Pasolini: cinema e literatura
Na Primeira Mostra Internacional do Novo Cinema,
realizada em Péssaro (Itália), em 1965, o
cineasta Pier Paolo Pasolini foi relator de uma mesa redonda sobre
Crítica e Novo Cinema, quando apresentou um trabalho no qual estabelecia
paralelos entre a linguagem cinematográfica e a linguagem literária.
Ao proclamar a excelência do cinema e a sua
natureza predominantemente artística, comparada à natureza da literatura, o
crítico-criador atribuía ao texto literário uma tênue feição artística. Ele
afirmava que a linguagem literária sustenta seu processo inventivo sobre uma
base já estabelecida, enquanto a linguagem do cinema parece não se apoiar em
nada. Isto porque, a comunicação verbal, que fornece seus signos à comunicação
literária, já está elaborada como sistema historicamente complexo e
amadurecido. Por outro lado, a comunicação visual que serve de base à linguagem
cinematográfica é, segundo suas palavras, extremamente rude e irracional.
Na sua perspectiva, cada um de nós domina um
dicionário, lexicalmente incompleto, mas satisfatório para os fins do grupo
social ou da nação a que pertence. O trabalho do escritor seria tomar as
palavras do dicionário comum, como
objetos guardados num cofre, e utilizá-las de modo particular.
Pasolini vê a criação do escritor como uma
adição de historicidade, ou de realidade, à linguagem da cultura. O ato poético
é descrito como uma simples reelaboração do significado que estava à mão, no
dicionário mental do falante, pronto para ser usado. Já o criador
cinematográfico não tem à sua disposição o estoque de conceitos
preestabelecidos, mas se defronta com uma possibilidade infinita, porque não
apanha seus signos “do cofre, da custódia, da bagagem, mas do caos, onde só
existem meras possibilidades ou vislumbres de comunicação mecânica e onírica.”
A literatura, aí implicitamente considerada uma
arrumadeira dos materiais existentes, perde o estatuto de discurso da arte. Não
dispondo de signos próprios, ela não teria como ordenar o contínuo amorfo de que nos fala Saussure, nem como ouvir a voz do
verbo no surdo caos das coisas, vislumbrado
por Pasolini.
Tal perspectiva, centrada no ponto de vista de
quem olha o mundo pelos limites da sua aldeia (reducionista, portanto), ignora
a indagação de Schiller, atribuída a Goethe: Se escreves numa língua que pensa e versifica por ti, imaginas ser
poeta?
Já os românticos alemães do Sturm und Drang tinham consciência de que a poesia se realiza para
além dos limites da língua estabelecida pela cultura.
O conceito de poesia como fingimento,
insistentemente difundido por Fernando Pessoa, denota a compreensão da
literatura como forma de construção de um outro real – paralelo – pondo em
prática, no texto, a consciência já revelada por Schiller.
As relações do escritor com a língua histórica,
seus limites e normas, são anotadas no manuscrito de Bernardo Soares O livro do desassossego, onde Fernando
Pessoa revela que teve, “como muitos têm tido, a vontade pervertida de ter um
sistema e uma norma.” Curiosamente, os termos usados por Pessoa coincidem com
aqueles propostos pelo linguista romeno Eugenio Coseriu, em 1952, no livro Sistema, norma e fala. A divisão
tripartida, inspirada em Hjelmslev, superava as limitações da dicotomia
saussureana – langue / parole – e
repunha no domínio da língua fenômenos como a norma, que a clássica oposição de
Saussure (língua e fala) deixava de
fora.
A escrita, quando assumida por um criador e
erigida à condição de discurso poético, não é, como supõe Pasolini, uma mera
utilização dos recursos catalogados pela tradição. O território da literatura é
um vasto reino, aberto à aventura da conquista. Aquilo que ele afirma a
respeito do cinema cabe à literatura e a toda arte, enquanto a sua visão da
linguagem literária refere-se apenas ao kitsch,
à categoria do pastiche, ou da obra destinada ao sucesso junto ao consumidor da
cultura de massa: ao best-seller
feito sob encomenda de empresas comercializadoras de livros. Mesmo diante do
estrepitoso prestígio dessas obras, junto ao grande público, não se pode
tomá-las como arquétipos ou modelos da criação literária.
Diante da analogia possível, conviria mais
identificar a tipologia da obra “literária” que se enquadra na formulação de
Pasolini como uma geringonça discursiva. Esse modelo de texto ficcional está
para a criação dos escritores mais representativos assim como o kitsch, o bibelô, ou o pinguim de
geladeira, está para as esculturas ou as pinturas que constituem o acervo das
artes plásticas. Se o artesão das tintas, dos sons e das palavras é uma pessoa
que se inicia na fatura de obras, realizando algumas vezes com maestria o
trabalho de reprodução de objetos, o artista é mais do que um artesão: além de
saber como fazer bem feito, ele inventa o que ainda não foi feito: faz bem
feito o que não se podia nem se sabia fazer.
Tomando como ponto de partida os materiais
existentes, isto é, valendo-se do dicionário comum, o escritor utiliza este
material como matéria-prima, ou sucata, para invenção dos seus próprios
materiais, extraídos do surdo caos das coisas – já agora, graças ao facho de
luz projetado pelo seu trabalho – ruidoso de vozes e sentidos.
O que diferencia o artesanato verbal da arte
literária é a transgressão, é a contravenção das formas estabelecidas, operada
pela arte. Ou o rompimento, simultâneo, com as construções habituais do real e
com o modo usual de expressá-lo.
