto parece menos convincente. Alguns narradores habitam
naturalmente o fantástico, outros passam para esta categoria de estranhamento
com um certo esforço, com sensível prejuízo ao fluxo narrativo.
Se um Gabriel
García Márquez caminha naturalmente, pisando os caminhos cruzados do fantástico
ou do maravilhoso com a realidade mais comezinha, o mesmo não ocorre com alguns
escritores brasileiros que se aventuram por esta importante vertente da
narrativa do nosso continente.
Parágrafos
extensos, ocupando, às vezes, algumas páginas estão dispersos nos capítulos do
livro, criando um pouco de monotonia. Mas, em seguida, a agilidade da narrativa
de Hermilo Borba Filho segura o leitor para não soltá-lo mais. Alguns episódios
fragmentários que constituem a arquitetura da obra são especialmente
divertidos. Uns pela natureza das situações narradas, outros claramente pelo
modo de narrar. É aí que mais nitidamente se conhece o escritor maduro e senhor
do seu ofício.
Em muitos
escritores os bons momentos de leitura vêm como se por acaso, ao sabor dos
fatos relatados, em outros, estes momentos são construídos com a consciência de
um técnico que estrutura o seu projeto.
Diferentemente
das atividades exatas, a arte surge tanto do saber fazer, da técnica mais
apurada, ou do artesanato, quanto de inexplicáveis clarões de consciência, por
entre o obscuro caminho inconsciente. Assim, um iniciante consegue escrever um
bom livro, mesmo que lhe falte o domínio da arte literária. É o que alguns
chamam de talento artístico, de sensibilidade. Leitura de relâmpago cifrado que decifrado, nada existe, conforme o
sentido que aqui distorço das palavras de Drummond. Mas escritores como Hermilo
Borba Filho são oficiais do seu ofício. O saber fazer e a imaginação se
conjugam para passar do artesanato à arte. Do fazer bem feito à imaginação
luminosa.
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Hermilo: Mundo em
fragmentos. Artigo crítico sobre o livro A
porteira do Mundo, de Hermilo Borba
Filho. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 1º dez. 97, p. 7.
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Correspondências para
esta coluna:
R. Alberto Pondé,
147/103. 40.280-630, Salvador, Bahia