As
chamas da memória
Gláucia Lemos, escritora que tem
público cativo e alguns livros que alcançaram reedições, publicou no ano
passado o romance As chamas da memória.
As obras que tornaram a autora conhecida nacionalmente foram todas publicadas
por editoras de São Paulo. Com nome reconhecido pela crítica e pelos leitores,
a escritora publicou este seu novo romance por uma editora de Salvador, a BDA.
Inexplicavelmente, o livro não teve a repercussão que é devida à sua qualidade,
refletindo assim o contraditório e indigente panorama editorial baiano.
Os livros aqui publicados permanecem
inéditos! (O sinal de exclamação vai bem à frase.) Se o autor quer conquistar um lugar visível
no panorama literário tem que publicar em São Paulo, no Rio, em Belo Horizonte
ou em Porto Alegre, nunca na Bahia. Dita assim, a sentença sôa pessimista, mas
confrontada com os fatos aparece como um relato fiel.
É verdade que em Salvador muito se publica. Mas pouco se lê.
Passados os messes das férias e das festas temos dois ou três lançamentos por
semana, o que nos aproxima de uma metrópole intelectual. O problema é que a
maior parte das publicações é de iniciativa do autor, não passando pelo
controle de qualidade do mercado editorial. Tal mercado associa um mínimo de
qualidade com a aceitabilidade por parte do consumidor, sendo este último o
item preponderante. Como o livro do autor baiano com impressão paga pelo mesmo
foge deste circuito, todo livro publicado na Bahia é tratado pelos
distribuidores e livreiros como mercadoria invendável e relegada às prateleiras
mais escondidas das lojas.
Mesmo quando instituições prestigiosas adotam um programa
editorial, seu produto tem o mesmo destino do livro impresso para atender à
vaidade do autor. A media também não
faz nenhuma distinção, dando às vezes um relevo indevido a publicações
insignificantes e tratando com indiferença autores que merecem especial
respeito.
Por isso, publicar em Salvador é, às vezes, o mesmo que
deixar o livro inédito. Estas reflexões surgem a propósito de As chamas da memória, romance que
recebeu, no Rio de Janeiro, o Prêmio
Graciliano Ramos da União Brasileira de Escritores mas, como foi publicado
na Bahia, não teve uma receptividade equivalente aos seus méritos.
Dito isto, deixo claro, desde já, o resultado da impressão
favorável causada pela leitura das cento e poucas páginas do livro. Romance
enxuto, quase uma novela, com um fio temático centrado num episódio crucial da
vida da protagonista e narradora, seu enredo abre espaço apenas para pequenas
tramas subsidiárias, sinteticamente desenvolvidas. A surpresa do leitor fica
por conta do grande flashback que só
é percebido como tal no desfecho da narrativa, justificando plenamente o título
do livro.
Uma queimada à beira da estrada desentranha das suas chamas
lembranças e cicatrizes da memória, de onde surge o painel de insatisfação da
mulher perante o casamento. As personagens femininas do livro são todas elas
figuras marcadas pela opressão de relações conjugais injustas, onde o papel da
mulher continua sendo o mesmo atribuído pela sociedade burguesa do século XIX:
cultivar prendas e enfeitar-se para o marido.
Mas o bom do livro é que, ao tratar do conflito
homem-mulher, o tratamento não derrapa no discurso ressentido de um feminismo
que se confunde com a androfobia. A narradora vê os fatos com olhos turvados,
mas eqüidistantes, e constrói o conflito das personagens como forma de rever os
conflitos das pessoas reais. Daí a sua eficácia e a sua natureza
primordialmente artística, onde a obra não está a serviço de causas e movimentos,
mas da própria condição social do ser humano.
Existem livros claramente engajados às causas políticas,
religiosas, minoritárias etc. São obras que ficam a meio caminho entre a
literatura e a retórica, isto é, o discurso persuasivo. Algumas outras
ultrapassam as circunstâncias dos indivíduos que as produziram e se inscrevem
no gênero de obras da humanidade, para além das diferenças. Mas isso não impede
que elas desempenhem um papel de críticas severas das estruturas restritivas da
plenitude do sujeito. Muito pelo contrário. Molière, Gil Vicente, Shakespeare,
Dostoiévski e muita gente sem o mesmo prestígio realiza obras a serviço da
felicidade humana.
É isto que separa a Literatura, enquanto arte, da
“literatura” doutrinária, mais próxima dos tratados e discursos conceituais do
que da arte da ficção. Uma tênue fronteira, é verdade. Tão sutil que muita
gente chama de literatura a tudo aquilo que se escreve ou publica. Fala-se em revisão da literatura no sentido de
revisão da bibliografia, em literatura
científica para designar tratados de ciência.
Deste modo, o escritor é todo sujeito culto que transmite
seu saber através do texto. Mas nem todo escritor faz Literatura.
Gláucia Lemos é uma escritora com lugar assegurado na
Literatura do seu povo. Sua escrita, cuidadosamente urdida, onde o domínio do
dizer transforma os conflituosas facções do pensamento em admiráveis ficções,
realiza construções sóbrias e plenas de encantamento. Como faz o romance As chamas da memória.
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As
chamas da memória. Artigo crítico sobre o livro As chamas da memória, de Gláucia Lemos. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 17 mar. 97,
p. 7.
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