Pasolini adiciona uma observação que merece ser
discutida: o autor cinematográfico, na sua procura de um dicionário, não
recolhe termos abstratos. A construção
semiótica do criador de cinema é constituída de imagens. E como as imagens
plásticas ou visuais são objetos concretos, ele infere: “Eis porque, por ora, o
cinema é uma linguagem artística não-filosófica. Pode ser parábola, jamais
expressão conceitual direta.”
Aí residiria, na opinião de Pasolini, a
diferença principal entre o cinema e a literatura; o que é uma forma de afirmar
a predominante artisticidade da arte
cinematográfica, ou o que ele denomina sua
violência expressiva, ou ainda: sua
fisicidade onírica.
Mas esta diferença existe mesmo?
Os traços criativos
apontados como próprios do cinema são os mesmos que asseguram a natureza
artística do discurso literário – da poesia. É por isso que, contrariando suas próprias inferências, Pasolini
é levado a admitir que a linguagem do cinema é fundamentalmente uma linguagem de poesia. Quer dizer, uma
linguagem similar à literária.
Decorrente de uma enviesada compreensão da obra
de arte literária, a contradição do criador-crítico se evidencia na afirmação
da não artisticidade do discurso literário; seguida da comparação do discurso
cinematográfico com um dos gêneros do literário, para ressaltar a natureza eminentemente
artística do cinema. Ora, se a literatura, ao utilizar a linguagem verbal,
encontra o mundo já constituído e assume esta constituição com o objetivo de
torná-la apenas mais graciosa, como
então dizer que uma arte transgressiva e criativa como o cinema de Pasolini se
sustenta numa linguagem de poesia?
Só se ele estiver distinguindo, implicitamente,
a literatura de consumo, a indústria da escrita, da arte da escrita: a
literatura propriamente dita; que é uma forma de poesia, quer seja em verso ou
em prosa. A expressão “literatura” assumiu uma insolúvel ambiguidade na
história da cultura ocidental, por se referir, às vezes, à obra de arte verbal
e, em outras ocasiões, a qualquer tipo de escrita ou à técnica de produção de
textos.
Convém lembrar que a predileção do cinema pela
imaginação fundada no concreto – “as imagens são sempre concretas, jamais
abstratas”, conforme afirma, – segue a deriva da literatura; ou da cultura
humana, como os antropólogos têm verificado através do estudo de povos em
estágio dito primitivo. Toda cultura parte sempre do concreto, do palpável e
tangível para captar o que lhe parece intangível, abstrato. Assim, o novo é
sempre captado em analogia à concretude do já conhecido. Para nós, afeitos à
leitura, e marcados pela cultura da escrita, torna-se mais fácil observar tal
ocorrência no pensamento selvagem, ou nas culturas não submetidas à automação
mecânica.
Os índios norte-americanos, conforme o clichê
dos filmes de cowboy, dispõem de um
rico sistema analógico de denominação, incorporando objetos novos ao seu
universo de conhecimento, a partir da contiguidade da sua função com a função
de objetos utilizados pela cultura nativa. O trem, como evidencia o exemplo conhecido, é compreendido pelos
guerreiros montados, que o vêem pela primeira vez como um cavalo-de-ferro. Ou, para evocarmos uma denominação analógica comum
à cultura brasileira, a espingarda e
a pistola, são vistas como pau-de-fogo. Os índios da Bahia, antigos
habitantes da floresta que é hoje o bairro do Rio Vermelho, denominaram o
náufrago português Diogo Álvares Correia de Caramuru,
o rei do trovão; respeito infundido pelo disparo do seu desconhecido
pau-de-fogo.
Guimarães Rosa, estudando a língua dos índios
terena, fica fascinado com os nomes das cores entre os remanescentes dessa
nação indígena. Como a percepção da cor é alguma coisa um tanto abstrata, os
falantes da língua terena buscam concretude numa construção, para nós, poética:
o vermelho é denominado a-ra-ra-i’ti,
anota Rosa, e quer dizer “sangue-da-arara”. E assim imagina: o azul,
“sangue-do-céu”, o verde, “sangue-da-folha”.
A artisticidade do cinema apontada por Pasolini
– assim como de qualquer outra arte, sem privilegiar uma em detrimento das
outras – é, na verdade, uma manifestação da natureza criativa do próprio homem,
quer nas atividades simbólicas consideradas formas de arte, quer nas atividades
simbólicas de fins exclusivamente pragmáticos. A ocorrência dessas
manifestações em alto grau é que caracteriza a linguagem da arte (conforme a
lição de Jakobson). Desse modo, a conclusão a que chega Pasolini, segundo a
qual o cinema é uma “linguagem artística não-filosófica,
que pode ser parábola, jamais expressão conceitual direta”, é igualmente válida
para o discurso da arte em geral e, portanto, para o discurso literário.
O recurso utilizado por muitos criadores de
ressaltar a excelência da sua arte, em detrimento das demais, decorre de uma
visão paroquial, ou mesmo, do grau de desinteresse pelas outras atividades
artísticas, que infelizmente pode ocorrer com os artistas mais admirávéis, como
o signore Pier Paolo Pasolini.
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Pasolini:
cinema e literatura. Artigo crítico sobre as relações entre cinema e literatura
segundo Pasolini. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 13 jan. 97, p. 7.
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